Vida do Padre José de Anchieta/II/II

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Segue-se que tratemos da mortificação das paixões, e aspereza do tratamento da própria pessoa, a qual é tão fiel companheira da oração e devoção, que sem ela tiveram os santos a oração por suspeitosa, porque no lenho verde, com os apetites vivos, mal se pode atear o espírito da devoção e amor de Deus.

Foi o Padre José muito mortificado em suas paixões, e de tal maneira as trazia enfreadas e sujeitas ao espírito, que as não deixava dar mostras de si, por muitas ocasiões que para isso houvesse; atormentava seu corpo com jejuns, e ordinárias disciplinas, dormia vestido para estar mais prestes para a oração da noite; quando em casa havia algum enfermo, depois de vigiar com ele o tempo necessário, tomava o sono sobre uma tábua, servindo-lhe de cabeçal os sapatos, metidos um no outro; a mim me contaram por coisa mui certa que, na casa de São Vicente, em um canto de um corredor, tinha um feixe de silvas em que descansava depois de orar de joelhos ou de passear.

Caminhava a pé e descalço[editar]

Nunca andava a cavalo, por ser quebrado das costas, mas sempre caminhava a pé, e tanto que saía do povoado, metendo os sapatos debaixo do braço, continuava seu caminho descalço com o bordão na mão, e até os índios se espantavam de seu caminhar, que parece que voava por praias, serras e vales; e pela muita continuação trazia os pés gretados.

Passava pelos companheiros sem o verem[editar]

Muitas vezes lhe acontecia deixar-se ficar atrás, mui longe da gente com quem caminhava, para mais livremente vir falando com Deus, rezando e pondo-se de joelhos amiúde, como costumava. E os companheiros olhando para trás o não viam, e buscando-o com os olhos o viam, e buscando-o com os olhos viam diante de si, sem darem fé quando passara por eles. E isto era no padre tão ordinário que, dando graças a Deus, deixavam já de se espantar.

Lendo eu este parágrafo ao Padre Pero da Costa, mui antigo mestre dos índios, em confirmação do dito me referiu o caso seguinte: Sendo o Padre José provincial, foi o Bispo Dom Antônio Barreiros a crismar os índios desta Bahia, acompanhado do padre Reitor Gregório Serrão, e de outros padres, todos a cavalo; só o Padre José ia de trás a pé, muito longe.

Tendo o Bispo feito seu ofício na aldeia de Santo Antônio, daí a alguns dias se partiram para a de São João. Só o Padre José, que ia a pé, se deixou ficar, dizendo que fossem embora, que ele logo ia. Foram todo o caminho, que eram seis léguas, os padres com o Bispo sem nunca mais o verem. O Padre Pero da Costa, que tinha cuidado da aldeia, saiu a receber o Bispo com procissão e cruz levantada, e o Padre José ao mesmo tempo se achou na procissão, descalço como tinha vindo, de que o Bispo se espantou muito, mas aos padres não foi coisa nova.

Isento de parentes[editar]

À mortificação também pertence ser um religioso, isento e desapegado com parentes, e pouco solícito por eles. Nenhuma comunicação, tinha o padre com os seus, que eram ainda vivos na Ilha de Tenerife, uma das Canárias. E dando-lhe uma carta de uma irmã sua, leu o sobrescrito e antes de abrir disse a quem lh’a dera o que nela se continha, e com muita alegria disse que sua irmã estava conforme com a vontade divina, em uma enfermidade que padecia.

Pobreza voluntária[editar]

Muito se prezou sempre da santa pobreza, nem tinha mais de seu uso. Que o que trazia sobre si, e era o pior que havia de vestido e calçado; mas aos súditos procurava que andassem religiosamente bem acomodados. Não usava de arca ou canastra, nem de escritório, nem tinha cartapácios que guardar, as obras que compunha dava a outrem, e as coisas de maior importância aos superiores.

E como já todos sabiam o seu espírito de pobreza, ninguém lhe dava nada, das coisas que os religiosos costumavam entre si dar e receber para exercitar a caridade, porém quando algum lhe oferecia alguma coisa, ele a tomava na mão com mostras de agradecimento e por arte lh’a tornava a deixar, ou lhe dava licença que a desse a outrem, de modo que nem o tal ficasse descontente, nem ele com o sentido ocupado do que faria dela.

Da perpétua pureza com que Deus o conservou, alguma coisa se disse no livro primeiro, capítulos sétimo e oitavo, quando esteve só entre os gentios, amparado com o favor da gloriosa Virgem Mãe de Deus, ajudando-se da oração e penitência corporal; neste passo bastará acrescentar o que um padre nosso certificou em seu testemunho, que ainda sendo ele vivo, algumas pessoas que podiam haver algumas relíquias do seu vestido, confessavam serem muito ajudadas de Deus contra os maus pensamentos.

Rara obediência[editar]

Na obediência era a todos um vivo exemplo, assim nas coisas ordinárias, como nas árduas e dificultosas, de que uma só apontarei. Estando muito mal em uma aldeia do Espírito Santo, o padre Superior da casa lhe mandou dizer que seria bom vir-se para a vila; perguntou o Padre José aos padres que ali estavam, se lhes parecia que teria ele forças para que, sem notável perigo, pudesse cometer a viagem, para o tornar a propor por carta ao padre Superior.

Disseram todos que não estava para isso; recolhe-se então o padre na cama como que queria repousar; daí a pouco disse que estava resoluto em ir para a vila, e que se morresse no caminho pouco se perdia. “Não quero, diz ele, agora no fim da vida, deixar aos mancebos exemplos de pouca obediência”. E assim o fez. E foi o Senhor servido dar-lhe saúde e mais um ano de vida.

Sentença é de São Boaventura, De processu religioso, cap. 28, que quanto um religioso mais aproveita na virtude da obediência, tanto Deus mais depressa ouve suas orações, e tanto as criaturas lhe são sujeitas e obedientes; por estes dois sinais, podemos julgar que foi mui alta a obediência do Padre José, pois Nosso Senhor ouvia suas orações, para o bem espiritual e temporal dos próximos; os homens obedeciam a seus conselhos, e até as próprias aves e brutos animais cumpriam o que lhes mandava, falando com eles em a língua brasílica, do que ao diante se verão alguns exemplos, livro quarto, capítulos sétimo e oitavo.