Saltar para o conteúdo

S. Bernardo (1934)/Capítulo XIII

Wikisource, a biblioteca livre


XIII


Tornei a encontrar a mocinha loura. Eu vol­tava da capital, aonde tinha ido por cansa do semvergonha do Brito.

A coisa se deu assim. Depois do meu telegramma (lembram-se: o telegramma em que re­cusei duzentos mil reis áquelle pirata), a Gazeta entrou a diffamar-me. A principio foram mofi­nas cheias de rodeios, com muito vinagre em se­guida o ataque tornou-se claro e sahiram dois ar­tigos furiosos em que o nome mais doce que o Brito me chamava era assassino. Quando li essa infamia, armei-me dum rebenque e desci á cidade.

— O que o senhor deve fazer é processal-o, aconselhou João Nogueira. É facil mettel-o na cadeia.

— E querendo defender-se, tem cá o Cruzei­ro, insinuou Azevedo Gondim. Pode escrever. Ou então escrevo eu, ou escreve o Nogueira. Infelizmente o Cruzeiro circula pouco. Mas é o que temos. Disponha.

— Obrigado, Gondim; obrigado, dr. Nogueira. Depois resolvemos. Não vale a pena quebrar a cabeça com uma tolice dessa.

E ficámos no hotel até onze da noite, jogan­do dominó a tostão o tento.

No outro dia tomei o trem, ferrei no somno e accordei ás dez horas, na estação central. Logo ali, com o rebenque debaixo do braço, comecei a examinar as caras.

Subi a rua do Commercio, dobrei o Livramen­to, a Alegria e parei em frente á Gazeta. Olhei um instante, pelas grades, as caixetas immundas, entrei, atravessei a sala de composição, a de im­pressão e, lá no fundo, desemboquei na redacção, onde só estava um rapaz amarello preparando telegrammas com os jornaes do Recife da vespera. O director tinha ido a Pajussara.

— Obrigado.

Voltei pelo mesmo caminho e estive uma hora no relogio official, observando os passageiros dos bondes da ponta da Terra. A final surgiu o foci­nho de rato do Brito.

— Olá!

Recuou, tentou retomar o estribo, mas o car­ro já ia longe. Franziu a testa com dignidade. Vendo o rebenque, empallideceu e gaguejou:

— Bons olhos o vejam. Que sorte! Sim se­nhor, precisamos conversar.

Agarrei-lhe o braço, puxei-o para junto do relogio e disse-lhe, quasi cochichando para não es­pantar os transeuntes:

— Então, seu filho duma egua, esses arti­gos...

— Aquillo é matéria paga, explicou o Brito. Secção livre, não viu logo? Vamos á redacção, lá nos entendemos melhor.

Em resposta passei-lhe os gadanhos no cacha­ço e dei-lhe um bando de chicotadas. Juntaram-se muitas pessoas, um guarda civil apitou, houve protestos, gritos, afinal Costa Brito conseguiu escapulir-se e azulou pelo Commercio, em direcção aos Martyrios.

Encaminhei-me ao hotel, mas nem tive tem­po de almoçar, porque fui chamado á policia. Apertaram-me com interrogatorios redundantes, perdi o trem das tres e não consegui demonstrar ao de­legado que elle era ranzinza e estupido. Aborre­cido, aporrinhado, recorri a um bacharel (trezen­tos mil reis, fóra despesas miúdas com automovel, gorgetas, etc.) e embarquei vinte e quatro horas depois, levando nos ouvidos um sermão do secretario do interior, que me seringou liberdade de im­prensa e outros disparates.

No wagon comprei os jornaes do dia. Nenhum noticiava o espalhafato. Camaradas. Comecei a ler umas coisas interessantes sobre a apicultura. Pouco a pouco esqueci as burrices do delegado e o liberalismo do secretario. E, reconciliado com o Brito, confessei a mim mesmo que elle tinha bom coração e provavelmente não reincidiria. Concentrei-me na leitura. Effectivamente as abelhas se­riam para nós uma fonte de riqueza.

Nesse ponto veio sentar-se a meu lado uma se­nhora vestida de preto. Como o sol a incommo­dasse, baixei a portinhola.

— Agradecida.

Reparando nella, reconheci a mulher que, um mez antes, em casa do dr. Magalhães, escutava o romance de d. Marcella.

— Não tem de que, d. Gloria.

Notei que ella estava com um pacote a furar-se nos joelhos agudos e pedi-o, colloquei-o junto á minha bagagem. Era uma velha acanhada: sor­riso insignificante e modos de pobre. O trem poz-se em movimento. E encetámos um dialogo que se foi animando até nos tornarmos amigos.

— Esta Great Western é uma joça. Porcaria! Isto nunca foi carro. Que chiqueiro!

Inicio de ordinario com phrases assim as minhas viagens a trem. D. Gloria sobresaltou-se, re­ceando que a companhia ouvisse. Em tom confi­dencial, achou que os carros não eram bons.

— Péssimos, d. Gloria.

Ella attentou em mim com respeito:

— Creio que já nos vimos. Não me lembro. A minha memória é uma lastima.

— Em casa do juiz, o mez passado. A senho­ra e uma mocinha loura...

Arregalou os olhos:

— Ah! sim. E a conversa cahiu. Para levantal-a, abri o jornal e preguei-lhe um dedo:

— Está aqui um artigo baita sobre a apicul­tura. O auctor disto é osso.

Não comprehendeu. De repente exclamou :

— Agora me recordo. O senhor estava com o dr. Nogueira, discutindo politica.

— É isso mesmo.

Houve uma pausa.

— O senhor mora na capital?

— Não, moro no interior.

— Em Viçosa?

— É.

— Eu também, ha pouco tempo. Mas cida­de pequena... Horrivel, não é?

— A cidade pequena? E a grande. Tudo é horrivel. Gosto do campo, entende? do campo.

D . Gloria fechou a cara:

— Mato? Santo Deus! Mato só para bicho. E o senhor vive no mato?

— Em S. Bernardo.

D. Gloria não conhecia S. Bernardo, e essa ignorância me offendeu, porque para mim S. Bernardo era o lugar mais importante do mundo.

— Uma boa fazenda. Não ha lá essa agua podre que se bebe por ahi. Lama. Não senhora, ha conforto, ha hygiene.

D. Gloria rectificou a espinha, ergueu a voz e desfez o ar apoucado:

— Não me dou. Nasci na cidade, criei-me na cidade. Sahindo d'ahi, sou como peixe fóra da agua. Tanto que estive cavando transferencia para um grupo da capital. Mas é preciso muito pistolão. Promessas...

— Ah! É professora?

— Não. Professora é minha sobrinha.

— Aquella moça que estava com a senhora em casa do dr. Magalhães?

— Sim.

— E como é a graça de sua sobrinha, d. Gloria ?

— Magdalena. Veja o senhor. Fez um curso brilhante...

— Espere lá. O Nogueira e o Gondim me falaram nella. Mulher prendada, bonita. Perfeitamente. O Gondim falou muito. O Gondim do Cruzeiro, um da venta chata.

— Sei.

E recolheu, sorrindo, os elogios á sobrinha.

— Pois uma menina como aquella encafuar-se num buraco, seu...

— Paulo Honorio, d. Gloria. Faz pena. Isso de ensinar beabá é tolice. Perdoe a indiscreção, quanto ganha sua sobrinha ensinando beabá?

D. Gloria baixou a voz para confessar que as professoras de primeira entrancia tinham apenas cento e oitenta mil reis.

— Quanto?

— Cento e oitenta mil reis.

— Cento e oitenta mil reis ? Está ahi! É uma desgraça, minha senhora. Como diabo se sustenta um christão com cento e oitenta mil reis poi mez? Quer que lhe diga? Faz até raiva ver uma pessoa de certa ordem sujeitar-se a semelhante miseria. Tenho empregados que nunca estudaram e são mais bem pagos. Porque não aconselha sua so­brinha a deixar essa profissão, d. Gloria?

D . Gloria referiu-se á difficuldade de arran­jar empregos e ao monte-pio.

— Que monte-pio! Isso vale nada! E em­pregos... Vou indicar um meio de sua sobrinha e a senhora ganharem dinheiro a rodo. Criem gallinhas.

D . Gloria formalizou-se, e um passageiro proximo, como eu gritava enthusiasmado, poz-se a rir. Era um mocinho de bigodinho e rubi no dedo. Approximei delle o rosto cabelludo e a mão cabelluda:

— O senhor está rindo sem saber de que. Vejo que possue uma carta. Quanto lhe rende? Se não tem pae rico, deve ser promotor publico. Faria melhor negocio criando gallinhas.

O mocinho encabulou.

— Boa occupação, d. Gloria, occupação de­cente. Se quizer dedicar-se a ella, recommendo-lhe a Orpington. Escola! Bestidade. Abri uma na fazenda e entreguei-a ao Padilha. Sabe quem é? Um idiota. Mas diz elle que ha progresso. E eu acredito. Pelo menos o Gondim e padre Silvestre estiveram lá examinando a molecoreba e acharam tudo em ordem.

D. Gloria enrugou e desenrugou a cara:

— Cada qual tem o seu meio de vida.

— Historia! Dê um salto a S. Bernardo para eu lhe mostrar o que é uma lavoura de fazer agua na boca.

Essa conversa, é claro, não sahiu de cabo a rabo como está no papel. Houve suspensões, repetições, malentendidos, incongruencias, naturaes quando a gente fala sem pensar que aquillo vai ser lido. Reproduzo o que julgo interessante. Supprimi diversas passagens, modifiquei outras. O discurso que atirei ao mocinho do rubi, por exemplo, foi mais energico e mais extenso que as linhas chochas que aqui estão. A parte referente á enxaqueca de d. Gloria (e a enxaqueca occupou, sem exaggero, metade da viagem) virou fumaça. Cortei igualmente, na copia, numerosas tolices ditas por mim e por d. Gloria. Ficaram muitas, as que as minhas luzes não alcançaram e as que me pareceram uteis. É o processo que adopto: extraio dos acontecimentos algumas parcellas; o resto é bagaço. Ora vejam. Quando arrastei Costa Brito para o relogio official, appliquei-lhe uns quatro ou cinco palavrões obscenos. Esses palavrões, desnecessarios porque não augmentaram nem diminuiram o valor das chicotadas, sumiram-se, conforme notará quem reler a scena da aggressão, scena que, expurgada dessas indecencias, está descripta com bastante sobriedade.

Uma coisa que omitti e que produziria bom effeito foi a paizagem. Andei mal. Effectivamente a minha narrativa dá idéa duma palestra realizada fóra da terra. Eu me explico: ali, com a portinhola fechada, apenas via de relance, pelas outras janellas, pedaços de estações, pedaços de mata, usinas e cannaviaes. Muitos cannaviaes, mas este genero de agricultura não me interessa. Vi tambem novilhos zebus, gado que, na minha opinião, está acabando de escangalhar os nossos rebanhos.

Hoje isso fórma para mim um todo confuso, e se eu tentasse uma descripção, arriscava-me a misturar os coqueiros da lagoa, que appareceram ás tres e quinze, com as mangueiras e os cajueiros, que vieram depois. Essa descripção, porém, só seria aqui embutida por motivos de ordem technica. E não tenho o intuito de escrever em conformidade com as regras. Tanto que vou commetter um erro. Presumo que é um erro. Vou dividir um capitulo em dois. Realmente o que se segue podia encaixar-se no que procurei expor antes desta digressão. Mas não tem duvida, faço um capitulo especial por causa da Magdalena.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1930 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.