S. Bernardo (1934)/Capítulo XIX
XIX
Conheci que Magdalena era boa em demasia, mas não conheci tudo duma vez. Ella se revelou pouco a pouco, e nunca se revelou inteiramente. A culpa foi minha, ou antes a culpa foi desta vida agreste, que me deu uma alma agreste.
E, falando assim, comprehendo que perco o tempo. Com effeito, se me escapa o retrato moral de minha mulher, para que serve esta narrativa? Para nada, mas sou forçado a escrever.
Quando os grillos cantam, sento-me aqui á mesa da sala de jantar, bebo café, accendo o cachimbo. Ás vezes as idéas não vêm, ou vêm muito numerosas — e a folha permanece meio escripta, como estava na vespera. Releio algumas linhas, que me desagradam. Não vale a pena tentar corrigil-as. Afasto o papel.
Emoções indefiniveis me agitam — inquietação terrivel, desejo doido de voltar, de tagarelar novamente com Magdalena, como faziamos todos os dias, a esta hora. Saudade? Não, não é isto: é desespero, raiva, um peso enorme no coração.
Procuro recordar o que diziamos. Impossivel. As minhas palavras eram apenas palavras, reproducção imperfeita de factos exteriores, e as della tinham alguma coisa que não consigo exprimir. Para sentil-as melhor, eu apagava as luzes, deixava que a sombra nos envolvesse até ficarmos dois vultos indistinctos na escuridão.
Lá fóra os sapos arengavam, o vento gemia, as arvores do pomar tornavam-se massas negras.
— Casimiro!
Casimiro Lopes estava no jardim, acocorado ao pé da janella, vigiando.
— Casimiro!
A figura de Casimiro Lopes apparece á janella, os sapos gritam, o vento sacode as arvores, apenas visiveis na treva. Maria das Dores entra e vai abrir o commutador. Detenho-a: não quero luz.
O tic-tac do relogio diminue, os grillos começam a cantar. E Magdalena surge no lado de lá da mesa. Digo baixinho:
— Magdalena!
A voz della me chega aos ouvidos. Não, não é aos ouvidos. Tambem já não a vejo com os olhos.
Estou encostado á mesa, as mãos cruzadas. Os objectos fundiram-se, e não enxergo sequer a toalha branca.
— Magdalena...
A voz de Magdalena continua a acariciar-me. Que diz ella? Naturalmente pede para mandar algum dinheiro a mestre Caetano. Isto me irrita, mas a irritação é differente das outras, é uma irritação antiga, que me deixa inteiramente calmo. Que loucura estar uma pessoa ao mesmo tempo zangada e tranquilla! Mas estou assim. Irritado contra quem? Contra mestre Caetano. Não obstante elle ter morrido, acho bom que vá trabalhar. Mandrião!
A toalha reapparece, mas não sei se é esta toalha sobre que tenho as mãos cruzadas ou a que estava aqui ha cinco annos.
Rumor do vento, dos sapos, dos grillos. A porta do escriptorio abre-se de manso, os passos de seu Ribeiro afastam-se. Uma coruja pia na torre da igreja. Terá realmente piado a coruja? Será a mesma que piava ha dois annos? Talvez seja até o mesmo pio daquelle tempo.
Agora seu Ribeiro está conversando com dona Gloria no salão. Esqueço que elles me deixaram e que esta casa está quasi deserta.
— Casimiro!
Penso que chamei Casimiro Lopes. A cabeça delle, com o chapeo de couro de sertanejo, assoma de vez em quando á janella, mas ignoro se a visão que me dá é actual ou remota.
Agitam-se em mim sentimentos inconciliaveis: encolerizo-me e enterneço-me; bato na mesa e tenho vontade de chorar.
Apparentemente estou socegado: as mãos contiinuam cruzadas sobre a toalha e os dedos parecem de pedra. Entretanto ameaço Magdalena com o punho. Exquisito.
Distingo no ramerrão da fazenda as mais insignificantes minudencias. Maria das Dores, na cozinha, dá lições ao papagaio. Tubarão rosna acolá no jardim. O gado muge no estabulo.
O salão fica longe: para irmos lá temos de atravessar um corredor comprido. Apesar disso a palestra de seu Ribeiro e d. Gloria é bastante clara. A difficuldade seria reproduzir o que elles dizem. E' preciso admittir que estão conversando sem palavras.
Padilha assobia no alpendre. Onde andará Padilha?
Se eu convencesse Magdalena de que ella não tem razão... Se lhe explicasse que é necessario vivermos em paz... Não me entende. Não nos entendemos. O que vai acontecer será muito differente do que esperamos. Absurdo.
Ha um grande silencio. Estamos em Julho. O nordeste não sopra e os sapos dormem. Quanto ás corujas, Marciano subiu ao forro da igreja e acabou com ellas a pau. E foram tapados os buracos de grillos.
Repito que tudo isso continua a azucrinar-me.
O que não percebo é o tic-tac do relogio. Que horas são? Não posso ver o mostrador assim ás escuras. Quando me sentei aqui, ouviam-se as pancadas da pendula, ouviam-se muito bem. Seria conveniente dar corda ao relogio, mas não consigo mexer-me.
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
