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Til/IV/I

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No terreiro das Palmas arde a grande fogueira.

É noite de São João.

Noite das sortes consoladoras, dos folguedos ao relento, dos brincados misteriosos.

Noite das ceias opíparas, dos roletes de cana, dos milhos assados e tantos outros regalos.

Noite, enfim, dos mastros enramados, dos fogos de artifício, dos logros e estrepolias.

Outrora, na infância deste século, já caquético, tu eras festa de amor e da gulodice, o enlevo dos namorados, dos comilões e dos meninos, que arremedavam uns e outros.

As alas da labareda voluteando pelos ares como um nastro de fitas vermelhas que farfalham ao vento na riçada cabeça de linda caipira, derramam pelo terreiro o prazer e o contentamento.

Não há para alegrar a gente, como o fogo. Nos estalidos da labareda, nas faíscas chispando pelos ares, nas vivas ondulações da chama a crepitar, há como um riso expansivo que se comunica à nossa alma e influi nela uma trepidação brilhante.

A luz é a vida; mas a chama é o júbilo, a cintilação do espírito.

Formosa perspectiva tem neste momento a fachada da casa das Palmas, assim iluminada pela fogueira.

Uma linha de jeribás corre-lhe em frente, moldurando com as verdes arcadas a volta das janelas, o que dá ao edifício graça e chiste especial; pois enfeita a simples arquitetura com os florões e recortes das palmeiras.

A meio terreiro, de um e outro lado da fogueira, se elevam dois mastros, pintados com listrar de escarlate e branco, traçadas em espiral.

No tope do outro mastro uma grande bola, sobre a qual ergue-se vistosa boneca de pano, naturalmente cheia de pólvora.

A festa da sala é cidadã. Damas e cavalheiros tiram sortes, cerimoniosamente sentados em volta de uma mesa; ou dançam quadrilhas e valsas figuradas; enquanto pelos cantos os velhos fazendeiros falam a respeito das carpas, da nova flor do café, e das geadas, seu constante pesadelo.

No terreiro folgam os rapazes que acham mais graça na função campestre, e em vez de consultar o livro do fado, confiam nos oráculos da fogueira, saltando-a de corrida, e passando nela o ovo, que há de ficar ao relento à hora fatídica da meia-noite.

Entre estes lá estão Afonso e Miguel, preparando-se com outros companheiros a mostrar quem tem mais certeira mão, para incendiar com um tiro a garrida boneca suspensa ao tope do mastro.

Muitas moças também fugiram da sala para acompanharem os folguedos dos rapazes, nos quais porventura acham mais encanto do que nas danças tão monótonas, quando não têm o sainete do amor.

A primeira foi Berta, e Linda a acompanhou pressurosa. Apesar da insistência com que D. Ermelinda procurava entretê-la na sua roda, a menina a pretexto de estar com a amiga, não saía do terreiro; e se alguma vez entrava na sala era para eclipsar-se logo.

— Quem há de ser o primeiro? perguntou Afonso armado com a sua clavina.

— Eu! responderam uníssonas as vozes dos companheiros.

Só uma não se ouvira; era a de Miguel; mas não fora esquecido seu nome. Linda o pronunciara timidamente entre um sorriso e um rubor; e Berta o repetira em voz alta:

— Miguel!

— Eu serei o último! disse o moço com modéstia, que porventura disfarçava um desejo de primar.

Como último podia algum dos companheiros priva-lo da vez, e impedi-lo de mostrar a sua destreza; mas também se nenhum lograsse tocar o alvo, maior triunfo alcançaria, conseguindo o que fora impossível aos outros.

Não era lanço tão fácil como parecia, embora para destros atiradores. Se a boneca apresentava boa margem à pontaria, só em um ponto, no peito cheio de pólvora, podia a bucha da espingarda incendiá-la; às roupas, molhadas pelo relento, dificilmente se comunicaria a chama.

Por isso diziam os rapazes a galhofar, enquanto preparavam as clavinas:

No coração da moça!

E todos ardiam em desejos de acertar, como um bom presságio da chama que haviam de atear no coração das namoradas, durante aquela noite de risos e folgares.

Foi Afonso quem primeiro atirou.

— Não acertou! bradaram satisfeitos os competidores.

— Lá está! gritou o atirador com ar triunfante apontando para a boneca.

De feito na saia de cassa branca aparecia uma centelha inflamada, que lançava de si algumas chispas, como fogo que se ateia. Durante alguns momentos os olhos dos rapazes estiveram presos daquele ponto luminoso, enquanto batia-lhes o coração com receio de que, incendiada a pólvora, voasse a boneca pelos ares, ficando malograda sua esperança.

— Apagou-se! exclamou Berta.

— Quem lhe disse? retorquiu Afonso.

— Apagou-se, sim! acudiu Linda batendo as mãos de prazer.

Em verdade a fagulha, que ardia na roupa da boneca, depois de bruxulear um instante, se extinguira de todo. O tiro de Afonso batera no tope do mastro; e fora apenas um morrão da bucha que saltara na saia molhada pelo sereno.

Uma algazarra dos rapazes festejou a derrota de Afonso, que voltando-se para a irmã, disse-lhe à meia voz, fingindo-se agastado:

— Está muito contente, hein! Cuida que há de ser Miguel? Pois vá perdendo a esperança!

Linda respondeu-lhe com um momo gracioso, enviando um sorriso a Miguel, que estava a seu lado, entre ela e Berta.

Assim é que me paga, eu ter torcido por você!

Pois não; foi você mesmo que me encaiporou!

Continuou o folguedo; todos os rapazes atiraram sucessivamente e com vária sorte. Uns acertaram na boneca, mas não conseguiram incendiá-la; outros apenas se lhe aproximaram; e muitos andavam tão por longe que pareciam atirar à catacega. Estes eram apupados com estrepitosas gargalhadas e toda a sorte de motejos e gritaria.

Chegou por fim a vez de Miguel.

O caçador recebeu a clavina das mãos de um companheiro; carregou-a com a maior presteza, e levando-a ao ombro, desfechou o tiro sem hesitação.

Um jorro de chamas esguichou do tope do mastro. A boneca incendiada voava pelos ares, esfuriando aljôfares azuis, verdes e escarlates, que listraram a treva da noite e correram pelo espaço trêmulas e cintilantes como lágrimas de estrelas.

— Bravo! gritaram em coro os rapazes.

— Viva o Miguel! bradava Afonso abraçando o amigo.

As moças batiam palmas, chilrando de folia e contentamento; sobretudo Berta, que parecia uma criança, a dar piruetas no terreiro, estalando castanholas nos dedos e dançando o fado com Afonso.

Linda ficou séria; mas sua alma coada em um olhar inefável embebeu-se no semblante de Miguel.