S. Bernardo (1934)/Capítulo XIV
XIV
Na estação d. Gloria apresentou-me a sobrinha, que tinha ido recebel-a. Atrapalhei-me e, para desoccupar a mão, deixei cahir um dos pacotes que ia entregar ao ganhador.
— Muito prazer. Eu já conhecia a senhora de nome. E de vista. Mas não sabia que era uma pessoa só. Encontrámo-nos ha dias.
— Ha um mez.
— Perfeitamente. Estive conversando sobre isso com sua tia, optima companheira de viagem. Sim senhora, muito prazer.
Dirigi-me ao hotel. E como a casa dellas era no meu caminho, sahimos juntos.
— D. Marcella disse-me que o senhor tem uma propriedade bonita, começou Magdalena.
— Bonita? Ainda não reparei. Talvez seja bonita. O que sei é que é uma propriedade regular.
E embuchei, afobado. Até então os meus sentimentos tinham sido simples, rudimentares, não havia razão para occultal-os a criaturas como a Germana e a Rosa. A essas azunia-se a cantada sem rodeios, e ellas não se admiravam, mas uma senhora que vem da escola normal é differente. Emburrei, pois, e contei os embrulhos que o ganhador equilibrava na cabeça. Fiz um esforço para endereçar amabilidades a d. Gloria:
— O convite está de pé, sim senhora, e eu tenho a sua promessa de ir passar uns dias na fazenda. Espero que leve a professora. Vem um automovel, em dez minutos estão lá.
D. Gloria não tinha promettido nada. Magdalena espantou-se:
— Ah! não.
— Porque? Agora com as ferias...
— Passeios... Isso é para rico.
E, sorrindo:
— Que diria sua familia se o senhor mettesse duas desconhecidas em casa?
Ahi quem se espantou fui eu:
— Mas não tenho familia, minha senhora, nunca tive. Vivo só, com Deus.
— Então é peor, respondeu Magdalena.
— Inconveniente, declarou d. Gloria.
Cocei a barba:
— É pena. Um lugar tão bom para uma pessoa se refazer! Acabou-se. Se é inconveniente, fica o dito por não dito.
Depois tornei :
— Mas inconveniente porque? Pois eu tinha muito gosto em mostrar a d. Gloria uns marrecos de Pekin que são mesmo uma belleza. Já viu os marrecos de Pekin, d. Magdalena?
— Ainda não.
— Está ahi! resmunguei. Estudam a vida inteira nem sei para que.
— Descançar um pouco? disse d. Gloria.
Estavamos á porta da casa dellas, na Cannafistula.
— Obrigado. Vou chegando ao hotel.
Demorei-me ainda um minuto:
Estão as senhoras aqui pessimamente installadas. Adeus. E se resolverem ir a S. Bernardo, avisem, para mandar o automovel.
— Perfeitamente, disse d. Gloria. E muito agradecida pela companhia.
— Não tem de que.
No hotel marchei para o banheiro, fui tirar o carvão e o suor. E ia-me sentando á mesa quando chegaram João Nogueira, Azevedo Gondim e padre Silvestre.
— Então que desordem foi essa? perguntou Azevedo Gondim. Soubemos hontem á noite.
— Imagine como nos assustámos, accrescentou o vigario. Um escandalo! É verdade que o Brito andou mal.
— Andou. Necessidade. Elle não é ruim. Queria duzentos mil reis, coitado, e eu torci o corpo. Tolice: gastei bem seiscentos, sem contar a aporrinhação de dois dias. O diabo é que, se elle recebesse os duzentos, havia de pedir mais duzentos e assim por diante.
— A noticia que circulou hontem foi que elle estava no hospital, com uma punhalada, informou padre Silvestre. Constou até que tinha morrido. Felizmente hoje socegámos. Ferimentos leves, não?
— Que ferimentos! O que houve foi troca de palavras. O Brito disse uns desaforos, eu disse outros, juntou-se gente e a policia entrou na questão, que não era com ella. Não houve nada.
— Logo vi, bradou padre Silvestre. Um homem prudente como o senhor não ia provocar barulho.
— Essa agora! gritou Azevedo Gondim. Pois eu tinha escripto duas columnas sobre o caso para o numero de domingo.
João Nogueira approximou-se e falou-me ao ouvido:
— Francamente, que foi que houve?
— Uma arenga sem importância.
E, pegando a occasião:
— Oh dr. Nogueira, quem é aquella d. Gloria?
— A tia da professora?
— Sim. Que tal é essa familia?
— Em que sentido?
— Em tudo, respondi evasivamente. A velha viajou hoje commigo, no trem. É sympathica.
— Mas que interesse tem o senhor...
— É que a mulher, indirectamente, tocou-me numa pretenção: transferencia da sobrinha. Eu nunca vi o director da instrucção publica, mas dou-me com o Silveira, que faz regulamentos. Talvez não fosse impossivel conseguir a transferencia. Se ellas merecem, está claro.
— Mas é uma excellente professora, seu Paulo, e um nobre caracter. O senhor quer retiral-a! Que lembrança! Se ella sahir, sabe o que acontece? Mandam para cá uma velha analphabeta.
— Tem razão.
E, em voz alta :
— Jantar?
— Agradeceram e despediram-se. Padre Silvestre abraçou-me:
— O amigo numa entalação dessa! A culpa foi do Brito. Elle é meio esquentado, mas ultimamente a orientação que vem dando á Gazeta é boa.
Acompanhei-os :
— Oh Gondim, eu precisava falar com você.
Ficou.
— Estou morrendo de fome, Gondim. Dois dias quasi sem comer! Calcule. Vamos jantar?
Recusou o jantar, mas acceitou um copo de cerveja. Quando cheguei á sobremesa, elle ia na terceira garrafa.
— Oh Gondim, você me falou ha tempo numa professora.
— A Magdalena?
— Sim. Encontrei-a uma noite destas e gostei da cara. É moça direita?
Azevedo Gondim encetou a quarta garrafa de cerveja e desmanchou-se em elogios.
— Mulher superior. Só os artigos que publica no Cruzeiro!
Desanimei:
— Ah! Faz artigos!
— Sim, muito instruida. Que negocio tem o senhor com ella?
— Eu sei lá! Tinha um projecto, mas a collaboração no Cruzeiro me esfriou. Julguei que fosse uma criatura sensata.
— Essa agora! bradou Gondim picado. O senhor tem cada uma!
— Está bem. Para você não ha segredo. Ouça. Estou aborrecido com o Padilha.
— Alguma carraspana que elle tomou?
— Peor. Anda querendo botar socialismo na fazenda. Surprehendi-o dizendo besteiras. Não liguei importancia, tanto que o conservei, mas, o caso bem pensado, talvez fosse melhor arranjar para elle outra collocação, fóra.
— E convidar a Magdalena.
— Sim, estive pensando. Não sei. Se ella for moça de bons costumes.
— De bons costumes? Claro. O diabo é que talvez não acceite. Morar nas brenhas!
— Isso são bobagens da tia, uma velha tonta. Mas a outra, se tem juizo como você diz, acceita.
Azevedo Gondim mastigava amendoins torrados e bebia cerveja:
— É, pode ser. Vantagem para ella, com certeza, augmento de ordenado.
— Sem duvida.
— Pode ser. Eu só tenho pena do pobre do Padilha.
— Não. Cavo uma collocação para elle. Já não lhe disse? É um canalha, coitado. E a respeito da moça...
— O senhor entendeu-se com ella?
— Não, homem. Se me tivesse entendido, não estava consultando você. Oh Gondim, faça-me um favor. Foi justamente para isso que lhe pedi que ficasse. Sonde a mulher.
Azevedo Gondim resistiu, encarecendo o serviço que ia prestar:
— Mas eu não tenho intimidade com ella. Fale o senhor.
— Impossivel. Ha dois dias que estou ausente. Preciso chegar em S. Bernardo hoje. E não sei a maneira de tratar com essa gente. Muitas voltas... Peite a moça, Gondim, faça-me o favor.
— Pois sim. Arrumo-lhe a paizagem, a poesia do campo, a simplicidade das almas. E se ella não se convencer, sapeco-lhe um bocado de patriotismo por cima.
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
