Vila Rica (Cláudio Manuel da Costa)/I

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Cantemos, Musa, a fundação primeira
Da Capital das Minas, onde inteira
Se guarda ainda, e vive inda a memória
Que enche de aplauso de Albuquerque a história.

Tu, pátrio Ribeirão, que em outra idade
Deste assunto a meu verso, na igualdade
De um épico transporte, hoje me inspira
Mais digno influxo, porque entoe a Lira,
Por que leve o meu Canto ao clima estranho
O claro Herói, que sigo e que acompanho:
Faze vizinho ao Tejo, enfim, que eu veja
Cheias as Ninfas de amorosa inveja.

E vós, honra da Pátria, glória bela
Da Casa e do Solar de Bobadela,
Conde feliz, em cujo ilustre peito
De alta virtude respeitando o efeito,
O Irmão defunto reviver admiro:
Afável permiti

que eu tente o giro
Das minhas asas pela glória vossa,
E entre a série de Heróis louvar-vos possa.

Rotos os mares, e o comércio aberto,
Já de América o Gênio descoberto
Tinha ao Rei Lusitano as grandes terras,
Que o Sul rodeia de escabrosas serras.

O título contavam de Cidades
Pernambuco, Bahia; e as crueldades
Dos índios superadas, já se via
O Rio de janeiro, que fazia
Escala às Naus: buscando o continente
De Paulo, uma conquista está patente,
Que aos Portugueses com feliz agoiro
Prometia o diamante, a prata, o oiro.

O arbítrio de um só braço moderava.
Toda a Capitania; e projetava
Albuquerque, que a gente ao Cetro alista,
Fazer mais dilatada esta conquista.

Da notícia de alguns tinha alcançado
(E muito mais na idéia está gravado
O profético anúncio) que faria
Grande serviço ao Rei, se a Serrania
Vencesse, e além passasse, e visse a testa
Do soberbo Itamonte: manifesta
A estrada se lhe mostra, e um Gênio experto
O guia a ver da empresa o fim mais certo.

Tornando à margem de um soberbo Rio,
Já se alojava o Herói, e do sombrio
Amparo de umas árvores, enquanto
Vagava a comitiva, ao doce encanto

Do murmúrio das águas e do vento,
Dando aos membros suave acolhimento,
O leve sono lhe deitava as asas.
Tecia débil cana as moles casas,
Em que apenas descansa algum rendido
Da fatigada marcha; ali ferido
De uma estranha paixão, que n'alma alenta,
Ao lado está do General; sustenta
O brioso Garcia o oficio inteiro
De súdito, de amigo e companheiro.

Rende-se ao sono o Herói, e ao anelante
Pulsar do peito, observa o vigilante
Mancebo que o combate aflita luta
No horror da fantesia; um ai lhe escuta,
Que ansioso respira; outro mais vivo
Lhe percebe no assalto sucessivo;
E ao ver que estende duramente os braços,
Já teme, e grita, e já lhe rompe os laços
Do funesto letargo: Ai! caro amigo
(Lhe diz o Herói), não temas, eu prossigo,
Se é que o espanto e o terror, que n'alma provo,
Me dão para falar-te alento novo.
Neste instante (ai de mim!), ou fosse imagem
Que há muito me oprimia, ou que a passagem
Deste Rio me ofereça agouro triste,
Eu vi (eu inda o vejo, inda me assiste
Presente aos olhos o medonho objeto!),
Eu vi que me apartava do projeto
De penetrar estes Sertões escuros
O grande Dom Rodrigo; dos seguros
Ombros, de que pendera agrave espada,
Rasga o vestido, e mostra inda manchada

A carne das feridas, de que o sangue
Correr se via; eu tremo, e quase exangue
Desmaio a tanta vista. Ele se avança,
Da mão me prende, e diz: Em vão se cansa,
Em vão o vosso Rei, se ver pertende
Subjugado este povo, que defende
Com o bárbaro zelo as pátrias Minas;
Debalde tu também hoje imaginas
Chegar ao centro delas; eu contemplo
Mil perigos na empresa; fresco exemplo
Te dá a minha morte; só te espera
De gênios brutos pertinácia fera;
Falta de fé, traições, crimes atrozes
Só terás de encontrar; se as minhas vozes
Teu crédito merecem, deixa, evita
A infame estrada... ; nisto ao ver que grita
Mais forte e mais medonha a sombra, tremo,
Pasmo, e me assusto, me horrorizo, e gemo.

Sem trabalhos (Garcia então lhe torna)
A glória não se alcança, não se adorna
Do louro da virtude o que se nega
Às árduas diligências; sei que chega
Vosso zelo e valor ao termo, aonde
Tudo o que é grande apenas corresponde
Ao meditado arrojo; mas passado
É talvez o pior, e já lembrado
Posso esperar que o mal encha algum dia
Os corações e as almas de alegria.
Temos dobrado a grande Serra;
temos Rompido os matos, onde ver podemos
As feras e o Gentio que a brenha oculta
Girar por entre nós: a alma insepulta
Do morto General a nós nos deva
Vencer do esquecimento a escura treva;

Busque-se o seu cadáver, e entre os nossos
Honrada sepultura achem seus ossos.

Aqui chegava, quando a comitiva,
Desde o vizinho monte, viva! viva!
Bradava em altas vozes; cresce o espanto;
Ambos se admiram; de alarido tanto
A causa buscam; pouco tempo tarda
Em recolher-se a dividida guarda,
Com salvas, e com vivas festejando
A presa, que já vem apresentando.

Três índias são, que do Pori robusto
Em resto escapam; todo o corpo adusto
Mostra que o Sol sobre a nudez queimara,
E que a ingênita cor de branca e clara
Tornou um pouco escura; a longa idade
A todas três enruga a mocidade;
Curvos os ombros, poucas cãs, os braços
Murchos e descarnados, mal os passos
Regem tremendo; breve arrimo fazem
De tintos paus, que apenas nas mãos trazem.

Tecendo a teia na morada escura
Do negro Radamanto, outra figura
Não inculcara mais enorme e triste
O termo horrendo, que aos mortais assiste.
Conta Camargo, que o vizinho monte
Subira com os seus, e que de ponte
Um madeiro, que o tempo derribara,
Lhe servira, e por ele além passara,
Que desde ali por entre as brenhas via
Uma pequena Aldeia, a quem fazia
Baixa e comprida choça a cobertura

Aos queimados Tapuias: desde a altura
Do monte disparou por meter medo
Um tiro de espingarda; nenhum quedo
Se deixa então ficar: todos se apressam,
Fogem, nem mais às flechas se arremessam.
Desamparado o sítio humilde e pobre,
Desce ao terreno, e as índias três descobre,
Que de oprimidas dos cansados anos
Não puderam fugir, temendo os danos
Que dos antigos Pais ouvido tinham.

Variamente uns e outros se entretinham
Em contar o sucesso; e já notava
Garcia, que nas índias se firmava,
Que uma delas com gesto mais sereno
Punha nele os [seus olhos]; por aceno
Observa, mais que explica, que o conhece;
Da língua portuguesa lhe parece
Que entende; e mais se assombra o bom Garcia
Ao ver como em um dedo ela prendia
Uma memória de ouro; a jóia observa;
Cala-se, e a melhor tempo o mais reserva,
Exprimindo em um ai, que d'alma exala,
O mais, que por então sepulta e cala.

Recolhidos a um tempo os companheiros,
Junto aos troncos, nas grutas dos outeiros
Se armam as mesas; de viandas servem
A mortas caças, que nos cobres fervem:
As aves, que do chumbo o globo estreito
Feriu nas asas, e rompeu o peito;
O veado, a que o índio na carreira
Seguiu, e a seta disparou ligeira;
Não falta o louro mel da abelha astuta,

O grelo da palmeira, e a tosca fruta,
Que alguma árvore brota ali nascida,
Por menos venenosa conhecida,
Enquanto os brutos animais a comem
(Tanto dos brutos aprendera o homem!).

Tornando às praias da infeliz Cartago
O triste resto do troiano estrago,
Tal se consola na fatal ruína,
Que pode a Musa celebrar latina.

Longe de Europa os provimentos ficam,
Nem os fortes cavalos, que se aplicam
À condução dos víveres, se atrevem
A romper os caminhos; mal se devem
Pequenas cargas aos robustos ombros
Dos domésticos índios: se os assombros
Desperta em vós esta fatal penúria,
Ó Generais da Europa, nobre injúria
Concebe o meu Herói; ali sentado
Entre os mais companheiros, rodeado
Sem distinção alguma, ou já na mesa,
No leito, ou no quartel, ou junto à acesa
Chama, em que esperam reparar o frio,
Tem toda a autoridade, todo o brio
Posto no zelo só, na vigilância,
Com que prova os esforços da constância,
Esquecido de si e da grandeza,
Por ver o fim da cometida empresa.