Versos da mocidade (Vicente de Carvalho, 1912)/Ardentias/Sobre uma criança morta
Entregaram-te emfim á paz do cemiterio,
Deitaram-te na cova o corpo delicado,
E a funda escuridão do funebre misterio
Sorveu-te para sempre, ó lirio desfolhado!
Agora, na humidade asperrima do solo,
Terás, para abrigar-te o derradeiro sono,
Em vez do olhar materno e do materno colo
A solidão sem fim do supremo abandono.
E lá ir-te-ão roçar a alvissima epiderme
E, roendo-te a carne, apodrecer-te os ossos,
O contato voraz das larvas e dos vermes,
E as negras podridões dos charcos e dos poços.
E, emquanto na funerea escuridão dormires,
A terra hade sorrir nas espansões da flóra,
Hão de enfaixar o ceu as côres do arco-iris,
E o sol hade fuljir nas purpuras da aurora.
E tu... não mais irás colher pelos caminhos
A rubra flor aberta á madrugada, e á ave
Não mais imitarão a muzica dos ninhos
As claras vibrações de tua voz suave.
Amanhã tu serás o lodo de um monturo,
Uma caveira a rir um rizo de idiota,
E surjirás no limo, e has de ser verme impuro,
E has de vir na herva má que a sepultura brota...
Embora! Terás sempre a alvura do alabastro
A’ vista espiritual de uma iluzão materna:
Ah, para tua mãi tu serás sempre um astro
Refuljindo no azul de uma saudade eterna.