Viagem ao norte do Brasil/I/VIII

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CAPITULO VIII

Partida dos francezes para o Amazonas em companhia dos selvagens.


Antes que entre na materia, convem narrar o que me disseram os selvagens relativamente á verdade da existencia das Amazonas, porque é questão de todos os dias se n’esses lugares ha Amazonas, e si são similhantes ás descriptas pelos historiadores?

É voz geral e commum entre os selvagens, que ha Amazonas, e que habitam n’uma ilha muito grande, cercada pelo grande rio do Maranhão, ou das Amazonas, que desembocca no mar por um espaço de 50 legoas de largura: que essas Amazonas foram antigamente mulheres e filhas dos Tupinambás, que se retiraram da companhia e do dominio d’elles — seduzidas e guiadas por uma d’ellas: que internando-se pelo paiz ao longo d’esta costa, descobriram á final uma linda ilha, ahi se recolheram, e em certas estações do anno acceitam por companheiros os homens das habitações mais proximas.

Si párem um menino pertence ao pae, que d’elle cuida logo depois de desmamado: si porem é uma menina fica com a mãe em casa. Eis a voz geral e commum.

N’um dia, quando os francezes andavam n’esta viagem, fui visitado por um grande Principal, que morava muito acima n’este rio. Depois dos seos cumprimentos, que descreverei mais adiante, me disse morar nas ultimas terras dos Tupinambás, e que só em duas luas podia voltar do rio Maranhão á sua aldeia, e então lhe respondi admirando-me do trabalho que tomou vindo de tão longe. Replicou-me «fui ao Pará vêr meos parentes, quando foram os francezes guerrear nossos inimigos, e ouvindo fallar de vós e dos outros Padres, quiz vel-os pessoalmente para dar noticias certas aos meos companheiros.»

Por intermedio do meo interprete lhe perguntei si sua residencia era muito longe da das Amazonas, e elle respondeo-me «uma lua,» isto é, um mez para ir.

Repliquei-lhe, si tinha estado entre ellas, e si as tinha visto, e respondeu-me «que nem uma coisa nem outra», pois nas canoas de guerra, onde andou, se desviou da ilha onde ellas residiam.

Esta palavra Amasonas lhes foi imposta pelos portuguezes e francezes[NCH 16] pela similhança, que ellas tinham com as antigas Amazonas por causa de sua separação dos homens; porem não cortam a mama direita, e nem imitam a coragem d’essas afamadas guerreiras, mas vivem como as outras mulheres selvagens, ageis e dextras no manejo do arco, e nuas se defendem dos seos inimigos, como podem.

No dia 8 de julho de 1613 do porto de Santa Maria do Maranhão, partio o Sr. Ravardiere ao som de muitos tiros de artilharia e mosquetaria, com que o saudou o Forte de S. Luiz segundo é costume entre os militares.

Levou em sua companhia 40 soldados valentes, e 10 marinheiros, e por cautella tambem 20 dos principaes selvagens, tanto da Ilha do Maranhão e de Tapuytapera, como de Cumã.

Seguio para Cumã[NCH 17] onde o esperavam muitas canoas de indios, e provendo-se de farinha seguio para Caieté onde haviam 20 aldeias de Tupinambás, e ahi se demorando mais de um mez, reforçou a tripolação de sua embarcação com mais 60 escravos que lhe deram.

No dia 17 de agosto partio de Caieté com muitos habitantes d’essa localidade, e dirigio-se para a aldeia Meron, onde em grandes canoas embarcou selvagens e francezes, e seguio para a embocadura do rio Pará: em viagem morreo afogado um francez por ter se virado a canoa em que elle ia, porem salvaram-se seos companheiros trepados no dorso da mesma.

O rio Pará desde a sua emboccadura para cima é muito povoado de Tupinambás; chegando á ultima aldeia, situada á 60 legoas da sua emboccadura, todos os principaes d’esses lugares lhe pediram com instancia, que fosse guerrear os Camarapins,[NCH 18] os quaes são muito ferozes, não querem paz, e por isso não poupam seos inimigos, pois quando os captivam, matam-nos e comem-nos: poucos dias antes tinham matado tres filhinhos d’um dos principaes dos Tupinambás d’aquellas regiões, e guardaram os ossos d’elles para mostrar aos paes afim de causar-lhes mais dó.

Este exercito de francezes e de Tupinambás, em numero de 1200, sahio do Pará, entrou no rio de Pacajares, d’ahi dirigio-se ao de Parisop,[NCH 19] onde encontraram Vuacété ou Vuac-Uaçú, que simpathisando com este movimento offereceo para reforçal-o 1200 dos seos companheiros.

Acceitou-se apenas um pequeno numero de selvagens, que elle mesmo acompanhou, e os encaminhou ao lugar, onde residiam os inimigos, o qual era nas Iuras,[NCH 20] que são casas feitas á imitação das «Ponte aux changes,» de S. Miguel de Paris, collocadas no cume de grossas arvores plantadas n’agoa.

Foram immediatamente cercados pelos nossos, que os saudaram com 1000 ou 1200 tiros de mosquetaria em tres horas: defenderam-se porem elles valorosamente de sorte que sobre os nossos cahiam as flexas como chuva ou saraiva, ferindo alguns francezes e Tupinambás, porem não matando um só.

Sobre alguns dispararam-se tiros de morteiro, e de canhão, incendiaram-se-lhes tres Iuras morrendo n’essa occasião 60 indios d’elles, o que somente servio para mais augmentar-lhes o desespero pois antes queriam morrer do que cahir nas mãos dos Tupinambás.

Á vista d’isto resolveo-se abandonal-os com intenção de ver, si n’outra occasião, tratados com doçura podiam ser domesticados.

Durante o medonho combate dos mosqueteiros, usaram os selvagens d’uma traça singular pendurando os seos mortos no parapeito de suas Iuras, e por meio de uma corda de algodão amarrada aos pés faziam com que elles se mexessem.

Pelas fendas ou frestas viam os francezes estes corpos, e julgando-os vivos contra elles faziam fogo tres e quatro vezes a ponto de ficarem despedaçados, o que provocava os gritos e zombarias d’estes canalhas, e somente terminou-se esta triste scena quando uma mulher acenando com um pano branco á maneira dos parlamentares, fez com que cessasse o fogo, e então ella gritou «Vuac, Vuac.» Porque trouxeste estas boccas de fogo, (fallava dos francezes por causa da luz, que sahia das caçoletas de suas armas) para arruinar-nos, e destruir a terra?

«Pensas contar-nos no numero dos teos escravos, eis os ossos dos teos amigos e dos teos alliados, cuja carne comi, e ainda espero comer a tua e a dos teos.»

Pelos interpretes se lhe disse, que se entregasse afim de salvar o resto, que havia.

Não, não, respondeo ella, nunca nos entregaremos aos Tupinambás, elles são traidores. Eis aqui os nossos principaes, que morreram victimas d’essas boccas de fogo de gente, que nunca vimos: si fôr necessario morreremos todos, voluntariamente, como fizeram nossos grandes guerreiros. Nossa nação é grande, e ahi fica para vingar nossa morte.

Um dos seos principaes veio n’uma canoa collocar-se á frente do nosso exercito, trazendo n’uma das mãos um feixe de flexas, e na outra o arco, disse: «Vinde, vinde ao combate, nada tememos, somos valentes, e eu só por mim atravessarei a muitos.»

Chegando-se porem muito perto dos nossos soldados, um d’elles acertou-lhe com uma balla na testa, que o atirou n’agoa ja morto.

Eram tão dextros no manejo das flexas, que atirando-as ao ar vinham cahir na galeota, onde estavam nossos soldados, e nas canoas dos indios, ferindo muitos.

Por isto avaliareis a coragem d’estes selvagens, maus somente pela naturesa.

O que seriam si fossem policiados, ou conduzidos e instruidos pela disciplina militar?

 

Notas Criticas e Historicas sobre a viagem do padre Ivo de Evreux por Mr. Ferdinand Diniz[editar]

16

A curiosa narração do indio confirma a opinião de Humboldt, e bem pode ser que antigamente se encontrassem algumas mulheres cansadas do jugo dos homens, e por isso entregues á vida guerreira.

Combina igualmente com as tradicções colhidas por Condamine e sessenta annos antes do Padre Ivo o franciscano. André Thevet não esteve longe de vêr n’estes selvagens americanos descendentes directos do exercito feminino commandado por Pentisilée.

Humbold disse com rasão, que o mytho das Amasonas era de todos os seculos e de todos os periodos da civilisação.

17

Esta nação não é indicada no Diccionario topographico, historico, descriptivo da Comarca do Alto Amasonas. Recife. 1852 — 1 vol. em 12.

Tambem não a encontramos na longa nomenclatura da Corographia Paraense de Ignacio Accioli de Cerqueira e Silva. Deve estar extincta, e Martius tambem não a cita no seo Glossaria, publicado ultimamente.

18

Por este nome, aqui tão frequente, designa-se uma grande aldeia alem de Tapuitapéra.

Era tambem o nome de um vasto territorio e de um rio.

Segundo o padre Claudio — Cumã significa proprio para pesca, porem duvidamos que seja exacta a explicação.

Debalde procura-se esta palavra no Glossaria de Martius publicado em 1863.

19

Cazal, o Diccionario do Alto Amasonas, e Accioli nada dizem a respeito d’estes rios, onde comtudo esteve um exercito de 2,000 homens! Martius trata de uma nação de Pacajaz ou Pacayá, no Pará. (Vide Glossaria linguarum. pag. 519.)

20

Esta ligeira descripção das casas aereas construidas sobre mangues e troncos das palmeiras muritis lembra um facto bem curioso, classificado outr’ora como fabula, e descripto na Relação de Walther Ralegh.

É bem possivel que haja alguma exageração, porem o facto é authentico, e deo-se na foz do Orenoco.

Os Waraons visitados ha perto de um seculo pelo Dr. Leblond, os Guaraunos descriptos pelo sabio Codazzi, são um e o mesmo povo, salvos de inteira destruição por sua maneira de viver.

Os Camarapins, cujo desaparecimento acabamos de provar, foram menos felises.

Á respeito dos indios das Iouras consulte-se o resumo, que outr’ora fizemos, dos manuscriptos, por onde o Medico francez provou sua moradia entre os Waraons. (Vide Guyana, 1828, em 18.)

Codazzi, cujos bellos trabalhos geographicos são conhecidos, citava em 1841, os Guaraunos, como não tendo ainda abandonado suas casas aereas.

Ha trinta annos, quando muito, vinham elles negociar com os habitantes da Trindade. (Vide o Resumen de la Geographia de Venezuela. Pariz. 1841 — em 8.)

Agostinho Codazzi morreo ultimamente.

Quanto aos manuscriptos de Leblond, que ja tivemos á nossa disposição, pertenciam á collecção das viagens, possuida em 1824 pelo edictor Nepveu.