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S. Bernardo (1934)/Capítulo VI

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VI


Naquelle segundo anno houve difficuldades medonhas. Plantei mamona e algodão, mas a safra foi ruim, os preços baixos, vivi mezes aperreado, vendendo macacos e fazendo das fraquezas forças para não ir ao fundo. Trabalhava damnadamente, dormindo pouco, levantando-me ás quatro da manhã, passando dias ao sol, á chuva, de facão, pistola e cartucheira, comendo nas horas de descanço um pedaço de bacalhau assado e um punhado de farinha. Á noite, na rede, explicava pormenores do serviço a Casimiro Lopes. Elle acocorava-se na esteira e, apesar da fadiga, ouvia attento. Ás vezes Tubarão ladrava lá fóra, e nós aguçavamos o ouvido.

Uma feita distinguimos passos em redor da casa. Olhei por uma fresta na parede. A escuridão era grande, mas percebi um vulto. E as pisadas continuaram. O cachorro latiu e rosnou.

— Mais esta! cochichou Casimiro Lopes.

No dia seguinte visitei Mendonça, que me recebeu inquieto. Conversámos sobre tudo, especialmente sobre votos. Dirigi amabilidades ás filhas delle, duas solteironas, e lamentei a morte da mulher, excellente pessoa, caridosa, amiga de servir, sim senhor. Mendonça, espantado, perguntou onde eu tinha visto d. Alexandrina.

— Faz tempo. Fui morador do velho Salustiano. Arrastei a enxada, no eito.

As moças acanharam-se, mas o pae achou que eu procedia com honestidade revelando francamente a minha origem. Depois queixou-se dos vizinhos (nenhum se dava com elle).

— Ha por ahi umas pestes que principiaram como o senhor e arrotam importancia. Trabalhar não é deshonra. Mas se eu tivesse nascido na poeira, porque havia de negar?

Tentou envergonhar-me:

— Trabalhador alugado, hein? Não se incommode. O Fidelis, que hoje é senhor de engenho, e conceituado, furtou gallinhas.

— Emquanto elle tesourava o proximo, observei-o. Pouco a pouco ia perdendo os signaes de inquietação que a minha presença lhe tinha trazido. Parecia á vontade catando os defeitos dos vizinhos e esquecido do resto do mundo, mas não sei se aquillo era tapeação. Eu me insinuava, discutindo eleições. É possivel, porém, que não conseguisse enganal-o convenientemente e que elle fizesse commigo o jogo que eu fazia com elle. Sendo assim, acho que representou bem, pois cheguei a capacitar-me de que elle não desconfiava de mim. Ou então quem representou bem fui eu, se o convenci de que tinha ido ali politicar. Se elle pensou isso, era doido. Provavelmente não pensou. Talvez tenha pensado depois de illudir-se e julgar que estava sendo sincero. Foi o que me succedeu. Repetindo as mesmas palavras, os mesmos gestos, e ouvindo as mesmas historias, acabei gostando do proprietario de Bom Successo.

Continuava a observal-o, mas a observação era instinctiva. Despertou. Bocejando, mostrando os caninos amarellos e pontudos, Mendonça bateu palmas e esfarelou um mosquito. Mosquito como bala! Tinha passado uma noite horrivel.

Respondi que havia dormido como pedra. Os pantanos em S. Bernardo estavam aterrados, não restava um mosquito para remedio. Arrependi-me de ter falado precipitadamente. Mendonça examinou-me de través, e supponho que não ficou satisfeito. Tornou a referir-se á noite de insomnia, e eu repeti que tinha dormido. Pouco seguro, com a cara mexendo. Naturalmente elle comprehendeu que era mentira.

Cada um de nós mentiu estupidamente. Empurrei de novo na palestra a minha vida de trabalhador. Resultado mediocre: as moças cochilaram e Mendonça estirou o beiço.

Um caboclo mal encarado entrou na sala. Mendonça franziu a testa. Quiz despedir-me; receei, porém, que o momento fosse improprio e conservei-me sentado, esperando modificar a impressão desagradavel que produzia. As moças me achavam maçador, evidentemente.

— Se o inverno vindouro for como este, desgraça-se tudo: isto vira lama e não nasce um pé de mandioca.

— De certo, concordou Mendonça, visivelmente aporrinhado com o caboclo, que me olhava tranquillo, sem levantar a cabeça.

— Pois até logo, exclamei de chofre. A eleição domingo, hein? Entendido. Mato um ... (Ia dizer um boi. Moderei-me: todo o mundo sabia que eu tinha meia duzia de eleitores) um carneiro. Um carneiro é bastante, não? Está direito. Até domingo.

E sahi, descontente. Creio que foi mais ou menos o que aconteceu. Não me lembro com precisão.

Atravessei o pateo e entrei no atalho que ia ter a S. Bernardo. Que vergonha! Tomar a terra dos outros e deixal-a com aquellas veredas indecentes, cheias de camaleões, o mato batendo no rosto de quem passava!

Percorri a zona da encrenca. A cerca ainda estava no ponto em que eu a tinha encontrado no anno anterior. Mendonça forcejava por avançar, mas continha-se; eu procurava alcançar os limites antigos, inutilmente. Discordia séria só esta: um moleque de S. Bernardo fizera mal á filha do mestre de assucar de Mendonça, e Mendonça, em consequencia, mettera o alicate no arame; mas eu havia concertado a cerca e arranjado o casamento do moleque com a cabrochinha.

Dei uma vista no algodoal e encaminhei-me ao paredão do açude. Poucos trabalhadores.

Subi a collina. Tinham-se concluido os alicerces desta nossa casa, as paredes começavam a elevar-se. De repente um tiro. Estremeci. Era na pedreira, que mestre Caetano escavacava lentamente, com dois cavouqueiros. Outro tiro, ruim: pedra miuda voando.

Quando se acabariam aquelles serviços molles? Desgraçadamente faltavam-me recursos para atacal-os firme. Assim mesmo, lidando com pessoal escasso, ás vezes na sexta-feira eu não sabia onde buscar dinheiro para pagar as folhas no sabbado.

Fiz algumas perguntas ao pedreiro. Um pedreiro só. As paredes tinham um metro de altura. Se eu empregasse muitos operarios, as obras sahiriam mais baratas. O paredão do açude não ia para a frente, acuava. E a pedreira, onde uns vultos miudinhos se moviam, era como se em seis mezes de trabalho não tivesse sido desfalcada.

Um carro de bois passou lá em baixo; outro carro de bois veio vindo, carregado de tijolos.

Onde andaria a velha Margarida? Seria bom encontrar a velha Margarida e trazel-a para S. Bernardo. Devia estar pegando um século, pobre da negra. Demorei-me até que os serventes lavaram as colheres e guardaram as ferramentas. Fiquei só. Os homens da lavoura e os do açude foram debandando tambem.

Mais tiros na pedreira, os ultimos. Pensei no Mendonça. Canalha. Do lado de cá da cerca o algodão pintava, a mamona crescia nos aceiros da roça; do lado de lá, sapé e espinho. Quantas braças de terra aquelle malandro tinha furtado! Felizmente estavamos em paz. Apparentemente. De qualquer fórma era-me necessario caminhar depressa.

Desci a ladeira e fui jantar. Emquanto jantava, falei em voz baixa a Casimiro Lopes, a principio com pannos mornos, depois delineando um projecto. Casimiro Lopes desviou-se dos pannos mornos e collaborou no projecto.

Deixei o negocio entabolado, fechei as portas e escrevi algumas cartas aos bancos da capital e ao governador do Estado. Aos bancos solicitei emprestimos, ao governador communiquei a installação proxima de numerosas industrias e pedi a dispensa de imposto sobre os machinismos que importasse. A verdade é que os emprestimos eram improvaveis e eu não imaginava a maneira de pagar os machinismos. Mas havia-me habituado a consideral-os meio comprados.

Em seguida consultei o Aprendizado Agricola da Satuba relativamente á possivel acquisição dum bezerro Limosino. Quando ia terminando, ouvi pisadas em redor da casa. Levantei-me e olhei pela fresta. Lá estava um typo dando estalos com os dedos, enganando o Tubarão. Reparando, julguei reconhecer o freguez carrancudo que tinha entrado na sala do Mendonça. Abandonei a espreita e chamei Casimiro Lopes, que me substituiu. Deitei-me pensando em mestre Caetano e na pedreira. Marretas, alavancas, aço para broca, polvora, es­topim!

— Gente de lá, murmurou Casimiro Lopes balançando o punho da rede.

— Com certeza.

No outro dia, sabbado, matei o carneiro para os eleitores. Domingo á tarde, de volta da eleição, Mendonça recebeu um tiro na costella mindinha e bateu as botas ali mesmo na estrada, perto de Bom Successo. No lugar ha hoje uma cruz com um braço de menos.

Na hora do crime eu estava na cidade, conversando com o vigario a respeito da igreja que pretendia levantar em S. Bernardo. Para o futuro, se os negocios corressem bem.

— Que horror! exclamou padre Silvestre quando chegou a noticia. Elle tinha inimigos?

— Se tinha! Ora se tinha! Inimigo como carrapato. Vamos ao resto, padre Silvestre. Quanto custa um sino?

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1930 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.