S. Bernardo (1934)/Capítulo XVIII
XVIII
— A excellentissima, declarou seu Ribeiro, entende de escripturação.
Seu Ribeiro morava aqui, trabalhava commigo, mas não gostava de mim. Creio que não gostava de ninguem. Tudo nelle se voltava para o lugarejo que se transformou em cidade e que tinha, ha meio seculo, bolandeira, terços, candeias de azeite e adivinhações em noites de S. João. Com mais de setenta annos, andava a pé, de preferencia pelas veredas. E só falava ao telephone constrangido. Odiava a epocha em que vivia, mas tirava-se de difficuldades empregando uns modos cerimoniosos e expressões que hoje não se usam. O reduzido calor que ainda guardava servia para aquecer aquelles livros grossos, de cantos e lombadas de couro. Escrevia nelles com amor lançamentos complicados, e gastava quinze minutos para abrir um titulo, em letras grandes e curvas, um pouco tremulas, as iniciaes cheias de enfeites.
— Entende muito, continuou. E embora eu não concorde integralmente com o methodo que preconiza, reconheço que poderá, querendo, encarregar-se da escripta.
— Obrigada.
— Não ha de que. A excellentissima conhece a materia e tem calligraphia. Eu sou uma ruina. Qualquer dia destes...
Catou palavras:
— Qualquer dia destes estou com Deus.
— Sempre diz isso, resmungou Padilha. O senhor tem folego de sete gatos.
Pretendia accumular os cargos de professor e guarda-livros. E impacientava-se.
— Não duro, estou gasto, respondeu seu Ribeiro. E morreria tranquillo deixando os livros a uma pessoa que não viesse estragal-os com raspadelas.
— Isso é facil, murmurou Padilha.
— Talvez, mas convem saber. Aqui a excellentissima...
— Tinha graça, tornou Padilha, d. Magdalena escrevendo os diversos a diversos.
— Nada mais natural, atalhou Magdalena. Não desejo, Deus me livre. Seu Ribeiro está forte.
— Somos todos mortaes, minha senhora. É verdade que ninguem pode penetrar os designios da Providencia, mas na minha idade...
— Qual é o ordenado?
— Ora essa! extranhou Padilha. A senhora occupar-se com essas migalhas! Receber ordenado! Era tirar duma mão e deitar na outra.
— Porque não? Se seu Ribeiro tiver de aposentar-se... Quanto ganha o senhor, seu Ribeiro?
O guarda-livros afagou as suissas brancas :
— Duzentos mil reis.
Magdalena desanimou:
— É pouco.
— Como? bradei estremecendo.
— Muito pouco.
— Que maluqueira! Quando elle estava com o Brito, ganhava cento e cincoenta a secco. Hoje tem duzentos, casa, mesa e roupa lavada.
— É exacto, confessou seu Ribeiro. Não me falta nada, o que recebo chega.
— Se o senhor tivesse dez filhos, não chegava, disse Magdalena.
— Naturalmente, concordou d. Gloria.
— Ora gaitas! berrei. Até a senhora? Metta-se com os romances.
Magdalena empallideceu :
— Não é preciso zangar-se. Todos nós temos as nossas opiniões.
— Sem duvida. Mas é tolice querer uma pessoa ter opinião sobre assumpto que desconhece. Cada macaco no seu galho. Que diabo! Eu nunca andei discutindo grammatica. Mas as coisas da minha fazenda julgo que devo saber. E era bom que não me viessem dar lições. Vocês me fazem perder a paciencia.
Joguei o guardanapo sobre os pratos, antes da sobremesa, e levantei-me. Um bateboca oito dias depois do casamento! Mau signal. Mas atirei a responsabilidade para d. Gloria, que só tinha dito uma palavra.
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
