Vida do Padre José de Anchieta/I/IV

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O Padre José entra na Companhia[editar]

Nasceu o Padre José de Anchieta, na Ilha de Tenerife, uma das que chamam Canárias, no ano de mil quinhentos e trinta e três; seu pai era biscainho, e a mãe dos naturais da terra, pessoas tementes a Deus, de família nobre e principal naquela ilha, onde aprendeu a ler e escrever e os princípios de latim.

Foi mandado aos estudos de Coimbra com um seu irmão mais velho, aonde em breve tempo, dando mostras de sua rara habilidade e felicíssima memória, veio a ser dos melhores estudantes da primeira classe, em prosa e em verso, em que era muito fácil; ouviu dialética e parte de filosofia.

Neste tempo, juntamente com as letras, começou também a mostrar sua inclinação à virtude, branda condição e modéstia, edificando com seu exemplo a todos os com que tratava. E Deus Nosso Senhor começou por sua parte, a plantar em sua alma as vvirtudes, das quais, crescendo depois com a divina graça, haviam os fiéis e gentios de recolher muito fruto espiritual, como a experiência mostrou.

A primeira destas plantas foi um eficaz desejo da pureza d’alma e corpo, com aborrecimento de todos os vícios, e em particular dos torpes e desonestos. Em sinal do qual desejo, estando um dia na Sé de Coimbra, de joelhos diante de um altar, em que estava uma imagem de vulto de Nossa Senhora, fez voto de perpétua virgindade, em que Deus Nosso Senhor o conservou por toda vida.

Outro desejo teve também muito grande, de assegurar mais o partido de sua salvação; para este fim se determinou entrar em alguma religião. Pediu a Companhia, e por suas boas partes, foi nela recebido sendo de dezessete anos de idade. Nos primeiros anos que esteve em Portugal que foram três, foi sempre um vivo exemplo de virtude, especialmente de devoção, humildade e obediência.

Vem ao Brasil[editar]

Sua vinda a estas partes se azou desta maneira. Sucedeu cair em uma grave enfermidade, em que foi curado com a caridade e diligência que a Companhia em toda parte costuma; mas o doente não alcançava perfeita saúde, pelo que andava mui desconsolado, cuidando que não tinha forças para continuar com os ministérios da Companhia, mas acudiu Nosso Senhor desta maneira:

Encontrou-o o padre mestre Simão, e chamando-o, disse:

— “Vinde cá, José; como estais?”

— “Mal estou”, respondeu ele.

Acudiu o padre:

— “Não tomeis pena por essa má disposição, que assim vos quer Deus”. Com esta palavra se aquietou e consolou muito.

Depois, por conselho dos médicos, pareceu ao superior mandá-lo a esta terra de que havia fama ser mais sadia por causa dos mantimentos leves e dos ares mais benignos. E na verdade assim é, porque os mantimentos ainda que não põem tantas forças, não são de tanta resistência ao calor natural, como os de Europa; e os ares são mais temperados, em frio e quentura, que os de outras regiões, sem embargo de estar esta dentro da zona tórrida, e passar o sol duas vezes no ano por cima das cabeças dos moradores, uma quando vai para o sul, e outra quando dá a volta; o que nesta Bahia de Todos os Santos acontece, aos vinte e oito de outubro, a ida do sol para baixo, e aos quatorze de fevereiro a tornada. Porém acudiu a Divina Providência com chuvas e virações que temperam estas calmas. Por esta ocasião, embarcado o Irmão José para estas partes, entrando no mar, sentiu logo em sua disposição mais alento e melhoria, como natural de ilha. No navio aceitou a ocupação, que dizia mais com o desejo de humuildade, e teve a cargo a dispensa, cozinha e fogão, servindo aos Nossos com muita caridade.

E desta maneira transplantou Deus Nosso Senhor esta frutosa planta das Canárias ao Brasil, sendo de vinte anos. E daí a pouco tempo foi enviado deste Colégio para a casa de São Vicente, aonde estava o Padre Manuel da Nóbrega.