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S. Bernardo (1934)/Capítulo VIII

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VIII


O caboclo mal encarado que encontrei um dia em casa do Mendonça tambem se acabou, em desgraça. Uma limpeza. Essa gente quasi nunca morre direito. Uns são levados pela cobra, outros pela cachaça, outros matam-se.

Na pedreira perdi um. A alavanca soltou-se da pedra, bateu-lhe no peito, e foi a conta. Deixou viuva e orphans miudos. Sumiram-se: um dos meninos cahiu no fogo, as lombrigas comeram o segundo, o ultimo teve angina e a mulher enforcou-se.

Para diminuir a mortalidade e augmentar a producção, prohibi a aguardente.

Concluiu-se a construcção da casa nova. Julgo que não preciso descrevel-a. As partes principaes appareceram ou apparecerão; o resto é dispensavel e apenas pode interessar aos architectos, homens que provavelmente não lerão isto. Ficou tudo confortavel e bonito. Naturalmente deixei de dormir em rede. Comprei moveis e diversos objectos que entrei a utilizar com receio, outros que ainda hoje não utilizo, porque não sei para que servem.

Aqui existe um salto de cinco annos, e em cinco annos o mundo dá um bando de voltas.

Ninguem imaginará que, topando os obstáculos mencionados, eu haja procedido invariavelmente com segurança e percorrido, sem me deter, caminhos certos. Não senhor, não procedi nem percorri. Tive abatimentos, desejo de recuar; contornei difficuldades: muitas curvas. Acham que andei mal? A verdade é que nunca soube quaes foram os meus actos bons e quaes foram os maus. Fiz coisas boas que me trouxeram prejuizo; fiz coisas ruins que deram lucro. E como sempre tive a intenção de possuir as terras de S. Bernardo, considerei legitimas as acções qne me levaram a obtel-as.

Alcancei mais do que esperava, mercê de Deus. Vieram-me as rugas, já se vê, mas o credito, que a principio se esquivava, agarrou-se commigo, as taxas desceram. E os negocios desdobra­ram-se automaticamente. Automaticamente. Difficil? Nada! Se elles entram nos trilhos, rodam que é uma belleza. Se não entram, cruzem os braços. Mas se virem que estão de sorte, mettam o pau: as tolices que praticarem viram sabedoria. Tenho visto criaturas que trabalham demais e não progridem. Conheço individuos preguiçosos que têm faro: quando a occasião chega, desenroscam-se, abrem a boca — e engolem tudo. Eu não sou preguiçoso. Fui feliz nas primeiras tentativas e obriguei a fortuna a ser-me favoravel nas seguintes.

Depois da morte do Mendonça, derrubei a cerca, naturalmente, e levei-a para alem do ponto em que estava no tempo de Salustiano Padilha. Houve reclamações.

— Minhas senhoras, seu Mendonça pintou o diabo emquanto viveu. Mas agora é isto. E quem não gostar, paciência, vá á justiça.

Como a justiça era cara, não foram á justiça. E eu, o caminho aplainado, invadi a terra do Fidelis, paralytico dum braço, e a dos Gama, que pandegavam no Recife, estudando direito. Respeitei o engenho do dr. Magalhães, juiz.

Violencias miudas passaram despercebidas. As questões mais serias foram ganhas no foro, graças ás chicanas de João Nogueira.

Effectuei transacções arriscadas, endividei- me, importei machinismos e não prestei attenção aos que me censuravam por querer abarcar o mundo com as pernas. Iniciei a pomicultura e a avicultura. Para levar os meus productos ao mercado, comecei uma estrada de rodagem. Azevedo Gondim compoz sobre ella dois artigos, chamou-me patriota, citou Ford e Delmiro Gouveia. Costa Brito também publicou uma nota na “Gazeta” , elogiando-me e elogiando o chefe politico local. Em consequencia mordeu-me cem mil reis. Não obstante essa propaganda, as difficuldades surgiram. Emquanto estive esburacando S. Bernardo, tudo andou bem; mas quando varei quatro ou cinco propriedades, cahiu-me em cima uma nuvem de maribondos. Perdi dois caboclos e levei um tiro de emboscada. Ferimento leve, tenho a cicatriz no hombro. Exasperado, mandei mais cem mil reis a Costa Brito e procurei João Nogueira e Gondim:

— Desorientem essas cavalgaduras. Olhem que estou fazendo obra publica e não cobro imposto. É uma vergonha. O municipio devia auxiliar-me. Fale com o prefeito, dr. Nogueira. Veja se elle me arranja umas barricas de cimento para os mata-burros.

Não recebi o cimento, mas construi os mata-burros. Como os meus planos eram volumosos e adoptei processos irregulares, as pessoas commodistas julgaram-me doido e deixaram-me em paz.

Tive por esse tempo a visita do governador do Estado. Fazia tres annos que o açude estava concluido — burrice, na opinião do Fidelis.

— Para que açude onde corre um riacho que não secca?

Realmente parecia não servir. Mas sahiu d’ali, numa levada, a agua que foi movimentar as machinas do descaroçador e da serraria.

O governador gostou do pomar, das gallinhas Orpington, do algodão e da mamona, achou con­veniente o gado Limosino, pediu-me photographias e perguntou onde ficava a escola. Respondi que não ficava em parte nenhuma. No almoço, que teve champagne, o dr. Magalhães gemeu um discurso. S. Excia., respondendo, tornou a falar na escola. Tive vontade de dar uns apartes, mas contive-me.

Escola! Que me importava que os outros soubessem ler ou fossem analphabetos?

— Esses homens de governo têm um parafuso frouxo. Mettam pessoal letrado na apanha da mamona. Hão de ver a colheita.

Levantando-se da mesa, Padilha, de olho vidrado, pediu-me em voz baixa cincoenta mil reis.

— Nem um tostão.

E fui mostrar ao illustre hospede a serraria, o descaroçador e o estabulo. Expliquei em resumo a prensa, o dynamo, as serras e o banheiro carrapaticida. De repente suppuz que a escola poderia trazer-me a benevolencia do governador para certos favores que eu tencionava solicitar.

— Pois sim senhor. Quando V. Excia. vier aqui outra vez, encontrará essa gente aprendendo cartilha.

Mais tarde, emquanto dos alicerces da igreja olhavamos a paizagem, chamei de parte o advogado:

— Oh dr. Nogueira, mande-me cá o Padilha amanhã. Preciso falar com elle, mas esse desgraçado nem se aguenta nas pernas. Não se esqueça, ouviu? Amanhã, quando elle cortir o pileque. S. Excia. despediu-se, e aquella data ficou celebre. Os automoveis rolaram na estrada. Olhando a nuvem de poeira que levantavam, esfreguei as mãos :

— Com os diabos! Esta visita me traz uma penca de vantagens. Um capital. Quero ver quanto rende.

A verdade é que, apparentando segurança, eu andava assustado com os credores. Ia bem, sem duvida, o activo era superior ao passivo, mas se aquelles malvados quizessem, capavam-me. Agora os receios diminuiam. A escola seria um capital. Os alicerces da igreja eram tambem capital.

Continuei a esfregar as mãos. Com os diabos! E decidi proteger as Mendonça. A minha prosperidade começara depois da morte do pae dellas. Naquelle tempo algumas braças de massapé valiam muito para mim. Ninharia o massapé.

Senti pena das Mendonça. Mandaria no dia seguinte dar uma limpa no algodão de Bom Successo, enfezado, coberto de mato. Muito por baixo, as Mendonça. O pae era safado, mas que culpa tinham as pobres? Resolvi abrir o olho para que vizinhos sem escrupulos não se apoderassem do que era dellas. Mulheres quasi nunca se defendem. Pois se qualquer daquelles patifes tentasse prejudical-as, estava embrulhado commigo.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1930 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.