Uma Campanha Alegre/II/XVIII
XVIII
Fevereiro 1872.
Ora o concerto não era uma recepção oficial dos corpos do Estado — mas uma festa!
Uma festa com luzes, aromas, orquestras, mulheres decotadas, flores e danças.
Perguntamos se os srs. eclesiásticos, com os seus votos, podem participar destes gozos mundanos.
Ou conhecemos muito pouco a essência do catolicismo — ou não nos parece que os srs. eclesiásticos possam estar legitimamente e segundo a lei da. Igreja, num lugar onde um homem toma nos braços uma mulher, e a arrebata através da sala, roçando-lhe as pontas dos bigodes no calor do colo nu.
Da tradição dos Padres e dos Santos não consta que as piedosas e místicas figuras, desses
Homens do Espírito, fossem vistas jamais por entre o rumor lânguido dos violoncelos e o palpitar amoroso dos leques... De S. Bernardo sabemos que vivia em
Clairvaux para fugir à riqueza de Cister, e aí, sob um alpendre de folhagem, comendo pão duro e bebendo no fio dos regatos, preparava-se para Deus: se se correspondia com o rei de Inglaterra e com o imperador da Alemanha, era em dez linhas apressadas: mas era em dez páginas que escrevia a pobres monges aflitos de alma, para os encher da
Graça. De S. Domingos sabemos que, descalço e esfarrapado, na santa ferocidade da sua fé, pregava e impelia uma cruzada contra os hereges do Languedoc: que vendia os seus livros para comprar lenha aos mendigos: e que um dia, para socorrer uma mulher pobre, como já não tinha dinheiro — se quis vender a si como escravo. Do poético S.
Francisco de Assis sabemos que renegou as suas riquezas, viveu muito tempo num buraco, e partiu a peregrinar as terras, beijando as árvores dos caminhos, falando aos pássaros que lhe voavam em roda — e espalhando sobre todos os seres, flores, rochas, feras, o amor divino que o enchia! Está assim a lenda dos santos cheia de renunciamentos místicos e de uma intratável hostilidade aos regalos. E de nenhum se conta — que fosse espairecer do serviço de Deus para um bufete resplandecente de baixelas, entre champanhe e perdizes trufadas.
A teologia nos ensina, que nunca o sacerdote deve arredar um só momento o seu espírito da contemplação de Deus e da meditação da Graça. Ora não é natural que SS.
S.as estivessem possuídos destas preocupações espirituais, no galante sarau de el-Rei.
Que tínheis em torno de vós, srs. eclesiásticos? Os moles sofás que inclinam às preguiças românticas; os aromas perturbadores de pó de arroz e de femina; as caudas de seda ondulantes e lânguidas; os cabelos Lustrosos, constelados de jóias; os pescoços brancos de um polido de mármore... Entre estas seduções sataníferas que pensavam VV.
S.as , srs. eclesiásticos?
Mais longe, no bufete, estava a trufa e o champanhe... Um sarau dá sede. Como a saciastes, srs. sacerdotes?
A nós outros, homens pecadores e perdidos, não causa já grandes estremecimentos a presença da beleza mortal: estamos acostumados, pela educação, às glórias do decote. Também nos não perturba o demónio cor de opala que faísca no champanhe. Conhecemos Satanás em todas as edições. Para nós um colo decotado não é
Deu-se um facto equivoco no sarau do Paço, oferecido ao Imperador : — e foi que, segundo as mais verídicas informações, numerosos srs. eclesiásticos assistiram ao concerto do Paço. a misteriosa fatalidade do mal — é o pescoço da srª fulana, casada com o conselheiro sicrano: e o champanhe, sobretudo o do Paço, é uma triaga feita com aguapé de Bucelas.
Mas para VV. S.as , educados no isolamento e no regime do seminário, amarrados pelos votos tirânicos, emergidos da frieza da sacristia, fatigados do breviário... Ah, para VV.
S.as !
E, srs. eclesiásticos, os tempos vão de molde que o povo já se afasta dos simples virtuosos — reclama santos! Ora os santos não se supõem entre o frufru dos cetins e o suspirar das rabecas. Ninguém crê que uma rosa saia intacta de um forno, e um sr. eclesiástico puro de um baile. E um povo que não crê na pureza dos seus padres — termina por se esquecer dos martírios do seu Deus!
A verdade — aqui entre nós — é que VV. S.as podem, ao subir para as festas, dar ao criado os seus paletós a guardar; mas não lhe podem dar a guardar — os seus votos. Ora votos, por mais fortes que sejam, se os passearem entre ombros nus, se os fizerem encostar ao bufete sobre os aromas do Madeira, se os deixarem cismar aos compassos de Strauss, terminam sempre por lhes acontecer o que acontece às casas comerciais que abusam das festas — quebrar!
Se, porém, sucedeu que VV. S.as foram ao concerto porque por que Sua Majestade Imperial, assim como quiz lá vêr os folhetinistas, desejou vêr lá os sacerdotes — então lamentemos todos o singular temperamento d’este principe que vae para o vagar dos saraus passar revista ás profissões! Apressado, curio. so, espicaçado pelo tempo escasso, este Imperante pretendia ter nas salas do Paço o indice dos nossos costumes e Portugal em resumo? Sendo assim ainda bem que esse principe, assim como exigiu que na salla do concerto estivessem as profissões —-— não pretendeu que lá se achassem tambem os estabelecimentos! Ainda bem que, para poupar passadas elle não reclamou que além dos folhetinistas e dos sacerdotes comparecessem tambem no sarau — as typographias e as egrejas! — Que embaraço para El-Rei nosso Senhor!