S. Bernardo (1934)/Capítulo XI
XI
Amanheci um dia pensando em casar. Foi uma idéa que me veio sem que nenhum rabo de saia a provocasse. Não me occupo com amores, devem ter notado, e sempre me pareceu que mulher é um bicho exquisito, difficil de governar.
A que eu conhecia era a Rosa do Marciano, muito ordinaria. Havia conhecido tambem a Germana e outras dessa laia. Por ellas eu julgava todas. Não me sentia, pois, inclinado para nenhuma: o que sentia era desejo de preparar um herdeiro para as terras de S. Bernardo.
Tentei phantasiar uma criatura alta, sadia, com trinta annos, cabellos pretos — mas parei ahi. Sou incapaz de imaginação, e as coisas boas que mencionei vinham destacadas, nunca se juntando para formar um ser completo. Lembrei-me de senhoras minhas conhecidas: d. Emilia Mendonça, uma Gama, a irmã de Azevedo Gondim, d. Marcella, filha do dr. Magalhães, juiz de direito.
Nesse ponto surgiu-me um pequeno contratempo. Uma tarde surprehendi no oitão da capella (a capella estava concluida; faltava pintura) Luiz Padilha discursando para Marciano e Casimiro Lopes:
— Um roubo. É o que tem sido demonstrado categoricamente pelos philosophos e vem nos livros. Vejam: mais de uma legua de terra, casas, mata, açude, gado, tudo dum homem. Não esta certo.
Marciano, mulato esbodegado, regalou-se, entronchando-se todo e mostrando as gingivas banguelas:
— O senhor tem razão, seu Padilha. Eu não entendo, sou bruto, mas perco o somno assumptando nisso. A gente se mata por causa dos outros. É ou não é, Casimiro?
Casimiro Lopes franziu as ventas, declarou que as coisas desde o começo do mundo tinham dono.
— Qual dono! gritou Padilha. O que ha é que morremos trabalhando para enriquecer os outros.
Sahi da sacristia e estourei:
— Trabalhando em que? Em que é que você trabalha, parasita, preguiçoso, lambaio?
— Não é nada não, seu Paulo, defendeu-se Padilha, tremulo. Estava aqui desenvolvendo umas theorias aos rapazes.
Atirei uma porção de desaforos aos dois, mandei que arrumassem a trouxa, fossem para a casa do diabo.
— Em minha terra não, acabei já rouco. Puxem! Das cancellas para dentro ninguem mija fóra do caco. Peguem as suas burundangas e damnem-se. Com um professor assim, estou bonito. Dou por visto o que este semvergonha ensina aos alumnos.
Mais tarde, porém, cheio de embromações e lamurias, Padilha jurou por todos os santos que a escola funccionava normalmente e que fazia cortar coração deixar tantas crianças sem o pão do saber. Quanto ás theorias, aquillo era só para matar tempo e empulhar o Casimiro.
— Eu metto a mão em combuco? Sou lá capaz de propagar idéas subversivas?
No outro dia pela manhã, choramigando, balbuciando peditorios, a Rosa, com cinco filhos (tres agarrados ás saias, um nos braços, outro no bucho), atracou-me no pomar. E eu, que não tenho grande auctoridade junto della, soceguei-a:
— Mande-me ca o Marciano, aquelle cachorro. Até logo, vou ver.
Á noite reuni Marciano e Padilha na sala de jantar, berrei um sermão comprido para demonstrar que era eu que trabalhava para elles. Mas atrapalhei-me e contentei-me com injurial-os:
— Mal agradecidos, estupidos.
Amunhecaram, e baixei a pancada: — Juizo de gallinha. Embarcando em canoa furada! Tontos.
Dei-lhes conselhos. Encontrando macieza, Luiz Padilha quiz discutir; tornei a zangar-me, e elle se convenceu de que não tinha razão. Marciano encolhia-se, levantava os hombros e intentava metter a cabeça dentro do corpo. Parecia um kagado. Padilha roia as unhas.
— Por esta vez passa. Mas se me constar que vocês andam com saltos de pulga, chamo o delegado de policia, que isto aqui não é a Russia, estão ouvindo? E sumam-se.
Sumiram-se. Ficou-me um resto de indignação, depois serenei.
— Faz de conta que não houve nada.
Lorotas. Todos esses malucos dormem demais, falam á toa.
— Marciano, coitado, nem por isso. Trata bem do gado, é marido da Rosa.
Quanto ao Padilha, eu sentia prazer em humilhal-o mostrando-lhe os melhoramentos que introduzia na propriedade.
E recomecei a elaborar mentalmente a mulher a que me referi no principio deste capitulo. Revistei a Mendonça, a Gama, a irmã do Gondim (eu nem sabia como se chamava a Gondim) e d. Marcella do dr. Magalhaes. D. Marcella era um pancadão. Cada olho! O que tinha de ruim era usar muita tinta no rosto e muitos “ss” na conversa. Paciencia. Perfeito só Deus.
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