Uma Lágrima de Mulher/I/XV

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Continuava o sopro brando sussurrante da brisa do mar.

Rosalina tinha a cabeça pendente para a terra e os seus cabelos, indiferentes, brincavam ao soprar travesso da brisa com as pedrinhas soltas na ladeira.

O silêncio principiava a coalhar.

A cinco passos de distância, de pé, com uma lanterna furta-luz na mão esquerda, e com a direita sustentando uma machadinha de abordagem, estava do alto Maffei, pálido de raiva, com a boca serrada a salivar biles.

Luzia-lhe o olhar com a mesma vermelhidão da lanterna; os cabelos empastados de suor, caíam-lhe úmidos pela testa. Estava medonho.

Era uma quadro sombrio e lúgubre.

A figura austera do velho, mergulhada na penumbra, contrastava com o grupo iluminado do primeiro plano. A atmosfera começava de se fazer carregada e pouco a pouco escondera a lua. O foco da lanterna aumentava a densidade das sombras, onde os olhos de Maffei brilhavam como os de um gato bravo. Esse olhar tinha as fosforescências da pupila do tigre.

O desgraçado Miguel sentia mais que nunca a influência magnética daqueles olhos que o fitavam da escuridão; afiguravam-se-lhe a própria sombra a espiá-lo.

Nessa ocasião, a lanterna tinha um quê de humana e atrevida: parecia uma cara risonha e irônica e contrair-se no vidro sujo de pó e a deitar para fora a língua comprida e ensangüentada, língua de luz, cuja claridade doía como um insulto.

Quando essa claridade caiu em cheio no rosto de Miguel produziu o efeito de uma bofetada. Estremeceu e corou de vergonha.

Felizmente, voltara-lhe o sangue frio.

O velho, com um gesto imperioso e grosseiro, ordenou-lhe que o acompanhasse; Miguel maquinalmente abaixou a cabeça, enquanto Maffei, sempre calmo, deu-lhe indiferente as costas e pôs-se a subir a ladeira.

Rosalina permanecia sem sentidos nos braços do amante, que, com tranqüila delicadeza, segurou-a pelos joelhos com a mão direita e com a esquerda amparou-lhe a cabeça lânguida, e, como uma mãe faria ao pequenino, deitou-a carinhosamente no colo; depois, segurando-lhe as costas com o braço, fê-la descansar com cuidado a cabeça em um dos seus ombros, e começou a seguir silenciosa e vagarosamente o velho.

A luz da lanterna ia gradualmente amortecendo, à proporção que no céu o negrume se desenvolvia.

No meio do silêncio, destacavam-se os passos cadenciados do velho e do ranger de galhos e folhas secas, que o outono arrojara ao chão.

Um ou outro passarinho, enganado pela claridade da lanterna ao passar Maffei, piava do seu esconderijo, cumprimentando o dia artificial.

Quando a gente sobe uma ladeira, qualquer peso estafa logo e parece avultar extraordinariamente.

Depois de cinqüenta passos, Miguel sentiu-se exausto. À proporção que ia subindo, mais íngreme, mais pedregosa e mais difícil era a ladeira; firmava o pé, e a pedra em que firmava desprendia-se a rolar ruidosamente até a praia; então o equilíbrio e a agilidade substituíam as forças, que aliás lhe minguavam.

Para animar-se apertava de vez em quando o corpo de Rosalina, ao que a desfalecida respondia com um suspiro tranqüilo e duvidoso, como o ressonar de uma criança adormecida.

Porém, pouco a pouco, foram desaparecendo os últimos recursos e reproduzindo-se as dificuldades: o suor jorrava em bagas da fronte do moço; as pernas tremiam-lhe; a vista perturbava-se; a língua seca, o coração doído, a cabeça perdida; a respiração cada vez mais demorada e mais forte. O corpo de Rosalina parecia de chumbo; o cansaço fizera dele um corpo de gigante. Ora desanimava, ora reagia; as forças iam e vinham. Era um vaivém de agonias.

E nessa vertigem acompanhava ele com a vista esgazeada a luz vermelha da lanterna, que gradualmente ia-se afastando, diminuindo sempre.

Sem saber porque, ligava certa correspondência entre as próprias força que, extinta aquela luz, fartar-lhe-ia o ânimo para o resto do caminho; pedia mentalmente a Deus a vida para ela, com o mesmo fervoroso interesse como a pediria para si.

Contudo, a lanterna estava já nos seus últimos arrancos.

O velho tinha com vantagens de forças aumentado o espaço entre si e Miguel; mais dez passos, oito! cinco passos! Dois... e chegou!

A lanterna escondeu-se, a luz desapareceu para Miguel. O rapaz vacilou, ao cair! Equilibrou-se!...

Um vozear confuso e penetrante parecia-lhe dizer aos ouvidos - Ânimo!

Um esforço mais! Um último arranco!

O moço reuniu os destroços de suas forças; beijou com os lábios cobertos de suor o rosto gelado de Rosalina, e cortou de carreira os últimos trinta passos que faltavam.

A lanterna crepitava o seu último clarão, podemos dizer, o seu último suspiro, brilhou mais forte e morreu!...

Nisto, Miguel acabava de atravessar a porta do fundo da casinha branca e caía desamparadamente no chão, com Rosalina a seu lado.

Desabou, quase morto.

O suor corria-lhe de todo o corpo; a caixa dos pulmões erguia-se e abaixava-se com a sofreguidão de um fole enorme fazendo grande rumor a respiração ao sair; a voz desaparecera; as pálpebras fecharam-se; o suor convertera-se em umidade pegajosa e doentia, como a última transpiração de um tísico.

Sentia vertigens e vontade de vomitar. Era um incomodo comparável ao enjôo do mar.