S. Bernardo (1934)/Capítulo XVII
XVII
Casou-nos o padre Silvestre, na capella de S. Bernardo, diante do altar de S. Pedro.
Estavamos em fim de Janeiro. Os paus d'arco, floridos, salpicavam a mata de pontos amarellos; de manhã a serra cachimbava; o riacho, depois das ultimas trovoadas, cantava grosso, bancando rio, e a cascata em que se despenha, antes de entrar no açude, enfeitava-se de espuma.
Quando viu os arames da illuminação, o telephone, os moveis, varios trastes de metal, que Maria das Dores conservava areados, brilhando, d. Gloria confessou que a vida ali era supportavel.
— Eu não dizia ?
Offereci-lhe um quarto no lado esquerdo da casa, por detraz do escriptorio, com janella para o muro da igreja, vermelho. O muro está hoje esverdeado pelas aguas da chuva, mas naquelle tempo era novo e côr de carne crua. Eu e Magdalena ficámos no lado direito — e da nossa varanda avistavamos o algodoal, o prado, o descaroçador com a serraria e a estrada, que se torce contornando um morro.
— Vamos começar vida nova, hein? disse Magdalena alegremente.
Desde então comecei a fazer nella algumas descobertas que me surprehenderam. Como se sabe, eu me havia contentado com o rosto e com algumas informações ligeiras.
Tive, durante uma semana, o cuidado de procurar afinar a minha syntaxe pela della, mas não consegui evitar numerosos solecismos. Mudei de rumo. Tolice. Magdalena não se incommodava com essas coisas. Imaginei-a uma boneca da escola normal. Engano.
Enjoou o Padilha, que achou "uma alma baixa". (Ahi eu expliquei que a alma delle não tinha importancia. Exigia dos meus homens serviços: o resto não me interessava.) Enjoou o Padilha. Mas gostou de seu Ribeiro: metteu-se no escriptorio, folheou os livros, examinou documentos, desarmou a machina de escrever, que estava emperrada. E dois dias depois do casamento, ainda com um ar machucado, largou-se para o campo e rasgou a roupa nos garranchos do algodão. Á hora do jantar encontrei-a no descaroçador, conversando com o machinista.
— Ora muito bem. Isto é mulher.
Mas aconselhei-a a não expor-se:
— Esses caboclos são uns brutos. Quer trabalhar? Combino. Trabalhe com Maria das Dores. A gente da lavoura só commigo.
— A occupação de Maria das Dores não me agrada. E eu não vim para aqui dormir.
— São enthusiasmos do principio.
— Outra coisa, continuou Magdalena. A familia de mestre Caetano está soffrendo privações.
— Já conhece mestre Caetano? perguntei admirado. Privações, é sempre a mesma cantiga. A verdade é que não preciso mais delle. Era melhor ir cavar a vida fóra.
— Doente...
— Devia ter feito economia. São todos assim, imprevidentes. Uma doença qualquer, e é isto: adiantamentos, remedios. Vai-se o lucro todo.
— Elle já trabalhou demais. E está tão velho!
— Muito, perdeu a força. Põe a alavanca numa pedra pequena e chama os cavouqueiros para deslocal-a. Não vale os seis mil reis que recebia. Mas não tem duvida: mande o que for necessario. Mande meia cuia de farinha, mande uns litros de feijão. É dinheiro perdido.
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
