Saltar para o conteúdo

Vida do Padre José de Anchieta/I/XI

Wikisource, a biblioteca livre

No mês de fevereiro de mil quinhentos e sessenta e quatro, chegou da Bahia ao Rio de Janeiro uma armada: parte que tinha vindo de Portugal e parte dos navios da costa que o Governador, por ordem de El-Rei, mandava a povoar o Rio de Janeiro. Era capitão-mor seu sobrinho Estácio de Sá, a quem ele, pelo grande conceito que tinha do Padre Manuel da Nóbrega acerca de sua virtude, prudência e zelo do bem comum e serviço del El-Rei, encomendou muito se ajudasse de seu conselho, como sempre fez. Não havia ali em que pôr olhos, nem no mar nem na terra, senão em tamoios de guerra na terra, e no mar canoas armadas. E vendo o capitão-mor que lhe faltavam mantimentos, canoas e socorro de índios cristãos, e de outros amigos, o que tudo era muito importante para a conquista, se foi o capitão-mor com toda a armada a São Vicente, a refazer e prover de todo o necessário.

E chegou até à Vila de São Paulo, no campo, onde fez pazes com outro gentio que molestava aquela vila; em tudo o acompanhou o Padre Manuel da Nóbrega, que persuadia a gente e animava a que tornassem com o capitão a conquistar e povoar o Rio de Janeiro, acudindo a uns com esmolas, e outros persuadindo e animando com boas razões. Partiu esta frota da barra da Bertioga, no ano seguinte de mil quinhentos e sessenta e cinco, a vinte de janeiro, dia de São Sebastião, que logo ali tomaram por capitão da empresa, e padroeiro da cidade, e orago da Sé, que depois se edificou.

Iam seis navios grandes e nove canoas de guerra, com muitos índios cristãos e gentios amigos, e outros naturais filhos de portugueses, todos esforçados e exercitados naquele modo de pelejar, em canoas, além da principal gente portuguesa dos navios. Mandou com eles o padre Manuel da Nóbrega ao Padre Gonçalo de Oliveira e ao Irmão José, sem cujo conselho ordenou que não fizesse o padre nada; ambos sabiam a língua da terra para confessar, consolar e animar a todas as canoas; tomavam cada dia terra com que o padre tinha lugar de dizer missa de ordinário, e confessar aos que tinham disso devoção. Desta maneira chagaram às ilhas que estão perto da barra do Rio, no princípio de março, por virem esperando pela nau capitânea. Neste lugar começou Deus Nosso Senhor a mostrar que era servido, se povoasse esta terra, e depois o confirmou com favores extraordinários, que no sucesso da guerra aconteceram.

Profecia

[editar]

O caso foi que vinham nesta frota de socorro muitos índios da Capitania do Espírito Santo, que dista oitenta léguas do Rio para a Bahia, e, por falta de mantimentos, determinavam de se ir secretamente em suas canoas para suas casas o dia seguinte, porque a nau não chegava, nem uns barcos, que por ordem do capitão-mor tinham ido a buscar provimento, à mesma Capitania do Espírito Santo.

Nisto quis Deus que o padre e o irmão sem saberem o que determinavam, os foram buscar e visitar, a quem eles descobriram seu desígnio, mas o irmão José os consolou, dizendo que confiassem em Deus, que ao seguinte dia lhes mandaria remédio. Estando nestas práticas, eis senão quando aparecem três barcos do Espírito Santo, com provisão do necessário. E ao dia seguinte pela manhã aparece a anu capitânia, com que os índios ficaram espantados, e deram muitas graças a Deus, e se determinaram ajudar naquela empresa aos portugueses.

E desta maneira, toda a frota entrou no Rio em uma maré, e se recolheram pela banda da mão esquerda da barra, em uma enseada detrás de um penedo altíssimo, a que chamam o Pão de Açúcar, onde se diz agora a cidade velha.

Durou esta conquista alguns anos, com guerra contínua, muita fome e outros apertos. Viviam os homens como religiosos, confessando-se e comungando amiúde, pelejavam com grande ânimo, com a confiança em Deus, à sombra do seu capitão, que de esforço e virtude era a todos um vivo exemplo.

E assim lhe metia Deus nas mãos insignes vitórias. Porque com serem os nossos muito poucos, assim portugueses como índios, umas vezes com alguma perda, e outras sem nenhuma, ordinariamente levavam a melhor dos tamoios, ainda que soberbos e confiados nas vitórias passadas e em sua multidão, e nos arcabuzes dos franceses que os acompanhavam.

Dão os pelouros nos peitos, e caem aos pés dos soldados

[editar]

Dos nossos saravam muitos de flechadas mortais com pouca cura, e a outros dava o pelouro no peito nu, e como se fora de prova, lhe caía aos pés, como aconteceu a luís de Almeida, e a um índio de São Vicente, que pelejava nu, da sua canoa, conforme a seu costume, por nome Marcos, e a outros.

Milagre

[editar]

Algumas vezes deram os inimigos assalto na cidade que não era mais que uma cerca de pau a pique e casas de palha. Em uma delas, ajuntando-se muitos inimigos, estava o padre junto do altar de joelhos em oração, e as flechas que vinham de mais alto, passando o telhado de palha, se pregavam no chão ao redor dele, sem lhe tocarem. Os soldados defendiam a cerca, e de quando em quando alguns chegavam à Igreja, e vendo o padre naquela postura, cercado de flechas cobravam ânimo e tornavam ao combate, com mais esforço, até que de todo fizeram fugir os inimigos.

Vitória naval de cinco canoas contra cento e oitenta, sendo capitão Estácio de Sá

[editar]

De muitas maravilhas, que nosso Senhor obrou em favor dos nossos, uma só contarei e muito insigne. Enfadados os Tamoios de se verem levar sempre a pior, ajuntaram por espaço de tempo uma grande frota de canoas de guerra, que chegaram a cento e oitenta, para concluírem com a guerra de uma vez. E para fazerem a coisa mais a seu salvo, não quiseram acometer a cidade, mas tomar os nossos no meio de uma cilada, escondendo as canoas em uma enseada, uma légua de nossa povoação.

Mas para mais se ver que Deus tinha tomado esta empresa à sua conta, permitiu que alguns naturais da terra, moradores na Capitania de São Vicente, receiando o combate se fossem com suas canoas, deixando o capitão-mor somente com cinco canoas; mas nem por isso os mais perderam o ânimo e confiança em Deus.

Nisto saem da cilada umas poucas de canoas, o nosso capitão dá-lhes caça com as cinco; dão volta os inimigos, como que fugiam, e metem os nossos dentro da cilada sem nenhum remédio humano; e o pior foi que pondo os nossos fogo a tiro que a canoa capitania levava, toma fogo a pólvora da canoa, e dá com alguns soldados no mar, meio queimados; mas logo se recolhem a ela.

Acode aqui por seus soldados a Divina Misericórdia, mete espanto à mulher do capitão tamoio, e começa a bradar: “grande fogo vem sobre nós, para nos queimar a todos”. A esta voz mete Deus grande terror e medo nos contrários que dão em fugida à voga arrancada, a quem mais podia remar, e aparece a multidão das que estavam na enseada, fugindo também com as mais.

Os nossos os seguem um pedaço, mas logo se recolhem à cidade, dando muitas graças a Deus Nosso Senhor, autor de vitória tão maravilhosa, e não esperada, em lugar da morte que tão certa tinham.

Apareceu o mártir S. Sebastião aos inimigos

[editar]

Acudiu a esta vitória também o favor do glorioso mártir São Sebastião, que foi visto dos tamoios, que depois perguntavam quem era um soldado que andava armado, muito gentil homem, saltando de canoa em canoa, que os espantara e fizera fugir. Com este bom sucesso amainou a fúria dos tamaios, até que depois, com o socorro que foi da Bahia, se começaram a sujeitar e pedir pazes.

O Pe. Inácio Azevedo, primeiro visitador

[editar]

No ano de mil quinhentos e sessenta e sete, véspera de São Sebastião, chegou da Bahia com outra armada, o Governador Mem de Sá, a povoar o Rio de Janeiro, como por S. Alteza lhe era mandado.

Foram em sua companhia o Bispo Dom Pero Leitão, que ia visitar seu bispado, e o padre Inácio de Azevedo, quando a primeira vez veio, por visitador, enviado pelo nosso Reverendo Padre Geral Francisco de Borja, que chegou à Bahia aos vinte e quatro de agosto, de mil quinhentos e sessenta e seis anos.

Colégio do Rio de Janeiro

[editar]

Destruiu o governador duas aldeias de tamoios, muito fortes, que tinham consigo franceses. Tomou o sítio para a nova cidade, e aquietado tudo, e lançados os contrários do Rio e sua comarca, se tornou para a Bahia, deixando por capitão e governador do Rio de Janeiro a Salvador Correia de Sá, seu sobrinho, por ser falecido o capitão-mor Estácio de Sá. O qual defendeu valorosamente a Capitania, assim dos corsários como dos gentios, que por vezes a vieram molestar.

Também o Padre visitador Inácio de Azevedo tomou sítio para o nosso Colégio, que pela piedade e liberalidade de El Rei Dom Sebastião, se fundou, com dote e renda para cinqüenta religiosos. E ordenou o padre fossem anexas ao Colégio, e sujeitas ao reitor dele, as nossas casas que estão situadas nas Vilas de São Vicente e São Paulo e a casa da Capitania do Espírito Santo.

Neste Colégio se lê uma lição de Latim, e outra de ler e escrever, e a terceira de casos de consciência, quando há ouvintes.