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S. Bernardo (1934)/Capítulo XVI

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XVI


Uma semana depois, á tardinha, eu, que ali estava aboletado desde meio-dia, tomava café e conversava, bastante satisfeito. No melhor da conversa Azevedo Gondim entrou sem cerimonia e atirou uma inconveniencia que não tinha tamanho:

— Ah! O senhor está aqui? Eu vinha dar os parabens a d. Magdalena. Foi bom encontral-o. Minhas felicitações.

— Que historia é essa? perguntei estremecendo.

— O casamento, explicou Azevedo Gondim. É em que se fala. O senhor não tinha dito nada... Quando é isso?

Não respondi. Magdalena contou os fios do bordado. D. Gloria immobilizou-se, com uma chicara na mão. Tive desejo de torcer o pescoço do Gondim, que, percebendo a tolice, se encostou á parede, raspando o queixo. Levantei-me, cheguei á janella para disfarçar o constrangimento. Como Gondim se approximasse, rosnei:

— Você está bebedo?

— Julguei que não fosse segredo. Todo o mundo sabe.

— Idiota.

E voltei a sentar-me. Acanhado, as orelhas num fogareo, agarrei-me ao hospital de Nossa Senhora da Conceição e ao Gremio Literario e Recreativo, que levava uma existencia precaria, com as estantes cheias de traças e abrindo-se uma vez por anno para a posse da directoria.

— Que utilidade tem isso?

Azevedo Gondim sentou-se, pouco a pouco serenou:

— É uma sociedade que presta bons serviços, seu Paulo.

— Lorota! O hospital, sim senhor. Mas bibliotheca num lugar como este! Para que? Para o Nogueira ler um romance de mez em mez. Uma literatura desgraçada...

Azevedo Gondim, aferrando-se a uma idéa, gira em redor della, como peru:

— A instrucção é indispensavel, a instrucção é uma chave, a senhora não concorda, d. Magdalena?

— Quem se habitua aos livros...

— É não habituar-se, interrompi. E não confundam instrucção com leitura de papel impresso.

— Dá no mesmo, disse Gondim.

— Qual nada!

— E como é que se consegue instrucção se não for nos livros?

— Por ahi, vendo, ouvindo, correndo mundo. O Nogueira veio da escola sabido como o diabo, mas não sabia inquirir uma testemunha. Hoje esqueceu o latim e é um bom advogado.

— Entretanto o senhor acha o hospital necessario. E porque não deita fóra os seus tratados de agricultura?

— É differente. Em todo o caso supponho que os medicos estudam menos nos livros que abrindo barrigas, cortando vivos e defunctos em experiencias. Eu, nas horas vagas, leio apenas observações de homens praticos. E não dou valor demasiado a ellas, confio mais em mim que nos outros. Os meus auctores não vieram olhar de perto os homens e as terras de S. Bernardo.

Magdalena balançava a cabeça:

— Perfeitamente. O que ha é que não estamos acostumados a pensar assim. Assisti um dia destes a uma fita no cinema, e creio que aprendi mais que se visse aquillo escripto. Sem contar que se gasta menos tempo.

— E não se enche o quengo com estopadas, accrescentei. Vocês engolem muita bucha, Gondim. Ha por ahi volumes que cabem em quatro linhas.

D. Gloria estava quasi dormindo. Azevedo Gondim, aturdido, agastado, ergueu os hombros:

— Cá para mim os livros são uteis. Se o senhor julga que são inuteis, deve ter lá as suas razões.

— Você vê que me refiro ás historias fiadas do Gremio.

— O peor é que o que é desnecessario ao senhor talvez seja necessario a muitos, disse Magdalena.

— Sem duvida, a belleza, triumphou Azevedo Gondim. É o que se quer. Harmonia, belleza, entende?

— Ora sebo!

D. Gloria levantou-se e entrou. Como o assumpto estivesse reduzido a cinza, calamo-nos. Azevedo Gondim tentou atiçal-o, inutilmente.

— Que poeira, hein? com o nordeste.

Retirou-se.

Animei-me e avizinhei-me de Magdalena:

— Está vendo? Por ahi já falam. É só em que falam, pelo que me disse o Gondim.

Nenhuma resposta.

— Não torno a pôr os pés aqui. Primeiro porque não quero prejudical-a, segundo porque é ridiculo. Naturalmente a senhora já reflectiu.

Magdalena soltou o bordado:

— Parece que nos entendemos. Sempre desejei viver no campo, accordar cedo, cuidar dum jardim. Ha lá um jardim, não? Mas porque não espera mais um pouco? Para ser franca, não sinto amor.

— Ora essa! Se a senhora dissesse que sentia isso, eu não acreditava. E não gosto de gente que se apaixona e toma resoluções ás cegas. Especialmente uma resolução como esta. Vamos marcar o dia.

— Não ha pressa. Talvez d'aqui a um anno... Eu preciso preparar-me.

— Um anno? Negocio com prazo de anno não presta. Que é que falta? Um vestido branco faz-se em vinte e quatro horas.

Ouvindo passos no corredor, baixei a voz:

— Podemos avisar sua tia, não?

Magdalena sorriu, irresoluta.

— Está bem.

— Já acabaram aquella discussão pau? perguntou d. Gloria da porta. Eu estava morrendo de somno.

— E eu. O culpado foi o Gondim, que tem ideas extravagantes.

Procurei maneira de formular o pedido, mas perturbei-me e não atinei com o que devia dizer:

— D. Gloria, communico-lhe que eu e sua sobrinha dentro duma semana estaremos embirados. Para usar linguagem mais correcta, vamos casar. A senhora, está claro, acompanha a gente. Onde comem dois comem tres. E a casa é grande, tem uma porção de caritós.

D. Gloria começou a chorar.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1930 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.