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Senhora/Posse/VIII

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Sucedem-se no procedimento de Aurélia atos inexplicáveis e tão contraditórios, que derrotam a perspicácia do mais profundo fisiologista.

Convencido de que também o coração tem uma lógica, embora diferente da que rege o espírito, bem desejara o narrador deste episódio perscrutar a razão dos singulares movimentos que se produzem n’alma de Aurélia.

Como porém não foi dotado com a lucidez precisa para o estudo dos fenômenos psicológicos, limita-se a referir o que sabe, deixando à sagacidade de cada um atinar com a verdadeira causa de impulsos tão encontrados.

Remontemos pois o curso dessa nova existência de Aurélia até à noite de seu casamento, quando a exaltação que a animava durante a cena passada com Seixas, abatendo de repente, a deixou prostrada no tapete da câmara nupcial.

Não foi propriamente um desmaio que a tomou, ou este não passou de breve síncope. Mas o resto da noite, ela o passou ali, sem forças nem resolução de erguer-se, em um torpor intenso, que se não lhe apagava de todo os espíritos, os sopitava em uma modorra pesada.

Tinha a consciência de sua dor; sofria acerbamente; porém faltava-lhe naquele instante a lucidez para discriminar a causa de seu desespero e avaliar da situação que ela própria havia criado.

Pela madrugada o sono, embora agitado, trouxe um breve repouso à sua angústia. Dormiu cerca de uma hora, tendo por leito o chão, e com a cabeça apoiada nesse mesmo estrado, que devia servir de degrau à sua felicidade.

A claridade da manhã que filtrava pela cassa das cortinas, despertou-a. Ergueu-se arrebatadamente e ao impulso de uma idéia terrível, que atravessara como um raio de luz a sombra confusa de suas reminiscências.

Correu à porta por onde saíra Seixas, e escutou presa de viva inquietação. Por vezes levou a mão à chave, e retirou-a assustada. Volveu a esmo os passos rápidos pela casa; afinal aproximou-se da janela, sem intenção, automaticamente.

Foi nessa ocasião que viu Seixas atravessar o jardim furtivamente e entrar em casa. Ainda reinava o silêncio por toda essa parte da habitação, de modo que ela pôde ouvir o leve rumor dos passos do marido no próximo aposento.

Um riso de acre desprezo crispou-lhe os lábios.

— É um cobarde!

Depois do que se havia passado entre ambos, na noite de seu casamento, pensava Aurélia, que só havia para Seixas dois meios de quebrar o jugo humilhante a que o tinha submetido. Não lhe restava senão matá-la a ela, ou matar-se a si.

Para uma dessas duas soluções se tinha a moça preparado. É certo que às vezes seu coração afagava uma esperança impossível. Se o homem a quem amava, se ajoelhasse a seus pés e lhe suplicasse o perdão, teria ela forças para resistir e salvar a dignidade de seu amor?

Por este lance não teve ela de passar. Às suas primeiras palavras, Seixas retraíra-se, para ostentar depois uma imprudência, que ela jamais podia esperar, e que produziu em sua alma indizível horror. O laço que a unia àquele homem tornou-se uma abjeção, quase uma infâmia.

Entretanto, ao expeli-lo de sua presença, ainda esperava que as palavras proferidas pelo marido fossem apenas uma ironia amarga. Não concebia que tivesse amado um ente tão depravado e vil. O cinismo que pouco antes a indignara, devia ter uma reação.

Foi quando viu Seixas pela manhã que de todo acabou de convencer-se da miséria do indivíduo. Então operou-se em sua alma uma revolução, na qual soçobraram todos os sentimentos bons e afetuosos, ficando à tona unicamente os instintos agressivos e malignos que formam a lia do coração.

Quando Aurélia deliberara o casamento que veio a realizar, não se inspirou em um cálculo de vingança. Sua idéia, a que afagava e lhe sorria, era patentear a Seixas a imensidade da paixão que ele não soubera compreender, sacrificando sua liberdade e todas as esperanças para unir-se a um homem a quem não amava e nem podia amar, desnudava a seus olhos o ermo sáfaro em que lhe ficara a alma, depois da perda desse amor, que era toda sua existência. Esse casamento póstumo de um amor extinto não era senão esplêndido funeral, em face do qual Seixas devia sentir-se mesquinho e ridículo, como em face da essa o soberbo compenetra-se da miséria humana.

O sentimento que animava Aurélia podia chamar-se orgulho, mas não vingança. Era antes pela exaltação de seu amor que ela ansiava, do que pela humilhação de Seixas, embora essa fosse indispensável ao efeito desejado. Não sentia ódio pelo homem que a iludira; revoltava-se contra a decepção, e queria vencê-la, subjugá-la, obrigando esse coração frio que não lhe retribuía o afeto, a admirá-la no esplendor de sua paixão.

Mas naquele instante, recordando as palavras que Seixas proferira poucas horas antes; vendo-o tranqüilo e disposto a aceitar como natural a terrível situação; pensando no desbrio com que esse homem sujeitava-se a uma degradação de todos os instantes, Aurélia tivera um verdadeiro ímpeto de vingança.

Seixas queria afrontá-la com seu desgarro impudente. Pois bem; ela aceitava o desafio; se esse infeliz não estava completamente desamparado dos últimos resquícios do amor-próprio e da vergonha, ela propunha-se a pungi-lo com o seu mais virulento sarcasmo. A menos que a alma não estivesse morta, sentiria o estigma do ferro em brasa.

Foi nestas disposições que Aurélia vestiu-se para o almoço; e nessas disposições conservava-se ainda na tarde em que saíra com o marido às visitas.

Todavia, quando no dia seguinte ao casamento, sentada na cadeira de balanço, viu entrar Seixas na sala de jantar, sua resolução vacilou. O aspecto nobre e distinto do mancebo, a elegância natural de seu gesto, recobraram o prestígio que esses dotes nunca deixam de exercer em espíritos elevados, e a que o dela estava já afeito.

Não a abandonou o pensamento da vingança; mas o desabrimento e a ira excitados pela indignação da véspera, revestiram a forma cortês e o tom delicado, que raro e só em um instante de violento abalo desamparam as pessoas de fina educação.

Nas alternativas desse desejo de vingança a miúdo contrariado pelos generosos impulsos de sua alma, se escoara o primeiro mês depois do casamento.

Se abandonando-se à irritação íntima que exacerbava-lhe o espírito, deleitava-se em flagelar com o seu implacável sarcasmo a dignidade do marido; quando recolhia-se depois de uma cena destas, era para desafogar o pranto e soluços que intumesciam-lhe o seio. Então reconhecia que a vítima de sua ira não fora o homem a quem detestava, mas seu próprio coração, que havia adorado esse ente, indigno de tão santo afeto.

Se fatigada desse constante orgasmo d’alma, sempre crispada pelo escárnio, restituía-se insensivelmente à sua índole meiga, as relações com o marido tomavam uma expressão afetuosa;- de repente a invadia um gelo mortal, e ela estremecia espavorida com a idéia de pertencer a semelhante homem.

Assim chegou Aurélia àquela noite de luar, em que Seixas falava de poesia, e ela escutava reclinada a seu braço no enlevo de que a arrancara dolorosamente uma palavra do marido.

Quando a sós consigo pensou neste incidente, encheu-se de terror. Houve um instante, rápido embora, no qual chegou a lamentar que Seixas não tivesse conseguido enganá-la nessa ocasião adormecendo ou antes cegando-lhe os brios. Quando se dissipasse essa ilusão, seria tarde, e ela pertenceria irrevogavelmente ao marido.

Este sentimento, que apenas pronunciado ela repeliu com todas as forças de sua alma, deixou-lhe contudo um desgosto profundo, acompanhado do pânico de semelhantes alucinações. Daí a irritabilidade que desde então a possuía, e que tocara ao auge nessa tarde das visitas.

Entretanto em seu toucador, Aurélia tinha febre: febre da paixão que a abrasara. Abriu todas as portas e janelas, atirou-se vestida como estava sobre o divã, e ali ficou imóvel, como a vira Seixas pela broca da fechadura.

Assustado com essa imobilidade, o marido ia bater, quando a mucama atravessou por diante do quadro iluminado, o qual apagou-se de repente. Fechara-se a porta do toucador, refletida pelo espelho.

No dia seguinte Aurélia deixou-se ficar em seu aposento toda a manhã. Voltando da repartição, Seixas encontrou-a pálida e abatida.

Ao jantar foi D. Firmina quem fez os gastos da conversação. Na véspera a viúva passara a noite em uma casa da vizinhança, onde havia reunião semanal. Acertou falar-se no Abreu, que diziam ter caído na miséria. Por essa ocasião recordaram-se todas as extravagâncias e prodigalidades, com que o rapaz havia esbanjado em pouco mais de ano, a avultada herança deixada pelo pai.

D. Firmina repetindo o que ouvira lamentava a sorte do Abreu que sacrificara tão bonito futuro. Revestindo-se dessa moral severa, que em geral se cultiva para uso alheio e não para o próprio gasto, acusava o rapaz com excessivo rigor.

— A culpa não é dele, D. Firmina, observou Aurélia voltando de sua distração.

— De quem mais pode ser? perguntou a viúva.

— De quem o fez rico, não o tendo educado para a riqueza. O ouro desprende de si não sei que miasmas que produzem febre, e causam vertigens e delírios. É necessário ter um espírito muito forte, para resistir a essa infecção; ou então possuir algum santo afeto, que o preserve do veneno, sem o que sucumbe-se infalivelmente.

— Quer dizer que a riqueza é um mal, Aurélia?

— Não é um mal; muitas vezes torna-se um bem; mas em todo o caso é um perigo. Aqueles que se exercitam em jogar as armas, pensam que tudo se decide pela força. O mesmo acontece com o dinheiro. Quem o possui em abundância, persuade-se que tudo se compra.

Tinham acabado de jantar. Aurélia ergueu-se da mesa e entretinha-se em dar aos canários as migalhas de pão, que esfarelava na palma da mão.

Entretanto, Seixas acendera o charuto e seguia distraído pela rua que serpeando entre os tabuleiros de margaridas e os tapetes de relva, ia sumir-se em um bosque de palmeiras. O mancebo recordava-se das cenas da véspera, cotejava-as com as palavras que pouco antes haviam escapado a Aurélia, e buscava a explicação do enigma.

Interrompeu-o a voz da moça que achava-se a seu lado.

— Este passeio todas as tardes já deve aborrecê-lo. Por que não sai a cavalo? Deve distrair-se.

Aurélia falava brincando com as flores para evitar que seu olhar encontrasse o de Seixas.

— Sua companhia não me pode aborrecer nunca.

— Sempre, torna-se monótona.

— Demais é o meu dever, tornou Seixas frisando a palavra.

Aurélia afastou-se; deu alguns passos, esteve reparando nas flores escarlates de uma trepadeira a que chamam brincos-de-dama, e tendo-se firmado na resolução que a preocupava, tornou para o marido.

— Nossos destinos estão ligados para sempre. A sorte recusou-me a felicidade que sonhei. Tive este capricho que nenhuma outra o possuiria, enquanto eu viva. Mas não pretendo condená-lo ao suplício desta existência, que vivemos há mais de um mês. Não o retenho; é livre; disponha de seu tempo como lhe aprouver, não tem que dar-me contas.

A moça calou-se esperando uma resposta.

— A senhora deseja ficar só? perguntou Seixas. Ordene, que eu me retiro, agora como em qualquer outra ocasião.

— Não me compreendeu. Há um meio de aliviar-lhe o peso dessa cadeia que nos prende fatalmente e de poupar-lhe as constantes explosões de meu gênio excêntrico. É o divórcio que lhe ofereço.

— O divórcio? exclamou Seixas com vivacidade.

— Pode tratar dele quando quiser, respondeu Aurélia com um tom firme e afastou-se.