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S. Bernardo (1934)/Capítulo XII

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XII


A questão do Pereira estava dormindo no cartorio, esperando que o juiz de direito desse uma pennada nos autos. João Nogueira disse-me isso uma tarde. Eu então, ligando o caso do Pereira aos predicados de d. Marcella, desci no dia seguinte á cidade, resolvido a visitar o dr. Magalhães.

Encontrei-o á noitinha no salão, que servia de gabinete de trabalho, com a filha e tres visitantes: João Nogueira, uma senhora de preto, alta, velha, magra, outra senhora moça, loura e bonita.

Estavam calados, em dois grupos, os homens separados das mulheres.

O dr. Magalhães é pequenino, tem um nariz grande, um pince-nez e por detraz do pince-nez uns olhinhos risonhos. Os beiços, delgados, apertam-se. Só se descollam para o dr. Magalhães falar a respeito da sua pessoa. Tambem quando entra neste assumpto, não pára.

Naquelle momento, porém, como já disse, conservavam-se todos em silencio. D. Marcella sorria para a senhora nova e loura, que sorria tambem, mostrando os dentinhos brancos. Comparei as duas, e a importancia da minha visita teve uma reducção de cincoenta por cento.

Larguei, pois, d. Marcella e procurei, por meios indirectos, arrancar do juiz as linhas indispensaveis ao advogado.

O dr. Magalhães passou a mão pela testa e perguntou:

— Quaes são os jornaes que o senhor assigna?

Respondi que assignava revistas de agricultura, a folha do partido, o Cruzeiro e a Gazeta. Elogiei Azevedo Gondim e ataquei o Brito.

— Um caradura, não é?

O dr. Magalhães amoitou-se. João Nogueira foi á estante de duas prateleiras, tirou um livro, voltou a sentar-se e começou a ler.

Houve no outro lado da sala um sussurro entrecortado de risinhos.

Necessitando pensar, pensei que é exquisito este costume de viverem os machos apartados das femeas. Quando se entendem, quasi sempre são levados por motivos que se referem ao sexo. Vem d’ahi talvez a malicia excessiva que ha em torno de coisas feitas innocentemente. Dirijo-me a uma senhora, e ella se encolhe e se arrepia toda. Se não se encolhe nem se arrepia, um sujeito que está de fóra jura que ha safadeza no caso.

— Não tem apparecido ultimamente no cinema, hein? disse em voz alta a senhora de preto. — Faz quinze dias, d. Gloria, respondeu d. Marcella. Acho que faz quinze dias. Oh papae, quanto tempo faz que nós fomos ao cinema?

O dr. Magalhães calculou. Tirou do bolso um cigarro, dividiu-o em duas partes, transformou uma dellas num cigarrinho fino, accendeu-o:

— Duas semanas.

— É isso mesmo, quinze dias.

— Não, discordou o dr. Magalhães, duas semanas. Você está equivocada.

— Duas semanas não são quinze dias? perguntou d. Marcella.

— Não. Duas semanas são quatorze dias.

D. Marcella não se convenceu :

— Sempre ouvi dizer que duas semanas são quinze dias.

— Eu tambem tenho ouvido, confessou o dr. Magalhães. Tenho ouvido até muitas vezes. Mas é engano. Uma semana tem sete dias. Sete e sete não são quatorze? E então? São quatorze.

João Nogueira soltou o livro. Talvez d. Marcella contasse com o dia do cinema.

— É possivel, accedeu o dr. Magalhães. Não contando, são quatorze.

— Mas contando, são quinze, gritou d. Marcella.

— É bom não contar, aconselhou o dr. Magalhães.

Despertaram todos, e a lourinha fez um movimento para se levantar. — Muito cedo, murmurou d. Marcella.

A senhora de preto continuou sentada e en­trou a discorrer sobre romances. D. Marcella ti­nha acabado um, de aventuras. Ia ver se se lem­brava do enredo. Mas enganchou-se e não acer­tou com os nomes dos personagens. Recomeçou, tornou a enganchar-se:

— Um romance que faz gosto, d. Gloria.

— Eu não gosto de literatura, disse o dr. Magalhães. Folheei algumas obras antigamente. Hoje não. Desconheço tudo isso. Sou apenas juiz, pchiu! juiz.

D. Marcella estava quasi acertando com o en­redo do romance de aventuras. D. Gloria escuta­va. A loura tinha a cabecinha inclinada e as mãozinhas cruzadas, lindas mão, linda cabeça.

— Quando julgo, annunciava o dr. Magalhães, abstraio-me, afasto os sentimentos.

— Estive comentando isso hontem á tarde com o dr. Nogueira, atalhei.

O dr. Magalhães agradeceu.

— Para proceder assim é necessário ter independencia. Eu tenho independencia. Que é que elles podem fazer commigo? Não preciso delles.

Ignoro a que pessoas se referia o dr. Maga­lhães. João Nogueira tocou-lhe no hombro e cochichou. Comprehendi que se tratava do negocio do Pereira.

Levantei-me, arredei-me, para não prejudicar a integridade do juiz e para desemburrar-me um pouco. Fui á janella, accendi o cachimbo.

D . Marcella ia terminando a narração do romance. O advogado estava satisfeito. Apertei nos dentes o cachimbo e esfreguei as mãos com força:

— Ora muito bem. Que me dizem os senho­res da chapa do partido? Não conheço os candidatos, mas supponho que ha uns dois ou tres orado­res arrojados.

— O senhor acredita nisso? perguntou João Nogueira.

— Em que?

— Eleições, deputados, senadores.

Retrahi-me, indeciso, porque não tenho idéas seguras a respeito dessas coisas.

— A gente se acostuma com o que vê. E eu, desde que me entendo, vejo eleitores e urnas. Ás vezes supprimem os eleitores e as urnas: bastam livros. Mas é bom um cidadão pensar que tem influencia no governo, embora não tenha nenhu­ma. Lá na fazenda o trabalhador mais desgraçado está convencido de que, se deixar a peroba, o ser­viço emperra. Eu cultivo a illusão. E todos se interessam.

João Nogueira reflectiu um instante:

— O que eu acho é que os deputados e os se­nadores são innuteis e comem demais.

Ia responder, mas notei que o dr. Magalhães se mexia. Fiquei com a resposta nas guelas. Elle conteve-se, e estivemos um minuto nesse jogo, cada um esperando pelo outro. Observei então que a mocinha loura voltava para nós, attenta, os grandes olhos azues.

De repente conheci que estava querendo bem á pequena. Precisamente o contrario da mulher que eu andava imaginando — mas agradava-me, com os diabos. Miudinha, fraquinha. D. Marcella era bichão. Uma peitaria, um pé de rabo, um toitiço!

Como o silencio se prolongasse, repliquei ao Nogueira, quasi me dirigindo á lourinha:

— Existem coisas inúteis que nós conserva­mos. Eu conservo este cachimbo, que é inútil e até me faz mal.

Enchi o cachimbo :

— Que, para ser franco, nem sei se elle é inutil. Talvez não seja. Por isso vou ás eleições. O senhor com certeza não quer acabar com as leis.

O dr. Magalhães, para quem a lei escripta é como o ar, escandalizou-se:

— Oh!

— Não, tornou João Nogueira. Que essas do congresso ordinariamente não prestam. O que é bom acabar é o congresso. As leis deviam ser fei­tas por especialistas.

— Ah! suspirou o dr. Magalhães, alliviado.

Leis ou decretos, desde que estivessem no papel, em fórma, era tudo o mesmo. Cruzou as pernas, balançou a cabeça, estirou o beiço e levantou um dedo: — O que precisamos é uma élite.

— Perfeitamente, apoiou João Nogueira, uma oligarchia.

— Mas o dr. Magalhães embirrou com o nome:

— Ah! não.

— Ora essa! exclamou João Nogueira. Só podemos ter no governo uma élite de poucos individuos. É oligarchia.

— Mas que é que a opposição faz senão berrar nos jornaes e nos meetings contra isso? perguntei.

— A opposição não sabe o que diz. Nós temos lá oligarchia? Temos uma quantidade enorme de cavadores no poder. Só os congressistas! E os ministros, os presidentes, os governadores, os secretarios, os politicos do sul. Muito dente roendo o thesouro. E que sucia! Veja os nossos representantes no congresso federal. Que diz, seu Magalhães?

O dr. Magalhães não dizia nada.

— Nunca leio politica. Sou apenas juiz. Estudo, compulso os meus livros, pchiu! Accordo cedo, tomo uma chicara de café, pequena, faço a barba, vou ao banho. Depois passeio pelo quintal, volto, distraio-me com as revistas e almoço, pouco, por causa do estomago. Descanço uma hora, escrevo, consulto os mestres. Janto, dou um giro pela cidade, á noite recebo os amigos, quando apparecem, durmo.

D. Gloria não se conteve: — Obra com acerto, é preciso preservar a saude.

João Nogueira deu ao rosto uma expressão safada:

— Sem duvida, é preciso preserval-a. Mas, como iamos dizendo, isto nunca foi oligarchia. Ha gente demais.

— Pois se, havendo tanta, a opposição grita, imagine se o numero fosse menor. Ahi é que a gri­taria não findava.

— Porque?

— Porque muitos dos que estão em cima es­tariam em baixo, o descontentamento seria maior.

Como o advogado se approximasse da janella, soprei-lhe ao ouvido:

— Elle prometteu o despacho?

João Nogueira affirmou com um gesto. Des­pedi-me:

— Não concordo com o senhor não, dr. Nogueira. A Republica vai bem. Só a justiça que temos... Reflicta.

— Eu por mim sou apenas juiz, disse o dr. Magalhães. Estudo, consulto os bons autores...

Demorei-me até que elle terminasse, despedi-me pela segunda vez e sahi.

Percorri a cidade, bestando, impressionado com os olhos da mocinha loura e esperando um acaso que me fizesse saber o nome della. O acaso não veio, e decidi procurar João Nogueira, infor­mar-me do nome, posição, familia, as particularidades necessarias a quem pretende dar uma cabeçada seria. Ás dez horas fui á redacção do Cruzeiro, mas só encontrei Archimedes, compon­do. Estive no bilhar do Souza. Não havia freguezes; apenas um, meio golado.

— O dr. Nogueira deve estar em casa da Ernestina.

Eu não sabia onde era a casa da Ernestina. Cerca de meia-noite descobri o advogado no ho­tel, discutindo poesia com Azevedo Gondim. Escutei uma hora, desejoso de instruir-me. Não me instrui.

— Dr. Nogueira, faz obséquio? É um ins­tante, Gondim.

Mas tive acanhamento de tocar naquelle as­sumpto delicado, receei tornar-me ridiculo, ima­ginei que podia o Nogueira andar também arras­tando a aza para a lourinha e, sentindo uma especie de despeito, pedi informações minuciosas so­bre o processo do Pereira.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1930 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.