S. Bernardo (1934)/Capítulo XX
XX
Conforme declarei no principio do capitulo anterior, Magdalena possuia um excellente coração. Descobri nella manifestações de ternura que me sensibilizaram. E, como sabem, não sou homem de sensibilidades. É certo que tenho experimentado mudanças nestes dois ultimos annos. Mas isto passa.
As amabilidades de Magdalena surprehenderam-me. Esmola grande. Percebi depois que eram apenas vestigios da bondade que havia nella para todos os viventes. Paciencia. Eu não devia esperar nem esses sobejos — e o que viesse era lucro. Vivemos algum tempo muito bem.
Lembram-se de que deixei a mesa aborrecido com d. Gloria. Pois, passados minutos, Magdalena me trouxe uma chicara de café e deu a entender que estava arrependida de haver provocado o incidente.
— Foi uma leviandade.
— Foi, balbuciou Magdalena vermelhinha, foi inconsideração.
— Antes de falar, a gente pensa.
— Com certeza, disse ella bastante perturbada. Esqueci que os dois eram empregados e deixei escapar aquella inconveniencia. Ah! foi uma inconveniencia e grande.
Ahi eu peguei a chicara de café e amolleci:
— Não, assim tambem não. Para que exaggerar? Houve apenas incomprehensão. Obrigado, pouco assucar. Incomprehensão, é o termo. Eu explico. Aqui não é como lá fóra. O cinema, o bar, os convites, a loteria, o bilhar, o diabo, não temos nada disso, e ás vezes nem sabemos em que gastar dinheiro. Quer que lhe diga? Comecei a vida com cem mil reis alheios. Cem mil reis, sim senhora. Pois estiraram como borracha. Tudo quanto possuimos vem desses cem mil reis que o ladrão do Pereira me emprestou. Usura de judeu, cinco por cento ao mez.
Magdalena ouviu attenta, approvando, com uns modos de menina bem educada:
— Acredito, acredito. O que ha é que ainda não conheço o meio. Preciso acostumar-me.
Chamei Casimiro Lopes, entreguei-lhe a chicara e a bandeja. Depois accendi o cachimbo:
— O que sinto...
Ergui-me:
— Nunca me arrependo de nada. O que está feito está feito. Mas emfim cara feia não bota ninguem para diante. E aquillo que eu azuni a d. Gloria...
— Coitada! Ella nem estava prestando attenção á conversa. Falou por falar.
— Foi uma dos diabos. Pois faça-me um favor: mostre a ella, por alto, que não tive intenção de magual-a. Uma pessoa idosa e respeitavel... Que não tive intenção, ouviu? Eu sou mesmo um sujeito meio azuretado.
Vêem que estavamos brandos como duas bananas. E assim passámos um mez. Por insistencia della, dei-lhe occupação:
— Faça a correspondencia. Quer ordenado. Perfeitamente, depois combinaremos isso. Seu Ribeiro que lhe abra uma conta.
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
