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S. Bernardo (1934)/Capítulo VII

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VII


Por esse tempo encontrei em Maceió, chupando uma barata na Gazeta do Brito, um velho alto, magro, curvado, amarello, de suissas, chamado Ribeiro. Via-se perfeitamente que andava com fome. Sympathizei com elle e, como necessitava um guarda-livros, trouxe-o para S. Bernardo. Dei-lhe alguma confiança e ouvi a sua historia, que aqui reproduzo pondo os verbos na terceira pessoa e usando quasi a linguagem delle.

Seu Ribeiro tinha setenta annos e era infeliz, mas havia sido moço e feliz. Na povoação onde elle morava os homens descobriam-se ao avistal-o, e as mulheres baixavam a cabeça e diziam :

— Louvado seja Nosso Senhor Jesus Christo, seu Major.

Quando alguem recebia cartas, ia pedir-lhe a traducção dellas. Seu Ribeiro lia as cartas, conhecia os segredos, era considerado e Major.

Se dois vizinhos brigavam por terra, seu Ribeiro chamava-os, estudava o caso, traçava as fronteiras e impedia que os contendores se grudassem.

Todos acreditavam na sabedoria do Major. Com effeito, seu Ribeiro não era innocente: decorava leis, antigas, relia jornaes, antigos, e, á luz da candeia de azeite, queimava as pestanas sobre livros que encerravam palavras mysteriosas de pronuncia difficil. Se se divulgava uma dessas palavras exquisitas, seu Ribeiro explicava a significação della e augmentava o vocabulario da povoação.

Os outros homens, sim, eram innocentes.

Acontecia ás vezes que uma dessas criaturas innocentes apparecia morta a cacete ou a faca. Seu Ribeiro, que era justo, procurava o matador, amarrava-o e levava-o para a cadeia da cidade. E a familia do defuncto ficava sob a protecção do Major.

Tambem acontecia que uma sujeitinha começava a chorar e acabava confessando que estava pejada. Seu Ribeiro descobria o seductor, chamava o padre, e o casamento se realizava na capella da povoação. Nascia um menino — e seu Ribeiro era o padrinho.

O Major decidia, ninguém appellava. A decisão do Major era um prego.

Não havia soldados no lugar, nem havia juiz. E como o vigário residia longe, a mulher de seu Ribeiro rezava o terço e contava historias de santos ás crianças. É possivel que nem todas as historias fossem verdadeiras, mas as crianças daquelle tempo não se preoccupavam com a verdade.

Seu Ribeiro tinha uma familia pequena e uma casa grande. A casa estava sempre cheia. Os algodoaes do Major eram grandes tambem. Nas colheitas a população corria para elles. E os pretos não sabiam que eram pretos, e os brancos não sabiam que eram brancos.

Na verdade seu Ribeiro infundia respeito. Se havia barulho na feira, levantava o braço e gritava:

— Quem for meu me acompanhe.

E a feira se desmanchava, o barulho findava, todo o mundo seguia o Major porque todo o mundo era do Major.

Nas noites de S. João uma fogueira enorme illuminava a casa de seu Ribeiro. Havia fogueiras diante das outras casas, mas a fogueira do Major tinha muitas carradas de lenha. As moças e os rapazes andavam em redor della, de braço dado. Assava-se milho verde nas brazas e davam-se tiros medonhos de bacamarte. O Major possuia um bacamarte, mas o bacamarte só se desenferrujava pelos festejos de S. João.

Ora essas coisas se passaram antigamente.

Mudou tudo. Gente nasceu, gente morreu, os afilhados do Major cresceram e foram para o serviço militar, em estrada de ferro.

O povoado transformou-se em villa, a villa transformou-se em cidade, com chefe politico, juiz de direito, promotor e delegado de policia.

Trouxeram machinas — e a bolandeira do Major parou.

Veio o vigario, que fechou a capella e construiu uma igreja bonita. As historias dos santos morreram na memoria das crianças.

Chegou o medico. Não acreditava nos santos. A mulher de seu Ribeiro entristeceu, emmagreceu e finou-se.

O advogado abriu consultorio, a sabedoria do Major encolheu-se — e surgiram no foro numerosas questões.

Effectivamente a cidade teve um progresso rapido. Muitos homens adoptaram gravatas e profissões desconhecidas. Os carros de bois deixaram de chiar nos caminhos estreitos. O automovel, a gazolina, a electricidade e o cinema. E impostos.

As moças e os rapazes não rodeavam, de braço dado, as fogueiras de S. João: dançavam o tan­go, no frevo.

Um dia seu Ribeiro reconheceu que vivia numa casa grande demais. Vendeu-a e adquiriu outra, pequena. Como havia agora uma liberdade excessiva, a auctoridade dele foi minguando, até desappareeer.

Seu Ribeiro tinha um filho, que jogava o foot-ball, e uma filha, que usava fitas, muitas fitas. Acharam o lugar atrazado e fugiram. Seu Ribeiro escondeu-se, cheio de vergonha. Amofinou-se uma semana, desfez-se dos cacarecos e foi procurar os filhos. Não os encontrou: andavam por ahi, ella pelas fabricas, elle no exercito.

Seu Ribeiro enraizou-se na capital. Conheceu enfermarias de indigentes, dormiu nos bancos dos jardins, vendeu bilhetes de loterias, tornou-se bicheiro e agente de sociedades ratoeiras. Ao cabo de dez annos era gerente e guarda-livros da Gazeta, com cento e cincoenta mil reis de ordenado, e pedia dinheiro aos amigos.

Quando o velho acabou de escorrer a sua narrativa, exclamei:

— Tenho a impressão de que o senhor deixou as pernas debaixo dum automovel, seu Ribeiro. Porque não andou mais depressa? É o diabo.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1930 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.