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Til/IV/XI

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(Redirecionado de Til/II/XXVI)

O fim da noite foi para Jão Fera um pesadelo horrível.

A todo instante fulgurava em sua alma, ao clarão de uma chama satânica, a cena atroz do assassinato de Besita.

Mais de cem vezes, no resto da noite, reviveu esse momento de acerba angústia, no qual toda sua existência submergiase, como rio caudal pela estreita gorja de um precipício.

Revia com a mesma ânsia o vulto do Ribeiro, e sentia que após vinte anos ainda não cicatrizara em sua alma o golpe que a tinha dilacerado, quando foi ele, Jão, obrigado a rasga-la, ficando junto de Besita, e não perseguindo o assassino.

A voz da mísera mãe ressoava-lhe constantemente no íntimo, com aquele pungente grito de desespero: - "Minha filha, Jão!... Ele... matá-la...".

Revolvia-se o capanga na dura laje que lhe servia de leito; e tentava subtrair-se à obsessão, lembrando que não passava aquela visão de um desvario de seu espírito.

Mas surgia-lhe a imagem de Besita, que descia do céu para implorar-lhe a salvação da filha; e o capanga, impelido por força misteriosa, erguia-se de um ímpeto; e vagava à toa pelo ermo, à busca do ignoto perigo que ameaçava Berta.

Uma vez chegou a cerca da casa de nhá Tudinha para certificar-se de que nada ocorrera de extraordinário naquela habitação. Vendo-a tranqüila como de costume, tornou à furna e esperou que amanhecesse.

Às seis horas encaminhara-se para a tapera, onde esperava encontrar Berta. Batia-lhe o coração pensando na cólera da menina.

Chegado ao ponto da vereda, onde ficava o fojo minado pelo Brás, o capanga que desde o princípio descobrira a cilada e a desprezara, sorriu, percebendo as escarchas da terra gretada pela escavação interior.

Batendo com o pé de champa, abateu a estiva, que, desmoronando-se com a camada de barro superposta, rolou pelo barranco abaixo.

Ouviu-se um berro, e o idiota, que desde o romper do dia, acocorado no fundo do desfiladeiro, esperava o corpo do capanga para cair-lhe em cima, fugiu amedrontado, mas sobretudo furioso por lhe ter falhado o ardil armado com tamanha paciência.

Jão tinha gana ao idiota, e prometeu a si castiga-lo. Entretanto, saltou a fenda do despenhadeiro, como por segurança se habituara a fazer desde que descobrira a cilada, e aproximou-se da tapera.

Aí chegou o momento em que Zana via a descoberto o vulto do Ribeiro, assomando na orla do mato.

O grito que soltou a negra, repercutiu na alma do Bugre, como o eco de um som remoto, mas que estrugia ainda a seus ouvidos. O semblante fulvo da louca surgiu diante dele como a figura que tinha gravada dentro da alma, no sombrio painel da morte de Besita.

Seu olhar acompanhou a vista esvairada de Zana e encontrou-se com o espectro, que tantas vezes lhe aparecera durante a noite. A expressão viperina daquele rosto, ele a conhecia; era a máscara que tinha servido, vinte anos antes, na horrível tragédia.

Apoderou-se do capanga uma súbita convulsão. Tremiam-lhe os músculos, como as estipes da palmeira, açoitadas pelo temporal. Batiam os dentes; e a língua trêmula nem força tinha para balbuciar.

A possante organização parece romperse aos embates de uma paixão imensa, que se quer precipitar do íntimo, e não acha válvula bastante por onde escape.

A semelhança do monte percutido pelo fogo subterrâneo, que lhe dilacerava as entranhas, o corpo robusto e atlético de Jão Fera brande, e vacila até que abra-se enfim uma cratera a esse ímpeto vulcânico.

Durou a crise espantosa todo o tempo que levou Ribeiro a aproximar-se de Berta. A cada passo do facínora, crispava-se o capanga, no afã de colher as forças; mas abatia sobre si, como ao próprio peso se acalca a massa bruta.

Quando, porém, o Ribeiro já estendia o braço para tocar a menina, tal repercussão ele sentiu, que pulou arremessado como uma pela, e chofrou o inimigo com o arremesso da águia quando arrebatada a presa.

Sufocando na boca do miserável o grito que lhe escapava, arrastou-o para o mais espesso da mata.

Foi este rumor que Berta ouvira de envolta com a gargalhada estridente de Zana, a qual por uma súbita lucidez reconhecera o capanga, e adivinhara nele o vingador de Besita e o salvador da filha.

Entretanto, Jão Fera, embrenhado na espessura, atirava ao chão o corpo do Ribeiro, quase desfalecido pelo terror e pela constrição formidável dos braços que o arrochavam.

O capanga sacara a faca da cinta, e com o golpe suspenso procurou sofregamente um lugar para ferir, mas de modo que reanimasse com a mais intensa dor, aquele corpo desmaiado sem contudo lhe tirar a vida, que ele queria conservar como um avaro, para sua vingança.

Ao cabo de um instante de hesitação arremessou de si a arma; arquejante aos arrancos daquela sanha. Agachando-se então como um tigre que prepara o salto, com os dentes rangidos e os lábios espumantes, se arremessou em cima do Ribeiro e tripudiou sobre o corpo em um frenesi de selvagem ferocidade.

Quem o visse dilacerando a vítima com as mãos transformadas em garras, pensaria que a fera de vulto humano ia devorar a presa e já palpitava com o prazer de trincar as carnes vivas do inimigo.

Soou perto um brando de horror.

Transido e estúpido, Jão Fera viu Berta fugindo espavorida daquele sítio, ao qual a guiara o Brás, por uma estulta malignidade. O idiota espreitar a cena anterior, e forjara no seu bestunto aquela vingança.

O furor de Jão Fera transportou-se do cadáver, que já não o podia cevar, ao monstrengo; na sua raiva o teria despedaçado, se este não corresse a abrigar-se sob a proteção de Berta.

A menina, alucinada pelo medonho espetáculo a que assistira, se tinha encostado ao tronco de uma árvore; e a grande custo conseguiu suster o corpinho trêmulo e vacilante.

Foram os gritos de Brás, colhido pela mão do Bugre, que a despertaram. Vendo o perigo iminente do mísero idiota, recobrou um assomo de sua energia e arrebatou a vítima às garras da fera.

Mais prostrada ainda por aquele novo e tão violento esforço, voltou a arrimar-se ao tronco, e ofegante, a desfalecer, abraçou-se com ele para não cair.

Ficara Jão Fera como chumbado ao chão, sem força para fugir, sem coragem para aproximar-se. Afinal, passo a passo, senão de arrasto, avançou:

— Nhazinha! balbuciou com a voz cava e submissa.

Voltou-se a menina em um soberbo assomo de ira:

— Vai embora! Não te quero mais ver! Tu és pior do que fera: és um demônio. Não há sangue que te farte!...

De cabeça baixa, o Bugre, rechaçado por aquele ímpeto de indignação, afastara-se dois passos; mas apenas desviou-se o olhar cintilante da menina, retrocedeu:

— Perdoe, Nhazinha!

— Vai embora! gritou Berta.

Brás, que se agachara aos pés da menina, soltou um grunhir de escárneo. Teve Jão Fera um ímpeto de revolta. Queria suplicar seu perdão.

— Não vou! disse rispidamente.

O talhe de Berta vibrou como uma seta brandida nos ares. Sua mãozinha delicada partiu rápida a haste de um cipó, e com essa vergasta fustigou o rosto de Jão Fera.

Duas lágrimas sulcaram as faces do facínora, e lavaram uma gota de sangue que aí borbulhava.