Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá (1919)/IX

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IX

O Padrinho

 

Uma tarde no Café Papagaio, vendo passar pela Rua Gonçalves Dias afóra, de baixo para cima, de um lado para outro, grandes mulheres estrangeiras, cheias de joias com espaventosos chapéos de altas plumas, ao geito de velas infunadas ao vento, impellindo grandes cascos; vendo-as passar a pé, de carro, abarrotadas de pedrarias, e ouro, e sedas roçagantes, centralisando os olhares do juiz, do deputado, do grave pae de familia, das senhoras honestas e das meninas irreprehensiveis, eu me lembrei de uma phrase de Gonzaga de Sá: a dama facil é o eixo da vida. Recordei que aquellas mulheres todas tinham vindo vasias, com alguns vestidos de segunda mão e muitas malas ôcas, mas chegavam com a sua alvura polar, com as faces rubras, com seus estranhos olhos azuis e o prestígio das velhas raças de que se originavam. Saíam de Bordeaux ou do Havre, come un vol de gerfants; chegavam com a estranha fisionomia dos mármores que os séculos consagraram; e seus cabelos dourados faziam estremecer os ares, as casas, as almas da cidade. As próprias pedras do cais sentiam-nas, tornavam-se macias a seus pés, e a mica do granito procurava ter faiscações de diamantes. E daí iam transtornando tudo pelas ruas em fora. O vetusto palácio vice-real apurava-se, queria ser airoso, e, todo gamenho, se punha e remexer escaninhos em esquecidos aposentos ocultos para descobrir riquezas. O bronze da estátua, ao sol, tinha uns longes de ouro; e as mulheres paravam a ver o fascinante brilho. Na rua 1º de Março, as montras dos cambistas, ao perfume estrangeiro das recém-vindas, quase se desventuram e se abrem prodigamente a lhes dar moedas e notas, muitas e muitas. Elas seguem. É a Rua do Ouvidor. Então é a vertigem; todas as almas e corpos são arrebatados e sacudidos pelo vórtice. Há uma energia poderosíssima nelas todas e nas coisas de que se vestem; há atração, fascinação para esquecimento de nós mesmos e apagamento da nossa personalidade na luminosidade dos seus olhos. É mágico e sobrenatural. Esvaziam-se os pecúlios pacientemente acumulados; vão-se as heranças que tantas dores resumem, e os cofres das repartições e dos bancos sangram... As inteligências trabalham, as imaginações associam elementos para estelionatos, peculatos e concussões... E tudo acaba nelas; é para elas que se encaminham as riquezas ancestrais, em terras longínquas, em gado nédio e plantações virentes. São para elas que se drenam os ordenados, os subsídios; é a elas também que vão ter o fruto dos roubos e os ganhos das tavolagens. É uma população, um país inteiro que converge para aqueles seres de corpos lassos. E elas continuavam a passar muito grandes, bojudas, como cascos antigos rebocados pelos grandes chapéus de altas plumas, ao jeito de velas enfunadas ao vento. Passavam às duas, às quatro, como frotas, aquelas frotas de outros tempos esquadras de naus, de caravelas de galeões que vinham às Américas buscar a prata de Potosi e o ouro do coração do Brasil. E a civilização se faz por meios tão vários e obscuros que me pareceu que elas, como os veneráveis galeões que evocavam, traziam às praias do Brasil as grandes conquistas da atividade europeia, o resultado do difícil e lento evolver dos milênios. Lembrei-me então duma frase de Gonzaga de Sá. Disse-me ele uma vez no Colombo:

— Estás vendo estas mulheres?

— Estou, respondi.

— Estão se dando ao trabalho de nos polir.

De fato, elas nos traziam as modas, os últimos tiques do Boulevard, o andar dernier cri, o pendeloque da moda — coisas fúteis, com certeza, mas que a ninguém é dado calcular as reações que podem operar na inteligência nacional. A sua missão era afinar a nossa sociedade, tirar as asperezas que tinham ficado da gente dada à chatinagem e à veniaga dos escravos soturnos que nos formaram; era trazer aos intelectuais as emoções dos traços corretos apesar de tudo, das fisionomias regulares e clássicas daquela Grécia de receita com que eles sonham. Quantas delas não inspirariam belos versos e quantas não viviam nos períodos arredondados deles! Não era só. Os maridos que as frequentassem levariam aos lares, ao conselho daquelas estrangeiras, o sainete mais moderno, o bibelô última moda, e o móvel, e o tecido, e o chapéu, e a renda. Assim, ateariam o comércio e estimulariam o contato entre a nossa terra e os grande centros do mundo, requintando o gosto e o luxo. Voltariam com o ouro as que escapassem aos flibusteiros; mas espalhariam o Brasil sob o aspecto malévolo, é de crer, — mas espalhariam... E a civilização se faz por tantos modos diferentes, vários e obscuros, que me parecem ver naquelas francesas, húngaras, espanholas, italianas, polacas bojudas, muito grandes, com espaventosos chapéus, ao jeito de velas enfunadas ao vento, continuadoras de algum modo da missão dos conquistadores.

A alguns dos nossos amigos, de costume, encontrava naquele café. Como fossem chegando, lentamente afastei-me desses pensamentos para atender aos assuntos que lhes era agradável e que lhes ocorria falar. Ao café, vínhamos conversar. As palestras variavam e eram instáveis. Ocasiões havia em que, começando pelo comentário do último rolo do Cassino, acabávamos examinando as vantagens de uma grande reforma social. Todos nós éramos reformadores. Pretendíamos reformar a moral e a literatura, com escalas pelo vestuário feminino e as botinas de abotoar. Nesse dia, na primeira mesa perto à porta de entrada, aos poucos, reunimo-nos quatro: o Amorim, o Domingos, o Rangel e eu. Quase completo o Esplendor do Amanuenses, pois assim denominávamos as nossas reuniões, em vista da profissão da maioria dos convivas — amanuenses que tinham as suas grandes horas de satisfação e jucundo prazer ali, em torno daquela mesa e com uma orgia regada a café, entre o enfado da Repartição e as agruras de lares difíceis. O Rangel, aquarelista do futuro, mas na atualidade genial pintor para o gasto das etiquetas das casas comerciais, chegara por último. Continuava na Tragédia, uma peça de teatro japonês de sua invenção, interminável, com uma centena de atos, que ia sempre acabar na rua da Carioca, no Zé dos Bifes, um luculesco hoteleiro, meigo e bom, que dava jantares por 600 réis, árduos de procurar e obter. O Pedreira passou com o seu conhecido fraque de abas esvoaçantes e um longo pescoço de galináceo, misto de tesoura ao sabor do vento e de galo que come o milho aos grãos. Rangel quis ir-se, mal chegou, mas, instado, ficou ouvindo as nossas palestras superempíreas.

— Lá vai o Lord Max...

— Vocês sabem donde lhe vem a mania de inglês? fez Amorim.

— Não, disse alguém.

— Ele traduzia para os seus alunos, em Cruz Alta, o “Graduated”, com uma lista de significados nos punhos.

— Não sei, observou o Rangel: impa!

— Um super-homem! considerou o invejoso Domingos.

— Que diabo chamam vocês super-homem? pergunta o Rangel.

— Um cidadão que fica além do Bem e do Mal — é simples.

Rangel ficou satisfeito com a explicação e ficou a ouvir o Domingos, que falava, movimentando a avelhantada fisionomia de romano antigo, fisionomia desgostosa de Sêneca que não tivesse sido preceptor de príncipe. Dizia ele:

— Em meu parecer, nesse negócio de amor o que vale são os preliminares, os estados d’alma preambulares, a agonia da esperança de obter ou não o objeto amado. Mas, quando, se o toca...

— Fura-se a bolha de sabão, concluiu o Amorim.

Não pudemos ir além no desenvolvimento desse velhíssimo tema que, não sabemos como, havia ocorrido na nossa conversa. Inesperadamente, o meu querido amigo Gonzaga de Sá entrava no café. A chegada do velho funcionário à nossa ruidosa roda causou-me surpresa. Não tinha aquele ódio fingido pelos cafés, que é de habito encontrar-se em todo o sabichão estéril e infalível. Por certa conversa que tive com ele, conclui que Gonzaga de Sá os achava indispensáveis à revelação dos obscuros, à troca de ideias, ao entrelaçamento das inteligências, enfim, formadores de uma sociedade para os que não têm uma à sua altura, já pela origem, já pelas condições de fortuna, ou para os que não se sentem bem em nenhuma. A sua velhice tolerante refletida compreendia que eu lá fosse, mas a sua misantropia de velho não lhe permitia tomar parte direta no seu ruído. Gonzaga de Sá trajava rigorosamente de preto, conforme seu hábito, mas, em vez de paletot-sacco, trazia a grave sobrecasaca. Era a primeira vez que eu o via com esse traje, tão querido dos doutores e comendadores; e o meu despretensioso amigo aparecia-me, assim, com a respeitabilidade precoce de um jovem ministro. Os seus grandes olhos, macios e lentos, nas órbitas de uma curvatura regular e suave, estavam vermelhos. O resto da fisionomia era calma e os seus gestos não apresentavam modificação sensível. Ao aparecer o venerável velho, os meus amigos calaram-se e, a todos, a sua austera figura impressionou. Levantei-me e falei-lhe à parte. Ele me disse:

— O compadre acaba de morrer... Vim tratar do enterro... Preciso de ti para lhe carregar o caixão. Vem, Machado... Vem, Machado; espero esse serviço da tua piedade...

Fui, como me impunha a amizade e a admiração que eu tinha por aquele velho. E ambos, par a par, fomos andando pela rua em fora. O meu amigo, calado, de quando em quando sustinha um grande ofego... Eu já via o cadáver, na nudez estúpida de coisa e, apesar dela, com uma interrogação a que ninguém até hoje respondeu com segurança — o que vamos ser depois disto?

Vi-o sair de casa, no caixão, as grinaldas, o coche, os soluços sinceros, os pêsames, as condolências dos profissionais de cerimônias fúnebres; depois, a cova e o trabalho misterioso da decomposição. E pareceu-me que a sua voz; que as doces coisas que ela exprimira e mesmo as más; que as noções, as ideias, os sentimentos que aquela inteligência adquirira em vida, se tinham agrupado em uma existência imperceptível para fugir daquela massa a desfazer-se... E as mulheres passavam, moças ou velhas, feias ou bonitas, de todas as cores, roçavam-me, e nunca em seus olhos, nunca em suas faces eu vi tanto brilho, nunca as vi com aquele estranhos fulgor, com aquela fascinação, com aquela força de absorção... A luz tinha mais doçura, as fachadas mais beleza, o calçamento não era áspero... E eu ia ver um morto!

Tomamos o bonde no Largo de S. Francisco. O veículo ia cheio. Viajei comprimido, com volúpia, sofrendo aquele contato humano; dando-me bem ao absorver a maior porção de calor vital do meu semelhante próximo. Não estava só no mundo e toda aquela gente tinha que morrer, como eu..

O trem, também cheio. Na fila ao lado, em vis à vis, sentaram-se quatro sujeitos. Havia entre eles um gordo senhor com uma calva de sábio e uma barriga comercial e financeira. Era o mais tagarela. Não se cansava de falar, de criticar, de maldizer a polícia, o governo, os gastos deste, a vadiação dos deputados, dos funcionários públicos e a desonestidade dos juízes. Quando o trem se pôs em movimento, ele, dirigindo-se ao companheiro de defronte, pediu:

— Dá-me a tua A Notícia.

O outro respondeu, certo de que fazia espírito:

— Queres dar-me 200 réis por ela?

O vizinho ao lado do sábio — comendador, por aí —, tirou o mesmo jornal do bolso e passou-lh’o.

— Obrigado, agradeceu o de barriga de comendador e calva de sábio. Não preciso mais da tua, continuou ele para o tal dos 200 réis. De outra vez, quando viajar contigo, hei de ter a precaução de trazer sempre dinheiro trocado. Não me fio em gazeteiros...

E, sem que ninguém esperasse, sem que houvesse o mínimo motivo, todos os quatro romperam numa gostosa gargalhada.

Gente fácil de rir-se, pensei eu. Enfim, o riso brota de acordo com a inteligência de cada um. O “subérbio” já estava em movimento. Deixei de observar os quatro curiosos personagens, virei o rosto e, pela portinhola, pus-me a ver a paisagem, os morros altos e azulados, o verde-claro das campinas, o verde-escuro das encostas, as fagulhas de luz, as hastilhas de alegria no ar, as palmeiras melancólicas... Um dia viria que tudo isso havia de fugir dos meus olhos... Por que não sou assim como aquele barrigudo senhor, inconscientemente animalesco, que não pensa nos fins, nas restrições e nas limitações? Longe de me confortar a educação que recebi, só me exacerba, só fabrica desejos que me fazem desgraçado, dando-me ódios e, talvez, despeitos! Porque m’a deram? Para eu ficar na vida sem amor, sem parentes e, porventura, sem amigos? Ah! se eu pudesse apagá-la do cérebro! Varreria uma por uma as noções, as teorias, as sentenças, as leis que me fizeram absorver; e ficaria sem a tentação danada da analogia, sem o veneno da análise. Então, encher-me-ia de respeito por tudo e por todos, só sabendo que devia viver de qualquer modo... Mas... era impossível, impossível! Era tarde, e os culpados do que eu sofria não eram a minha educação nem a minha instrução. Era eu mesmo; era o meu gênio; era o meu orgulho aliado a um estúpido medo. Arrependi-me da maldição e reconciliei-me comigo mesmo. Havia de curar-me. Gonzaga de Sá não me falava, mas eu sentia que a metade daqueles pensamentos eram dele. A nossa amizade era tão perfeita que dispensava palavras. Entre nós havia aquele aperfeiçoamento de comunicação que Wells tanto encomia nos marcianos: mal emitia um pensamento um dos nossos cérebros, ia ele logo ao outro, sem intermediário algum, por via telepática. Depois da estação do Rocha, quando aquela obtusa vizinhança desembarcou, e se veio sentar no banco ao lado um jovem par de namorados, os vizinhos em frente se puseram a conversar. A principio, não ouvi bem o que diziam; mas, por fim, entendi que discutiam a grande tese das raças. Dizia um com um grande anel simbólico no indicador:

— Tem a capacidade mental, intelectual limitada; a ciência já mostrou isso.

E o outro, mais moço, ouvia religiosamente tão transcendente senhor. As ferragens do comboio faziam ruído de ensurdecer; nada mais escutei. Chegamos ao Engenho Novo. O trem parou. O mais moço então perguntou, olhando os fios de transmissão elétrica:

— Porque será que os passarinhos tocam nos fios e não são fulminados?

— É que de dia a comunicação está fechada.

E se não fossem os graves pensamentos que me assoberbavam naquela hora, ter-me-ia rido daquele sábio de capacidade intelectual ilimitada.

Ao lado, os namorados continuavam balbuciando. Havia um unto, uma alegria, um não sei que de meloso nos seus olhares, que irritou a minha capacidade namoradeira.

— Já namoraste? perguntou-me Gonzaga de Sá, baixinho.

— Uma vez, aos dezesseis anos...

— Deves namorar, filho. Quando te vier a velhice hás de te arrepender, se não o fizeres em tempo. Vênus é uma deusa vingativa, dizem.

— Qual! O namoro é a negação do amor... Não me arrependerei...

— Garanto-te. Será uma emoção que te ficou por provar... Experimente já, enquanto é tempo...

E o trem continuava a correr. Na estação de nosso destino, saltamos, tendo trocado com o meu companheiro durante a viagem somente aquelas escassas palavras.

Nós fomos subindo a rua devagar, por entre curiosos exemplares de uns pais de família. Graves homens de fisionomia triste, curvados ao peso da vida, sobraçando alongados embrulhos de pão, caminhavam ao nosso lado com o passo tardo e econômico, poupado de velhos bois de carro. A estrada da vida era má; areenta, aqui; encharcada, ali; e, mais além, íngreme e empedrouçada... Só a paciência dele, só aquela rija musculatura que se gastava às gotas, só ela poderia levar avante o carro da mulher e dos filhos. Com o jornal debaixo do braço, iam ruminando grandes combinações de tostões, com certeza, com o mesmo gasto de energia nervosa que um banqueiro qualquer empregaria ao delinear uma grande especulação aladroada sobre os fundos de duas ou três potências. Insensivelmente, alinhavam-se em fila e fui vendo, à esquerda e à direita, longas teorias daqueles curiosos exemplares da nossa humanidade. Na minha meninice, nos arredores do Rio, eu tinha visto espetáculo que agora a imaginação associava a este. Era por aquela hora dourada da tarde, mais cedo um pouco, mas já as montanhas se tinham adelgaçado para sofrer a carícia imaterial de um céu rarefeito. Uma longa fila de carros de bois, cheios de verduras, carvão e lenha desfilavam pela estrada. Os carreiros gritavam de quando em quando; os bois mastigavam o passo; por vezes, alongavam a língua, um inclinando-se sobre outro, a fim, talvez, de melhor dividir o esforço de tração... Oh! a solidariedade da carga!

Aos poucos venciam os óbices e chegavam ao porto, à praia risonha da ilha... Nem sabiam aqueles animais de sua força; nem suspeitavam que toda uma cidade esperava aquelas úteis ou saborosas coisas que só a sua paciência e a sua força poderiam arrastar por sobre aqueles caminhos instáveis. A estrada me veio em mente: arenosa, de solo fugidio e móvel, mas, guardando indelevelmente o trilho paralelo dos carros, com os maricás, as pitangueiras, nas bordas, salpicadas de frutas vermelhas, e, de quando em quando, também uma árvore de mais vulto, um cajueiro, uma figueira — toda ela, ao passarem os carros, envolvida na poeira que o sol, no poente, avermelhava e dava faiscações de ouro. Aqueles homens, pacientes e tardos, que eu via naquele ambiente de vila, eram o esteio, a base, a grossa pedra alicerçal da sociedade... Operários e pequenos burgueses, eram eles que formavam a trama da nossa vida social, trama imortal, depósito sagrado, fonte de onde saem e sairão os grandes exemplares da Pátria, e também os ruins para excitar e fermentar a vida do nosso agrupamento e não deixá-lo enlanguescer... Quiçá não soubessem disso, e, se o soubessem, não se consolariam do duro fardo de viver... Viviam, sob o aguilhão dos deveres e com a vaga esperança consoladora da afeição eterna dos filhos.

— É ali, disse-me Gonzaga de Sá, apontando para um amontoado de casas.

Tomamos uma rua transversal e fomos indo quase sós por ela afora. Eu ainda não tinha visto a casa, embora Gonzaga m’a tivesse apontado. O arruamento do subúrbio é delirante. Uma rua começa larga, ampla, reta; vamos lhe seguindo o alinhamento, satisfeitos, a imaginar os grandes palácios que a bordarão daqui a anos, de repente estrangula-se, bifurca-se, subdivide-se num feixe de travessas, que se vão perder em outras muitas que se multiplicam e oferecem os mais transtornados aspectos. Há o capinzal, o arremedo de pomar, alguns canteiros de horta; há a casinha acaçapada, saudosa da toca troglodita; há a velha casa senhorial de fazenda com as suas colunas heterodoxas; há as novas edificações burguesas, com ornatos de gesso, cimalha e compoteira, varanda ao lado e gradil de ferro em roda. Tudo isso se baralha, confunde-se, mistura-se, e bem não se colhe logo como a população vai-se irradiando da via férrea. As épocas se misturam; os anos não são marcados pelas coisas mais duradouras e perceptíveis. Depois de um velho pouso dos tempos das cangalhas, depois de bambaleantes casas roceiras, andam-se cem, duzentos metros, e vamos encontrar um palacete estilo Botafogo. O chalet, porém, é a expressão arquitetônica do subúrbio. Alguns proprietários, poupando a platibanda e os lambrequins, não esquecem de dar ao telhado do edifício o jeito característico e de rematar as duas extremidades da cumeeira com as flechas denunciativas. Em dias de névoa, em dias frios, se olhamos um trecho do alto, é como se estivéssemos na Suíça ou na Holanda... Afinal dei com a casa do compadre de Gonzaga de Sá. Era um chalet. De longe tinha o aspecto de burguês médio; quando cheguei, porém, vi-o separado em duas habitações, tendo ambas, na frente, uma faixa de terreno com alguns crotons tristes. Da rua avistei logo o caixão, o vulto confuso do cadáver dentro dele e o falso brilho dos círios aos pés e à cabeceira. Na porta, curiosos da vizinhança... As crianças brincavam na rua inocentemente. Entramos. Uma velha senhora de cor veio nos receber. Gonzaga de Sá me falara nela. D. Gabriela tinha um vago parentesco com a mulher de seu compadre; era viúva e mãe de quatro filhos.

— Já está tudo arranjado, amanhã, às 9 horas, o enterro sai.

— O caixão chegou agora mesmo; nós tratamos logo de pôr o corpo dentro.

— Fizeram bem, disse Gonzaga de Sá. Cadê o Frederico, seu filho?

— Saiu a buscar um pouco de pão.

— Quando vier, diga-lhe que eu quero falar-lhe.

— Sim senhor.

Fui vendo a sala, não havia muita gente; mas que variedade de tipos e de cores; encontravam-se quase todos do espectro humano... Muito concentrados, os circunstantes, se falavam, era baixinho, e, se lhes aflorava um sorriso aos lábios, logo o abafavam. Sentei-me também numa cadeira. E afinal pude olhar o cadáver, a cor faraônica do rosto, meio oculto no lenço ao queixo e pelas pétalas de flores espalhadas ao redor. Pouco conhecera aquele homem. Encontrara-o algumas vezes, no serviço, na Secretaria dos Cultos, onde era servente. Sabia-o compadre de Gonzaga e chamar-se Romualdo de Araújo. A amizade entre aqueles dois homens, tão diferentes de condição e educação, era forte e profunda. Conquanto não tivessem nunca chegado à completa intimidade, eles se amavam de um modo especial, distante, é certo, mas que permitia a duração eterna da afeição. D. Gabriela, alta, muda, com a sua misteriosa pele parda, ia e vinha, espevitava as velas, endireitava um bouquet, tudo muito calmamente, sem vacilação, sem terror, familiarizada com o ato. Seu filho chegou com o pão. Era um magnífico exemplar de mulato, de mulato robusto, ousado de olhar e figura, mas leve, vivaz, flexível, sem reçumar peso nem lentidão nos modos. Gonzaga de Sá recomendou-lhe qualquer coisa e, daí a instantes, fomos jantar. A noite veio e mais pessoas chegaram.

Eu a vi cair da sala de jantar, apreciando o crepúsculo por uma janela. Fiquei durante todo ele, a olhar nas montanhas longínquas do ocidente, a barra de nuvens douradas, e, enquanto ele durou, mantive-me calado, fumando, e toda a minha atividade cerebral girou em torno da morte. Veio a noite completa. Tinha pensado muito — é verdade; mas sem ter concluído coisa alguma. Nada me ficou palpável na inteligência; tudo era fugidio, escapava-me como se tivesse a cabeça furada. Evaporou-se tudo e eu só sabia dizer: a Morte! a Morte! Era o que restava da longa meditação... Gonzaga de Sá, de onde em onde, vinha até a sala de jantar. Pouco falava. Voltava para junto do cadáver. A sua fisionomia não revelava a mínima dor, e os seus olhos macios e lentos já tinham o brilho normal. Eu me levantei e fui até o quintal. Fora dos meus hábitos olhei o céu, muito estrelado, que tinha a beleza de todos os dias. Quando voltei para junto da janela, estava sentada uma moça. Não a tinha visto entrar.

— Quer o seu lugar? fez-me ela ao ver-me.

— A gosto, minha senhora. Há aqui muitas cadeiras.

Sentei-me imediatamente, como um velho conhecimento de anos comecei a conversar, e ela a me responder como um velho conhecimento.

— A tarde refrescou — não acha?

— É verdade, mas na sala faz ainda muito calor, disse-me ela.

— É verdade que aqui é muito quente?

A senhora deve saber, não mora aqui?

— Há poucos anos, dois, creio.

— Gosta?

Alguma coisa; mas tenho saudades da cidade. Morei muitos anos lá. É outra coisa. Que movimento! Carros, jardins para passear...

— Mas tudo isso de que vale? Vem a Morte...

— De fato, mas enquanto se vive a gente deve procurar as coisas bonitas, os teatros... O senhor já foi ao Bar?

— Nunca!

— Deve ser bonito!

— Não gosto de Botafogo. É Buenos Aires, supercivilizado..

— Eu gosto muito. Quem me dera ter uma casa lá.

— Um marido, também? Não é Dona...

— Alcmena, uma sua criada. Queria: mas lhe garanto que valia mais um carro...

— Mas se todas essas coisas vão-se acabar...

— Quando?

— Quando alguns homens generosos tiverem feito toda a humanidade trabalhar de um mesmo modo e ganhar a mesma coisa...

— São maus, esses homens!

— São bons, pelo contrário; como não podem dar tudo a todos, tiram muita coisa de alguns.

— Para quê!... Antes esses continuem a existir com as suas riquezas, porque a gente ao menos tem a esperança...

— A senhora há de tê-las, com esses seus belos olhos... ·

— Ora!... fez ela alongando o busto por sobre o espaldar da cadeira até poder ver o céu pela janela que lhe ficava às vistas.

Pousei o meu olhar nos seus olhos revirados, e segui deles até uma estrela que brilhava muito próxima das nossas cabeças. Nessa rápida postura, a moça atraía fortemente. Seus seios pareciam entumecidos, o pescoço, longo e roliço, saía todo do corpete, e as formas miúdas desenhavam-se com relevo por entre as dobras do vestido. Aquela desenvoltura tão longe da Rua do Ouvidor! Compreendia-se? Ainda lhe vi a tez macia, os cabelos castanhos, as mãos longas e bonitas, um pouco estragadas pelo trabalho doméstico... Depois, nasceramme coisas obcenas; vagos e indefinidos desejos cresceram em tumulto, de roldão; borbulhavam, subiam e desciam dentro de mim, encontravam-se, faziam-se outros a exigir satisfações, carícias, estados enervados e deliciosos...

Conversamos muito ainda, esquecidos do defunto, inebriados um do outro como se estivéssemos em um baile.

— A vida é cruel, disse-lhe em certa ocasião. Tudo acaba na Morte.

— É. Mas há nela certas passagens que talvez a Morte não apague.

— Que instantes dessa natureza teria tido o Romualdo?

— Ele lá sabia... Cada um sabe quando é feliz, e não pode dizer a ninguém, nem mesmo que queira... A coisa fica vivendo dentro de nós e só a lembrança dela nos alegra de novo... O senhor era amigo dele?

— Apenas o conheci...

— Fomos vizinhos dois anos... Habituei-me a vê-lo, a estimar-lhe o filho e sinto... Quando a gente está alegre dá vontade de dançar, de cantar — não é? Parece que dentro de nós há muita coisa demais, molas, um mecanismo que nos empurra... Quando fico triste também me vem a mesma vontade... É curioso!...

— Em outros tempos, houve danças fúnebres; e os selvagens dançam ainda por essas ocasiões.

— Eles têm razão. Não é a gente que quer; é coisa cá dentro...

D. Alcmena levantou de vagar um braço e apanhou, com os seus longos dedos abertos em leque, alguns cabelos que lhe caíam pela testa. Ainda conversamos algum tempo e eu, inebriado pelo capitoso da moça, fascinado pela sua estranheza, esqueci-me, muito inocentemente, de que era inimigo do namoro.

Alcmena levantou-se e me apertou a mão demoradamente, para sair.

Por momentos, fiquei só, mas cheio dela. O seu vulto me enchia, e as suas palavras, que não sei onde as fora buscar, dançavam-me nos ouvidos.

A impressão, em seguida, foi-se apagando, e a lembrança do cadáver me veio. Quando me pus a pensar fortemente nele, o vulto da moça, mais firmemente, voltou-me aos olhos, alto, fino, com seus olhos negros e as curvas transcendentes do seu corpo.

Depois de associar mais de uma vez estas duas imagens, tal fato me apareceu como uma profanação, um sacrilégio. Tive remorsos do que fizera. Mas fora uma mola, um mecanismo, como dizia a moça! Que culpa tinha eu?! Até as palavras doces, os galanteios me vieram, a mim, tão canhestro com as damas! Fora automático... Que culpa tinha eu?

Ademais, senti também, era o cadáver que me impelia, que me empurrava para a moça; era sua mudez de fim que me ditava o único ato da minha vida capaz de fugir à lei a que ele se curvara. Vivente, tinha vivido, pois tanto é forte em nós viver que só em nós mesmos encontramos a razão e o fim da vida, sabendo todos nós que devemos continuá-la a todo o transe, custe o que custar, em nós mesmos e nos nossos descendentes.

Tive ainda uma ponta de arrependimento, apesar de tudo, pois não sei o que me que dizia que fora longe demais...

Gonzaga de Sá entrou, sentou-se na cadeira em que estivera a moça. Recostou-se e disse-me, olhando o céu:

— Como está belo o céu! Hein? Para ele não há dores... Os que vivem que lhe apreciem a beleza; os que morrem que deixem os outros o cuidado de apreciá-la...

Calou-se um pouco e depois acrescentou ex-abrupto:

— Essa continuidade é imposta por tudo. As folhas que caem adubam as raízes das árvores onde nasceram, para fazerem nascer outras novas e belas.

A observação não era nova; mas sobressaltou-me ao lembrar que podia ter ouvido a minha conversa com a moça. Ainda mais acrescentou:

— Tens estado pouco na sala.

— Está muito quente..

— Deves ir, não só porque é conveniente à tua mocidade o espetáculo da Morte, como também dá campo para se ver como os etnólogos são falsos e maus.

Ele tirou uma longa fumaça do cigarro e continuou:

— Ultimamente disseram que os feitios de sentir eram tão diferentes em cada raça humana que era o bastante para fazer não se entendessem elas... Que há, de fato, mais de um sentir, de um pensar para cada raça etc. Ora, em face do nosso povo, tão variado, eu tenho reparado que nada há que as separe profundamente. E nós nos entenderíamos e preencheríamos facilmente o nosso destino se não fora a perturbação que trazem os diplomatas viajados, acovardados diante da opinião americana, querendo deitar esconjuros e exorcismos...

Continuou:

— Tu bem sabes que é difícil dizer onde começa o real e onde acaba. O homem é um animal conceitualista, isto é, capaz de tirar de pequenos dados do mundo uma representação mental, uma imagem, estendê-la, desdobrá-la e convencer o outro que aquilo tudo existe fora de nós... Tu sabes? Ora, a Europa, as universidades que por má fé ou por desconhecimento primitivo, não direi do real, mas do fato bruto colhido pelos sentidos, deram agora para fazer teorias sobre raça, sobre espécies humanas, etc. etc. A coisa se estende, os interessados dão são ouvidos, pois não têm uma cultura seguida, porque, se a tivessem, poderiam ter chegado a resultados opostos. Que acontece? A coisa pega como certa, cava dissensões, e os sábios diplomatas, para fazer bonito, adotam e escrevem artigos nos jornais e peroram burrices repetidas. Se, no Século XVII, o que separava os homens de raças várias era o conceito religioso, há de ser o científico que as separará daqui a tempos... A benéfica ciência!... Enfim, a ocasião não é propícia para uma conferência. Vamos prestar homenagem a esse meu infeliz e humilde amigo...

Havia na sala umas trinta pe ssoas, mais da metade mulheres. Sobre uma velha cômoda, um lampião mal a iluminava; os círios bruxuleavam. Gonzaga de Sá atravessou-a e foi sentar-se perto da sogra do compadre que chorava. Era uma preta retinta, de uma pele macia de veludo. Fiquei em pé, perto da porta de entrada. Havia um silêncio completo, de quando em quando um soluço da pobre mulher quebrava-o lugubremente. A gratidão devia ser grande. Aquele homem agora morto lhe dera as mais gratas satisfações de sua vida humilde. Casara com a filha, apoiara com o seu prestígio de homem a sua fraqueza de condição de menina, arrebatara-a ao ambiente que cerca as raparigas de cor, dignificara-a, ela, a quem quase todo o conjunto da sociedade, sem excetuar os seus iguais, admitem que o seu destino natural é a prostituição e a mancebia. Do outro lado, lá estava o neto. A testa reta, ainda mal desenhada pela idade, as sobrancelhas arqueadas e unidas, o seu olhar perfurante — toda a fisionomia da criança tinha uma expressão de inteligência, de curiosidade e de energia que a sua doçura nativa havia de diminuir. Que seria dele, por aí, pela vida? Sob a ascendência do padrinho, estudaria muito, aplicar-se-ia aos livros. Durante anos no ambiente falso dos colégios e escolas, a sua situação na vida não se lhe representaria perfeitamente. Viriam os anos e a ânsia que o estudo dá; viria o mundo social, com a sua trama de conceitos e preconceitos, justos e injustos, bons e maus — trama unida e espinhenta, contra a qual a sua alma se iria chocar... Era então a dor, as deliquescências, as loucas fugidas pela fantasia... Era o doloroso peregrinar com o opróbrio à mostra, à vista de todos, sujeito à irrisão do condutor do bonde e do ministro plenipotenciário... Era sempre, nos cafés, nas ruas, nos teatros, andando vinte metros na frente um batedor que avisava da sua presença e fazia que se preparassem as malícias, os olhares vesgos ou idiotas... Coitado! Nem o estudo lhe valeria, nem os livros, nem o valor, porque, quando o olhassem, diriam lá para os infalíveis: aquilo lá pode saber nada!

Tive uma pena infinda, imensa, afetuosa por aquela pobre alma órfã tantas vezes; eu tive uma imensa tristeza que aquela inteligência não se pudesse expandir livremente, segundo o próprio caminho que ela própria traçasse... Olhei-o algum tempo assim, cheio de pena, de afeto e tristeza. De repente, ele se pôs a chorar muito e com força, sem explicação, sem causa, e correu, como se estivesse sendo perseguido, para onde estava o padrinho. foram instantâneos, conexos, o choro e a corrida. Gonzaga de Sá levantou-se, ergueu-o no colo e beijou-o, animando-o:

— Que é meu filho? Que é meu Aleixo? — Uma vela estremeceu e, no rosto do cadáver, julguei lobrigar um fraco gesto depadecimento.