Tentação (Adolfo Caminha)/V

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Adelaide recolheu-se triste naquela noite; por maiores esforços que fizesse, não podia esquecer a afronta do secretário aos seus brios de mulher casada, e o que mais a impressionava era o desplante, o cinismo audacioso com que ele a beijara... — Que coragem de homem, Senhor! Quase à vista de todos, em pleno Jardim Botânico, num lugar público! Eis aí quando a gente perde a cabeça e comete uma loucura, eis aí!

Depois falam, depois não dão razão, e uma mulher vê-se obrigada sofrer os maiores insultos, porque tem medo de que lhe aconteça pior...

Já há dias notara certas liberdades de Furtado, certa maneira de lhe falar, de lhe dizer as coisas baixando a voz, ameigando o sotaque, olhando-a insistentemente; já há dias notara... mas, palavra de honra como não supunha o marido de D. Branca um homem sem escrúpulos, um sedutor, um amigo desleal... Pobre Evaristo! nem sequer imaginava...

E caía-lhe n'alma um desgosto, uma tristeza, um cansaço da vida, um peso enorme. Oh, quanto mais para dentro da civilização, mais horrores, mais espinhos, como no interior de uma floresta de cardos, povoada de insetos venenosos. Homens e mulheres traem-se com a mesma facilidade com que se juram amar eternamente uns aos outros. Bem lhe diziam na província que o Rio de Janeiro era um centro de perdição, uma Babilônia de vícios, bem lhe diziam!... Melhor prova ela não podia ter: o Sr. Luís Furtado, aristocrata de Botafogo, pai de família, mostrava-se dedicado aos outros para poder abusar.. E assim era tudo.

O cérebro de Adelaide enchia-se de considerações, enquanto Evaristo mergulhava num sono calmo e reparador. O bacharel não esperou pela hora habitual de se deitar, fatigado do passeio, com uma invencível morrinha no corpo, os olhos ardendo, a vista turva, esvaziou uma moringa d'água fresca e estendeu-se na cama, na bela cama de casal. "Não era de bronze para resistir às conseqüências de um piquenique!" E dormia, o Evaristo, como o mais feliz de todos os bacharéis.

Adelaide é que não podia dormir, apesar de cansada também. Era maior a preocupação moral que o sono. Ouviu bater oito horas, nove, dez, onze, meia-noite, e o cérebro a trabalhar, a funcionar como uma máquina de alta pressão. Chocavam-se nela as mais desencontradas idéias: ora Furtado parecia-lhe um homem sem caráter, indigno da amizade de Evaristo ou de quem quer que tivesse um bocado de vergonha, ora afigurava-se-lhe cavalheiro distinto, com todas as virtudes e defeitos (não há homem sem defeitos ...) da sociedade em que vive. Ao mesmo tempo que o condenava por lhe ter beijado a mão, ferindo-a no seu amor-próprio, intimamente o perdoava, lembrando-se de que talvez ele a amasse deveras e o amor é cego, o amor não quer saber de razões... Quem sabe? ele talvez a amasse, talvez lhe consagrasse alguma estima particular e fora de suspeitas criminosas. Beijou-a porque... porque não teve forças para se dominar...

A consciência, porém, dizia-lhe baixinho que uma mulher casada, uma mulher que se ligou a um homem para toda a existência, é objeto que outro homem não deve tocar nem de leve, ainda mesmo a pretexto de amizade fraternal ou de sagrada admiração; e a esposa que se deixa beijar por um homem, que não é o seu legítimo marido, tem na sociedade o feio nome de adúltera. Vinha-lhe, então, um arrepio nervoso, uma sensação de remorso por não ter energicamente repelido o secretário, mesmo com escândalo, embora caísse sobre ela todo o ódio de Furtado e de D. Branca; acima deles estava a sua dignidade e a honra de Evaristo. No meio dessas idéias, e como uma aparição bendita, surgiu-lhe a figura de Balbina, a preta velha de Coqueiros, e uma lágrima triste, uma lágrima de saudade embebeu-se no travesseiro da meiga esposa do bacharel.

Evaristo roncava.

No outro dia falou-se muito no piquenique; todos tinham gostado imenso. A correção do visconde, o ar fidalgo que ele não perdia mesmo entre amigos, a toilette com que se apresentava, as suas delicadezas mereceram especiais referências de D. Branca.

O secretário não esteve muito loquaz ao almoço; dava uns apartes tímidos e avançava um ou outro juízo irônico sobre o passeio da véspera, lamentando as dores de cabeça de Adelaide e a eterna circunspecção do visconde. — "Afinal, a verdade é que ninguém se divertira. Resultado: um passeio de burgueses, um piquenique fúnebre!"

— Fúnebre por quê? — saltou Evaristo. — Vocês é que não sabem se divertir; eu pelo menos fiz honra à confeitaria Pascoal e gozei o que há muito não gozava: o aspecto da nossa natureza, a sombra de uma árvore e a frescura de um veio d'água. Nesta imperial cidade, onde a vida do rei é o que de mais precioso existe, vale a pena um homem sair dos seus cômodos para respirar o ar livre do Jardim Botânico ou de outro jardim qualquer. Nós é que não sabemos gozar o que possuímos. O imperador absorve o cérebro e o coração deste povo...

— Deixe o velho, Sr. Evaristo, Sr. Evaristo ... — fez D. Branca. — O imperador é um bom homem.

— Ninguém diz o contrário; mas o Brasil ainda é melhor que ele...

— Aí vem política! — murmurou Adelaide, que até aí não dera palavra.

Furtado olhou-a e sorriu; ela abaixou os olhos gravemente.

O resto do dia passou calmo. Adelaide subiu, depois do almoço, como às vezes costumava, e foi ler os jornais. Estava resolvida a mudar-se daquela casa antes que estalasse algum escândalo.

Mas a insistente idéia de Furtado não a abandonava e todo o santo dia pensou nele, como num objeto querido, e nas histórias de amor que lhe contara D. Branca. Como exigir de Evaristo uma mudança brusca, ela que nenhuma razão podia alegar contra o sobrado ou contra a família do secretário? Dizer-lhe simplesmente que não estava bem ali era uma imprudência, tanto mais quanto as suas relações com a esposa de Furtado eram estreitíssimas e ela sempre fizera grandes elogios à casa e ao próprio marido de D. Branca. Antes esquecer, antes esquecer tudo e apresentar-se alegre, fazendo pela vida como os outros, não estorvando os projetos de Evaristo, aceitando os homens como eles são — desleais e corruptos... Que podia ela só contra uma sociedade inteira, contra milhares de pessoas? Nada, absolutamente nada. Homem e mulher vivem conforme a sociedade os obriga a viver, fingindo não perceberem aquilo que lhes está entrando pelos olhos; a mulher principalmente, a mulher é um ente nulo, uma criatura sem vontade, uma pobre máquina dos caprichos do homem. Triste daquela que, instigada pelo amor-próprio, arrebatada por um movimento de dignidade feminina, rebelar-se contra o jugo do meio em que vive! Não lhe faltarão apodos, nem grosseiras alusões...

Na sua simplicidade provinciana a jovem esposa do bacharel começava a compreender o papel inferior da mulher na civilização, e traçava mentalmente um programa de vida, uma linha de conduta humilde e utilitária sobre as bases que lhe fornecera a experiência de alguns meses. O Rio de Janeiro aparecia-lhe agora sob um aspecto novo e convencional. Furtado representava, a seus olhos, o homem moderno, capaz de todas as perversões, de todas as hipocrisias, colocando acima da dignidade própria, o sensualismo, os gozos inconfessáveis, a luxúria sob todas as formas e as exibições públicas de toilettes à última moda. Notara, no piquenique, a insistência com que o visconde de Santa Quitéria se dirigia a D. Branca, levando-a pelo braço a passear no Jardim, fora das vistas do secretário, enquanto este, por seu turno, ia maquinando o melhor meio de pôr em prática uma traição ao amigo... e essas e outras coisas enchiam-lhe o coração de descrença e de pesar. O verdadeiro — a prudência lho dizia — era fechar os olhos a tudo e esperar que Evaristo se convencesse da asquerosa realidade... Ela nunca o havia de trair, isso nunca! Preferia morrer, preferia suicidar-se... Queria-o muito, orgulhava-se em o ter como esposo de sua alma. Ou a mulher ama o homem com quem vive e, se o ama, não o pode trair, ou não o ama e, neste caso, é a pior de todas as mulheres de vida fácil, porque diz hipocritamente que o ama para, à sombra de um responsável. cometer infâmias. Não, ela havia de respeitar seu maridinho enquanto Deus lhe desse juízo.

Arrumou a casa, espanou os móveis, passou uma vista nos jornais e sentou-se entregue às suas reflexões, o espírito alvoroçado pelo enxame das idéias, num grande silêncio de tugúrio que nenhum estalido quebrava.

D. Branca, pé ante pé, foi encontrá-la na cadeira de balanço, a olhar o teto, numa abstração infinita, rodeada de jornais.

— Boa vida! — exclamou, com um sorriso afetuoso, a mulher de Furtado.

Adelaide teve um pequeno sobressalto: "- Oh!... Estava pensando..."

— Estava pensando! Isso é grave... Cai ou não cai o ministério! O imperador vai ou não vai à Europa?

A outra endireitou-se na cadeira, passou a mão nos olhos, como quem acorda, e suspirou de leve.

— Olhe que a vida é curta, menina, olhe que a vida é curta — repetiu a amiga em tom conselheiro.

— E os desgostos são muitos...

— Qual desgostos, criatura! Uma mulher nova e bonita não pode queixar-se.

E sem transição, D. Branca aludiu ao piquenique. Adelaide gabou a festa, para não contrariar a esposa do secretário, recordou o champanha, os ditos espirituosos do senhor Furtado e, propositalmente, não falou no visconde.

D. Branca, então, sem estranhar o silêncio de Adelaide, fez o elogio de Santa Quitéria, enaltecendo-lhe os modos, "a impecável distinção com que ele tratava uma senhora, a extrema delicadeza que punha nas palavras e nos menores gestos", concluindo que o visconde era, na sua opinião, "o que se podia desejar de tout à fai chic".

— Ele parece simpatizar muito com a senhora.

— Comigo? Oh não, nem diga tal coisa!

— Por quê?

— Porque não é bom, pode alguém ouvir e eu não quero — Deus me livre — uma questão com o Furtado ...

O certo, porém, é que D. Branca exultou intimamente com as palavras de Adelaide. — "Era, então, verdade que o visconde parecia Simpatizar com ela... Que lembrança?..."

Ia animada a palestra, quando a campainha soou embaixo e vozes repercutiram na escada.

Eram os dois amigos que voltavam juntos do Banco.

À noite ainda se falou no piquenique, tema inesgotável das conversações daquele dia. Ninguém se lembrava de outra coisa; o piquenique no Jardim Botânico era a grande novidade, o grande acontecimento.

Adelaide estava mais expansiva; trocou algumas palavras, diretamente com o secretário, emitiu opiniões, teve risos gostosos; enfim, já não era a mesma que D. Branca surpreendera com os olhos no teto, a pensar e que se conservara silenciosa ao almoço, enquanto as outras pessoas comentavam o piquenique.

As noites eram mais frescas então; respiravam-se as primeiras brisas do equinócio das flores, o sol ia perdendo a intensidade abrasadora e caniculante que afugentara para Petrópolis e Friburgo os satélites imperiais do monarca. A vida fluminense, por assim dizer interrompida com a ausência da aristocracia palaciana, voltava a funcionar, é verdade que sem o estímulo habitual, porque a sabedoria de Hipócrates ordenava ao imperador uma retirada para o outro continente, e os olhos do povo e da nobreza cedo começavam a chorar a ida inevitável do augusto e perpétuo defensor do Brasil. Voltavam tristes as andorinhas de Petrópolis, e essa tristeza comunicava-se ao meigo rebanho que atravessara dezembro e janeiro ao sol, enquanto a asa negra da febre amarela estendia-se pavorosa, sobre a heróica cidade.

Os jornais, numa faina lúgubre, pediam contas ao governo sobre o verdadeiro diagnóstico da imperial moléstia e já se dizia por toda a parte que "o rei ia, mas não voltava... — Diabetes ... glicosúria... surmenage... eram palavras que enchiam a Rua do Ouvidor subindo e descendo com os transeuntes. — Quem ficava no trono! Quem se responsabilizava pelos destinos da grande pátria americana? Toda a gente sabia que era a princesa, mas toda a gente perguntava: — Quando era o dia do embarque? — e cada boca era uma interrogação e cada olhar uma profecia. Republicanos, abolicionistas, em conciliábulos secretos, viam na doença do imperador o triunfo das novas idéias, a conquista da liberdade, a grande hora da fraternização brasileira..." E reduzido às míseras proporções de inválido, o segundo Alcântara, bisneto da Sra. D. Maria I, universalmente conhecido pelos seus versos ao bom povo ituano e pelo seu amor às letras, que na Europa dava-lhe foros de primeiro poeta do Brasil — O celebrado amigo de V. Hugo e das canjas do Teatro Lírico ia sulcar o Atlântico para bem do povo e felicidade da nação, desse povo que tanto o amava e dessa nação que ele governava há meio século.

Povo e nação volviam os olhos para a Tijuca à espera de que saísse o augusto enfermo, com o seu préstito de áulicos e turiferários, humilde agora mais do que nunca, dentro de um cupê imperial, abatido e tristonho na grande dor que o pungia... Quantas pessoas ainda não o tinham visto e queriam vê-lo agora no embarque! As ruas haviam de se encher, as ruas e as praças quando os clarins dessem sinal da aproximação d'Ele. Oh, havia de ser um espetáculo comovedor, uma tristeza enorme, um pranto geral nos palácios e nas choupanas, onde quer que brilhasse a fama do seu queridíssimo nome. Os republicanos mesmo não se conservariam insensíveis.

— Porque — dizia, numa roda, o secretário — vocês podem negar tudo, menos que o imperador seja querido pelos brasileiros.

A roda compunha-se dele Furtado, de Evaristo, de Valdevino Manhães, do deputado Ismael Pessegueiro, de Alagoas, e do Freitas Camargo, outro poeta, companheiro do Manhães na Revista Literária.

O tema era a viagem do imperador daí a alguns dias. Estava-se em fins de maio. Aboletados ao redor de uma mesinha no Castelões, cada um expunha o seu juízo acerca do monarca e da imperial viagem à Europa. O secretário do Banco apelava para a consciência de todos: — era ou não estimado no Brasil o imperador?

Valdevino Manháes, cavalgando o pincenê afetadamente, e cruzando as pernas com um ar doutoral, lembrou as suas tradições republicanas e disse que, apesar de nunca ter merecido favor nenhum do Império, não ousava negar a estima do povo ao rei; mas isso não queria significar adesão eterna do povo às instituições monárquicas: era um sentimento pessoal, uma generosidade afetiva, um respeito mesmo às barbas brancas do velho...

— Engana-se, amigo — interrompeu o representante de Alagoas calmo, sem se mover na cadeira, fitando os olhos no Dr. Condicional. — Pedro II enraizou a monarquia no Brasil, e, ainda que tivéssemos o desgosto de lamentar a sua morte hoje ou amanhã, o Brasil havia de ser sempre Império do Brasil, nunca uma república. Desejar o sistema republicano para o nosso país é querer a ruína de uma das maiores nações do mundo. Veja o senhor a Inglaterra.

— Exatamente — apoiou Furtado.

— A Inglaterra é uma nação decadente! — berrou o Manhães. — Não há termo de comparação entre a Inglaterra e o Brasil. O Brasil um país novo, ainda nas faixas infantis...

— Por isso mesmo, por isso mesmo! — argumentou o deputado. — Os países novos precisam de um freio, como o indivíduo na infância.

Qual freio, Sr. Doutor! De freio precisam os burros, e nós somos um povo inteligente, um povo que não precisa de freios nem de monarcas. A república há de se fazer, creia!

O alagoano, que pela primeira vez tratava com o Manhães, estranhou-lhe o modo agressivo com que discutia e não retrucou. Valdevino continuou a falar no meio do silêncio dos companheiros, não perdendo ocasião de aludir à sua viagem à Europa e ao bom acolhimento que tivera em Lisboa.

Camargo apoiava tudo quanto ele dizia por espírito de coleguismo e em atenção ao diretor da Revista. Mas Valdevino lembrou-se de que se comprometera a jantar no Globo com uns rapazes, e, estabanadamente, despediu-se de todos. Foi então, só então, que o Camargo abriu a boca, para dizer que o Valdevino era um idiota, uma besta!

Ismael Pessegueiro olhou Furtado e baixou a cabeça. Evaristo, mais positivo e menos convencional, estendeu a mão ao poeta:

— Toque, amigo! O senhor agora disse tudo o que muita gente pensa e não tem coragem de dizer.

— Um homem que vive a escrever asneiras e a rabiscar sujidades! Um repetidor de frases ocas! Porque veio da Europa, entende que é já um mestre, um alto personagem nas letras... Uma cavalgadura é o que ele é!

— Pobre Valdevino!... — lamentou Furtado ironicamente.

— Pobre Dr. Condicional! — fez Evaristo.

— É o que lhes digo — continuou o poeta. — Quando Ramalho Ortigão aqui esteve, no Rio, a primeira pessoa que correu a beijar-lhe os pés foi ele, o Valdevino.

— Os pés ou as mãos? — inquiriu malicioso, Evaristo.

— Os pés... que ele quando adula é para beijar os pés. Em literatura, como em política, é um rafeiro dos medalhões...

— Oh!... — balbuciou com um risinho especial o representante de Alagoas.

— Pode acreditar, doutor! O Valdevino Manhães é conhecido na Rua do Ouvidor; toda a gente sabe de quanto é capaz aquele idiota...

O secretário interveio com uma pilhéria.

— Vocês esquecem-se de que estão a falar do autor do Juca Pirão... — Belo título de uma obra: Juca Pirão — continuou Camargo. — Vejam vocês até onde pode chegar a estupidez humana!

— E é verdade que existe essa obra? — perguntou o deputado.

— É, doutor, infelizmente é! Faça o senhor idéia: um livro com o título de Juca Pirão!

O Dr. Ismael carregou uma risada cheia de sarcasmo.

— Deixem o pobre homem... suplicou o Furtado. — O Valdevino é uma boa criatura...

— Ouvi dizer que tem a mania do renome literário, é verdade? — perguntou o Evaristo...

— Mania que o há de levar ao hospício — resmoneou o Camargo.

— Esses literatos, esses literatos... — disse com mistério o Holanda.

— Vivem se digladiando! — acabou Furtado. — Queres mais cerveja, oh Camargo?

— Não, não, merci...

— Doutor, outro copo...

— Obrigado...

— E tu, Evaristo?

— Eu também recuso.

— Então podemos levantar acampamento.

Ergueram-se os quatro fumando, com grandes ares de capitalistas.

A Rua do Ouvidor estava num de seus dias de festiva alacridade, inteiramente cheia, como um rio a transbordar, tumultuoso, murmurejante e iluminado por um sol acariciador de primavera. Iam e vinham os habitués de ambos os sexos, numa procissão de toilettes vivas, num burburinho de festa pública entrechocando-se, acotovelando-se. Famílias conversavam à porta das lojas, moças e velhas madamas, senhoras de todas as idades e de todos os tamanhos, rindo, como se estivessem no interior de suas casas, beijando-se alto, enquanto os pais e os maridos discutiam política à porta dos cafés, à espera que elas acabassem de "fazer as compras". Ecoavam gargalhadas entre os homens. Uma banda de música a tocar polcas e valsas faria toda aquela gente esquecer-se de que estava na Rua do Ouvidor e cair num grande bailado ao ar livre. As maiores notabilidades da política, da literatura e das artes, os mais conhecidos escritores e homens de Estado viam-se ali, em grupos, à porta do Café de Londres, do Castelões ou do Pascoal, frechando, com o olhar, o madamismo suspeito e as demoiselles ricas, assistindo ao desfilar tumultuoso das cocotes, e das condessas, biografando-as uns aos outros com risinhos de inveterada malícia, observando-lhes o andar, os meneios, a toilette, a opulência das carnes, como se as quisessem devorar num ímpeto de canibalismo sexual, acompanhando-as a perder de vista, gulosos, famintos e banais. Moços de flor ao peito, no rigor da moda, alguns chegados de Paris, iam e vinham, numa ostentação pedantesca de polainas, de casimiras claras, de coletes brancos e de frases tolas, cumprimentando à direita e à esquerda, erectos como figuras de vitrina. Os armazéns de modas enchiam-se; enchiam-se os cafés e as confeitarias, e o zunzum aumentava de entontecer, dentro das lojas e na rua.

— Sabes quem é aquela, oh Evaristo? — disse, parando, o secretário. Indicava uma senhora de presença estranha, muito bem vestida, que ia pelo braço de um cavalheiro, na outra calçada. Um movimento de ansiosidade propagou-se no trecho da rua.

— Quem é?

— A baronesa de Lima-Verde, uma das mulheres mais formosas do Rio de Janeiro...

— Oh!... Vai com o marido...

— Isso é o que ainda não está suficientemente provado.

— Que queres dizer?

— Afirmam uns que o marido, o barão, passeia na Europa e que ela, a baronesa... não gosta de andar só...

— Aquele senhor é então o cunhado, o irmão...

— Qual cunhado, nem qual irmão! Aquele senhor é sócio de uma firma de capitalistas...

O bacharel compreendeu a alusão e exclamou, voltando-se para o objeto do diálogo:

— Que estás dizendo?

— Não achas formosa?

— É realmente uma beleza... Mas então...

— Fecha os olhos, Evaristo, fecha os olhos... e não queiras saber de mais nada.

Furtado, porém, resumiu em poucas palavras a crônica da baronesa, citando nomes com um perfeito conhecimento de cousas. Entre os adoradores da ilustre senhora estava o visconde de Santa Quitéria.

— O Santa Quitéria!

— Ele mesmo, e não te admires, porque outros de maior sisudez fazem a corte à baronesa.

O Camargo e o deputado Ismael tinham-se despedido. Os dois amigos subiram a Rua do Ouvidor, no meio de torvelinho geral, afastando-se a cada instante para deixar passar as senhoras, rompendo a multidão, esgueirando-se com as paredes, esbarrando com os transeuntes, aos encontrões, às apalpadelas quase.

No Largo de São Francisco um golpe de ar bafejou-os de improviso, como se saíssem de um túnel.

— Caramba! — exclamou o secretário. — A Rua do Ouvidor às quintas é um formigueiro! Nunca vi tanta gente!

— Olha daqui... olha daqui! — insistiu o bacharel, voltando-se no meio do largo, para a famosa artéria que regurgitava.

Era um espetáculo curioso. A rua muito estreita, com os seus sobrados de dois a três andares, com os seus arcos de iluminação, com as suas bandeiras, tinha o aspecto movimentado de uma pequena cópia de bulevar em dia de festa. Embaixo a massa negra e compacta, ondulando como uma procissão vista de longe, e um sibilar de vozes indistintas como o vago rumor de uma colmeia alvoroçada.

— Queres que te diga o efeito que isso me produz, oh Furtado?

— ?

— Lembra-me o caos, o misterioso, o incompreensível, a vertigem dos abismos... o grande nada dos heróis que dormem...

— Do vasto pampa no funéreo chão! — concluiu o secretário arguendo o braço numa pose oratória.

E fitando o bacharel:

— Estás apocalíptico, homem! Olha, não vás fazer como no Jardim Botânico, onde assassinaste barbaramente, creio que o Garrett ou o Alexandre Herculano...

— Pois é o que me parece a tal Rua do Ouvidor, e a comparação, se não é original, tem o mérito de exprimir exatamente o que eu quero dizer.

E Evaristo dava às palavras um tom de ironia boêmia sublinhando-as com um risinho cáustico e pérfido.

— Nunca hás de ser coisa alguma, porque vives a criticar a humanidade, e a humanidade o que quer é que a gente não veja os seus ridículos e as suas fraquezas.

— Pior! Achas que eu me devo subordinar aos caprichos da humanidade!...

— Que remédio tens tu!...

— O remédio dos incuráveis: a paciência...

— Bem, o lugar não se presta a discussões. Enfiemos outra vez pela Rua do Ouvidor.

— Outra vez?

— Para tomar o bonde de Botafogo...

Mas uma surpresa estava reservada ao secretário. Justamente na ocasião em que o bacharel passava diante da Notre Dame de Paris, deram de ombros com D. Branca e Adelaide.

— Oh!

— Oh!

A mesma exclamativa saiu da boca de Furtado e da esposa. Evaristo soltou um olá! fino, esganiçado e tão alto que algumas pessoas voltaram-se com um movimento de viva curiosidade.

— As senhoras por aqui! — estranhou o bacharel.

— Por aqui! ... — repetiu Furtado.

— Que grande admiração! E os senhores também não andam passeando? — opôs D. Branca com um olhar interrogativo por trás do véu que lhe cobria o rosto.

Adelaide esperou, sorrindo, a defesa da amiga.

— Nós somos homens...

— Morreu o Neves!

— Íamos ao Banco — disse Adelaide.

— Com escala pelo Largo de São Francisco... — atalhou o bacharel.

Nada de escândalo, nada de escândalo! — preveniu Furtado. — Já agora...

— Já agora vamos fazer um lanche ao Pascoal — interrompeu a esposa do secretário.

E os dois casais, bras dessus, bras dessous, foram andando rua abaixo tranqüilamente.

Eram duas horas da tarde. A onda de povo crescia; o movimento era cada vez maior nos cafés; ouviam-se orquestrações de harpa e o pregão monótono de leiloeiros destacando no meio da vozeria dos transeuntes.

Logo depois do almoço D. Branca sem dizer nada ao marido, convidara Adelaide para "uma volta na Rua do Ouvidor". A tímida esposa de Evaristo, guardando os seus escrúpulos e as suas conveniências de mulher bem casada, objetou-lhe o desgosto que isso podia causar ao bacharel.

— Vais comigo, filha, vais com a tua amiga.

— E o Sr. Furtado?

— O Furtado não ralha, porque sabe que é perder tempo. É uso no Rio de Janeiro as mulheres saírem sem os maridos. Uma coisa tão velha! Outro dia fomos, eu e D. Sinhá do desembargador...

— Outro dia?

— Vocês ainda não estavam aqui; foi num sábado... Pensas que o Furtado se incomodou? Qual!

— D. Branca! — fez a outra com um ar medroso.

— Não é nenhuma admiração, mulher. Metemo-nos no bonde, como quem vai fazer compras à cidade, sem mistérios, aos olhos de todo o mundo.

Adelaide não se resolvia. " — Sair sem Evaristo e logo para a Rua do Ouvidor!... Hum!..."

— Qual um, qual dois, rapariga; vista-se e vamos, que é meio-dia.

— D. Branca, D. Branca!

— Pior! ...

— ...Mas a senhora se responsabiliza, então...

— Responsabilizo-me pelo que você quiser.

— Bem... depois, depois! ...

E Adelaide atraída pelas cavilações da esposa do secretário (sempre fértil em expedientes), levada mesmo por um irresistível amor de se mostrar, de se apresentar, de exibir os seus formosos olhos numa rua tão pública, de ver as suas iniciais num jornal que descrevia as toilettes da Rua do Ouvidor.

Adelaide correu, lépida, ao guarda-vestidos.

— Olha, o de rendas, hem! — lembrou a amiga.

— Sim, o de rendas, é claro...

E daí a pouco um aroma fino, de sabonete, de pó-de-arroz e de essência de Houbigant espalhava-se em toda a casa — no primeiro e no segundo andar -; fechavam-se gavetas com açodamento, farfalhavam sedas e tiniam jóias. D. Branca por um lado e Adelaide por outro, esmeravam-se nas toilettes como se fossem a um baile ou a alguma festa de rigor.

— Pronta?

— Pronta... — respondeu a esposa do bacharel, dando um jeito no vestido, ao mesmo tempo que se revirava para o grande espelho do toucador.

E saíram de chapéu-de-sol aberto, uma jovialidade infantil, pelas ruas de Botafogo, a tomar o bonde. Os passageiros olhavam-nas com esse olhar curioso e indiscreto que às vezes confunde uma mulher honesta com uma horizontal. Adelaide ia um pouquinho no ar, um bocadinho gauche, às voltas com a luva da mão esquerda que não queria abotoar, sempre tímida, em contraste com os modos vivos da esposa do secretário.

Um senhor de óculos e barba grisalha cumprimentou-as.

— Quem é?

— Não conheço...

— Nem eu...

D. Branca não se lembrava, ou fazia que se não lembrava: era um dos titulares de Botafogo, o comendador Beltrão, dono de uma grande fábrica de cigarros. Não gostava de cumprimentar os homens de fisionomia idosa. — "Ora, o Beltrão... um velho!"

— E se encontrarmos o Sr. Furtado? — balbuciou Adelaide.

— Melhor... voltamos em boa companhia.

Mas o pensamento da jovem senhora estava no outro, no bacharel, no Evaristo. — Que diria ele, depois? Que ela já o não consultava em seus negócios, que não era a mesma Adelaide, que não fazia caso dele, talvez... E como explicar a sua ida à Rua do Ouvidor, como convencê-lo de que D. Branca a arrastava responsabilizando-se perante ele, como? Os homens não acreditam facilmente nas mulheres, enquanto não as vêem chorar, enquanto não as vêem de rojo a seus pés... Há dois anos que eram casados e nunca Evaristo duvidava das suas palavras; mas agora, no Rio de Janeiro... quem sabe? talvez não as aceitasse logo, como na província. Outras idéias. O mundo é todo cheio de contradições...

— Vamos voltar? — propôs ela à amiga.

E ia pretextar uma dor de cabeça, uma dor no fígado, um incômodo qualquer, mas D. Branca atalhou:

— Voltar? Que idéia! Eu, nem que me pagassem; meu rico vestidinho há de dar que falar hoje à Rua do Ouvidor. Voltar por quê?

— Por causa do Evaristo... — sorriu timidamente Adelaide.

— Ora, minha filha, tenha juízo! Então você é alguma criança? O Sr. Evaristo é um rapaz inteligente, um homem de bem, um cavalheiro... Os tolos é que prendem as mulheres, como se elas fossem escravas. Já lhe disse que me responsabilizo...

— Eu sei, mas...

— Não admito razões. A senhora vai comigo; quem a leva sou eu. E, em todo o trajeto de Botafogo à Rua do Ouvidor, uma e outra mereceram grandes elogios, grandes exclamações e vivos olhares de capitalistas e doutores que, mesmo na faina dos seus negócios, nunca se descuidam do sexo amável.

No ponto dos bondes houve um senhor que lhes dirigiu a seguinte frase cheia de ocultas intenções, numa voz melíflua e carinhosa:

— Como são lindas!

E outro, mais adiante:

— Oh, que beleza!

E ainda outro, já em plena Rua do Ouvidor:

— Deliciosas!

Tudo gente séria, moços bem vestidos, de colarinho alto e chapéu de forma e anéis de brilhante.

Adelaide não sabia como pisar, nem que jeito desse às mãos, nem onde pusesse os olhos, vendo surgir, de repente, o bacharel e agarrar pela gola do fraque um homem daqueles, e culpá-la, e dar escândalo! Arrependia-se mil vezes de ter acedido às instâncias de D. Branca.

A esposa do secretário, num coquetismo de mulher fácil, abanando-se com o rico leque de plumas, uma ostentação imperiosa de sedas e gazas resplandecia ao lado da amiga. Todos os olhares cravavam-se nela, no seu belo porte de mundana, nas suas formas rijas que o espartilho evidenciava, torturando-a.

— Bela rapariga! — foi uma das exclamações que lhe chegaram ao ouvido. E ela como que redobrou de altivez, aprumando-se, garbosamente.

O instinto ou o que quer que seja levou-a a tomar o caminho da Praça, pela Rua Direita. A mulher tem uma espécie de faro tão pronunciado e admirável como em certos animaizinhos de estima. D. Branca ia pelo faro, quando quem lhe havia de surgir? o visconde, o respeitabilíssimo Santa Quitéria... Vinha de uma assembléia-geral de acionistas no Banco.

— Oh, excelentíssimas, folgo de vê-las! — exclamou o banqueiro estendendo a mão, todo inclinado, primeiro à Branca e depois à Adelaide. — Andam passeando?

— Andamos passeando... — murmurou a esposa do secretário.

E emendou logo:

— Vamos fazer umas compras

— Ah!... Está muito bem, está muito bem.

— O Sr. Visconde já veio de Petrópolis.

— Sim, excelentíssima; Petrópolis está deserto... Desde que a família imperial mudou-se para a Tijuca que Petrópolis está deserto. O imperador embarca definitivamente na próxima semana.

— Para a Europa?

— Exatamente.

E, com um ar compungido, o visconde acrescentou:

— Pobre velho! Vossa excelência não o conhece...

— Por que, Sr. Visconde?

— Porque... porque reputo gravíssimo o seu estado...

Adelaide prestava atenção à conversa, olhando o banqueiro, medindo-o de alto a baixo, examinando-o.

— Que está dizendo?

— Gravíssimo... E comigo pensam os doutores da ciência.

— Pobre velho! — repetiu D. Branca sensibilizada. — Eu imagino a imperatriz...

— A imperatriz não o abandona; segue também.

— Coitada! E os príncipes?

— Os príncipes ficam em companhia da princesa. Pelo menos é o que se diz...

— Um homem tão forte, um hércules! — exclamou a esposa do secretário.

— As aparências iludem, minha senhora, e a morte é traiçoeira. Andam, então, fazendo compras?...

— Fazendo umas comprinhas...

— Bem, não as quero importunar.

E o Santa Quitéria descobriu-se, apertando, com uma delícia enorme, a mão enluvada e fina de D. Branca.

— Recomende-me ao nosso Furtado...

— Agradecida.

Oh, como ela desejaria prolongar aquele tête-à-tête, aquele doce encontro!... Mas o movimento era grande na Rua Direita, e não menos grande a língua do povo.

O banqueiro afastou-se, num gracioso ademane, e elas, depois de ligeira hesitação, voltaram pela Rua do Ouvidor.

Novos ditos, novas exclamações.

De um grupo, à porta de uma confeitaria, saíam estas palavras:

— As mesmas! as mesmas!

E uma chusma de olhares cobiçosos assaltou-as.

Entraram numa grande loja de fazendas, trocaram algumas palavras com o caixeiro, moço amável que trazia sempre a ponta do lenço fora do bolso do paletó, e — obrigada, hem, muito obrigada!... — saíram.

Foi então que o bacharel bispou-as, quando ele e o secretário voltavam do Largo de São Francisco, e os dois casais resolveram-se a tomar qualquer coisa no Pascoal.

A presença de Adelaide àquela hora na Rua do Ouvidor significava, para Evaristo, uma desconsideração, aos seus hábitos e às suas normas — um desvio da esposa, uma quebra de respeitos ... Sempre a conhecera tímida, obediente às suas prescrições e inimiga de se apresentar onde ele não estivesse, e agora via-a na rua mais pública do Rio de Janeiro, em grande toilette, como uma senhora habituada ao luxo e à publicidade, que não receia o eco das más-línguas, nem a audácia dos ociosos! É certo que ia pelo braço de D. Branca, mas a esposa de Furtado... a esposa de Furtado... a Sra. D. Branca... E enquanto caminhava para o Pascoal, Evaristo, silencioso ao lado da mulher, como que se empenhava na resolução de problema difícil. Adelaide merecia-lhe toda a confiança, mas, positivamente, já não era a mesma Adelaide. Vir à cidade sem lhe dizer, sem o prevenir?... Não, já não era a mesma...

E enquanto durou o lanche, enquanto estiveram na confeitaria debicando empadas e sanduíches — o bacharel manteve-se casmurro a torcer o bigode, a olhar os que entravam e os que saíam, mais filósofo que nunca, a alma vibrando numa indignação muda e tenebrosa.

Adelaide compreendeu que o havia desgostado e cruzou o talher.

D. Branca e Furtado entreolharam-se com admiração. Era a primeira vez que os viam amuados.