S. Bernardo (1934)/Capítulo XV
XV
Depois do convite, tornei-me quasi intimo das duas mulheres. Magdalena não se decidiu logo. E eu, a pretexto de saber a resposta, comecei a frequentar a casinha da Cannafistula. Um dia dei uns toques a d. Gloria:
— Porque é que sua sobrinha não procura marido?
Melindrou-se:
— Minha sobrinha não é feijão bichado para se andar offerecendo.
— Nem eu digo isso, minha senhora. Deus me livre. É um conselho de amigo. Garantir o futuro...
D. Gloria empinou a columna vertebral, e o peito cavado se achatou. Esse movimento de dignidade repentina fazia-lhe o vestido preto, já gasto, ficar esticado na barriga e frouxo nas costas. Resmungou palavras imperceptiveis. Pouco a pouco voltou á posição normal, a omoplata adaptou-se novamente ao panno coçado e o gargarejo tornou-se comprehensivel:
— Está visto que o casamento para as mulheres é uma situação...
— Razoavel, d. Gloria. E até é bom para a saude.
— Mas ha tantos casamentos desastrados... Demais isso não é coisa que se imponha.
— Não, infelizmente. É preciso propor. Tudo mal organizado, d. Gloria. Ha lá ninguem que saiba com quem deve casar?
— Quanto a mim, acho que em questões de sentimento é indispensavel haver reciprocidade.
— Qual reciprocidade! Pieguice. Se o casal for bom, os filhos saem bons; se for ruim, os filhos não prestam. A vontade dos paes não tira nem põe. Conheço o meu manual de zootechnia.
Depois dessa conversa, a colheita do algodão prendeu-me duas semanas em S. Bernardo. Reflecti algumas vezes no caso. Era provavel que d. Gloria houvesse batido com a lingua nos dentes. Que teria dito? Appareci a Magdalena com medo de ser mal recebido por causa da suggestão. Fui bem recebido:
— Como vai a lavoura?
— Vai regularmente. Creio que vai regularmente: ainda não posso prever o resultado da safra. E a sua escola? Os meninos, a d. Gloria, sem novidade? Estimo. O que é certo é que a senhora não se importa com lavoura, e eu vinha tratar de outro assumpto.
— O convite que me fez pelo Gondim?
Vacillei:
— Mais ou menos.
— Já lhe devia ter respondido que não acceito.
— Que diabo! Mas o augmento do ordenado, filha de Deus?
— Não convem. Estou em seis annos de magisterio, não deixo o certo pelo duvidoso. Essas escolas particulares hoje se abrem, amanhã se fecham...
Fiz-lhe um cumprimento:
— Felicito-a pela sua prudencia. Effectivamente a senhora se arriscava a ficar sem mel nem cabaço.
— Se o senhor reconhece...
— Reconheço. E venho trazer-lhe outra proposta. Para ser franco, essa historia de escola foi tapeação.
Magdalena esperava, com uma rugazinha entre as sobrancelhas.
— O que vou dizer é difficil. Deve comprehender... Emfim, para não estarmos com prologos, arreio a trouxa e falo com o coração na mão.
Tossi, encallistrado:
— Está ahi. Resolvi escolher uma companheira. E como a senhora me quadra... Sim, como me engracei da senhora quando a vi pela primeira vez...
Engasguei-me. Seria, pallida, Magdalena permaneceu calada, mas não parecia surprehendida.
— Já se vê que não sou o homem ideal que a senhora tem na cabeça.
Afastou a phrase com a mão fina, de dedos compridos:
— Nada disso. O que ha é que não nos conhecemos.
— Ora essa! Não lhe tenho contado pedaços da minha vida? O que não contei vale pouco. A senhora, pelo que mostra e pelas informações que peguei, é sisuda, economica, sabe onde tem as ventas e pode dar uma boa mãe de familia.
Magdalena foi á janella e esteve algum tempo debruçada, olhando a rua. Quando se voltou, eu passeava pela sala, enchendo o cachimbo.
— Deve haver muitas differenças entre nós.
— Differenças? E então? Se não houvesse differenças, nós seriamos uma pessoa só. Deve haver muitas. Com licença, vou accender o cachimbo. A senhora aprendeu varias embrulhadas na escola, eu aprendi outras quebrando a cabeça por este mundo. Tenho quarenta e cinco annos. A senhora tem uns vinte.
— Não, vinte e sete.
— Vinte e sete? Ninguem lhe dá mais de vinte. Pois está ahi. Já nos approximamos. Com um bocado de boa vontade, em uma semana estamos na igreja.
— O seu offerecimento é vantajoso para mim, seu Paulo Honorio, murmurou Magdalena. Muito vantajoso. Mas é preciso reflectir. De qualquer maneira, estou agradecida ao senhor, ouviu? A verdade é que sou pobre como Job, entende?
— Não fale assim, menina. E a instrucção, a sua pessoa, isso não vale nada? Quer que lhe diga? Se chegarmos a accordo, quem faz um negocio supimpa sou eu.
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
