Vila Rica (Cláudio Manuel da Costa)/III

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As paixões acalmara de Garcia
A chegada do Borba, e suspendia
Ela mesma a partida de Albuquerque.
Sem que temor algum lhe oprima, ou cerque
O nobre coração, na tenda entrava,
E cortejando o Herói, assim falava:

Terás ouvido, ó General famoso,
Variamente o meu caso; e duvidoso
Talvez estás da fé, que guardo atento
Ao meu Rei em sinal do juramento.
Acusado por cúmplice na morte
Do grande Dom Rodrigo, a minha sorte,
Mais que o delito meu, desculpar venho;
Sem adorno o sucesso agora tenho
De dizer- te; e verás, hoje informado,
Que sou mais infeliz do que culpado.

Pouco mais de três léguas em distância
Deste sítio me via, quando a instâncias
Do novo General, que aqui chegava,
A voz de um mensageiro me ordenava
Entregasse os socorros prevenidos

Da pólvora e do chumbo e os cometidos
À minha guarda prontos instrumentos
Do ferro e do aço: oponho a seus intentos
A razão que me assiste; e enfim me escuso,
Dizendo que das ordens não abuso
Do meu fiel Parente, a quem espero
A cada instante, e perto considero
De entrar comigo a registar as faldas
Das montanhas e minas de esmeraldas.

Mal satisfeito da resposta volta
O importuno ministro, e já se solta
Contra mim declarada toda a fúria
Dos vis aduladores: por injúria
Reputam toda aquela resistência,
E protestam que aos braços da violência
Há de ceder a repugnância minha.
Um e outro se oferece, mas detinha
Ao prudente Fidalgo o árduo projeto
Da brandura e da paz; o nobre objeto
Do serviço do Rei a mim o guia;
Em pessoa aparece, e me seria
Muito fácil ceder, se não houvesse
Mais forte obrigação, que [me] prendesse.
Uma e mil vezes represento o empenho,
Que a duvidar me induz e me detenho
Irresoluto um pouco (nem atino
Se obrava nisto a força do destino!);
Constante era a razão, pois esperando
As Reais Ordens para a empresa, quando
Fernão Dias voltasse, não teria
Os provimentos que deixado havia.
Enfim ele de cólera se acende,
Nem às minhas desculpas mais atende;
Enfurece-se, grita e ameaça:

E eu (ó duro extremo da desgraça!),
Rendido a todo o lance, só procuro
Mitigar-lhe o rancor; um braço duro,
Sacrílego, insolente, infame, ousado,
Sem que eu presuma o bárbaro atentado,
Se arroja dentre os meus; dispara um tiro,
E a alma envolta no mortal suspiro
Voou, deixando a mágoa em que me vejo,
Para salvar a vida, a honra e o pejo.
A notícia do caso acende a ira
Em todos os que o seguem; já conspira
Em meu dano o parente e mais o amigo;
Querem vingar a morte de Rodrigo;
Em vão lhes serve de reparo ou freio,
A inocência em que estou; medito um meio
De salvar-me; em esquadras divididas
Reparto a gente, sobre as mais crescidas
Montanhas, de onde fossem descobertas.

As estradas ao longe em parte abertas
Davam já vista aos ímpios conjurados,
Quando os tambores e os clarins tocados
Em vários sítios amotinam tudo:
Cresce o temor ao meditado estudo,
E crêem que era chegado Fernão Dias.
Amparado do engano, as Serras frias
Destes Sertões dobrei; passo a corrente
De um grande Rio, e a margem florescente
Piso, apenas de alguns acompanhado;
Aqui descubro um plano dilatado,
Cômodo à criação; nele apascento
Por muito tempo o gado, e em novo aumento
Às descobertas Minas já preparo
Na fome e na penúria o bom reparo.


Estes são os serviços com que chego,
Estes os testemunhos são que alego
Da inocência em que vivo; os meus parentes,
Amigos e obrigados, que presentes
Em grande parte estão, por mim te falem,
E quando todos por lisonja calem,
Do teu antecessor terás ouvido
Quanto servem de informe; e este luzido
Bastão, dádiva sua (então levanta
A insígnia militar), é prova tanta,
Que sobra a escurecer qualquer suspeita
Que ao mesmo Rei pudesse ser aceita.

Dizia; e sempre grave e sempre airoso,
Deixava ver no rosto generoso
O espírito magnânimo que o alenta.
O Herói, que sem mudança se contenta
De ouvir todo o sucesso por inteiro,
Suave acolhe ao nobre Aventureiro,
E dando-lhe mil mostras de amizade,
De ordem do mesmo Rei o persuade
A que viva seguro do delito;
Informa-se do sítio e do distrito
Em que está, e o convida para a empresa,
E por ele pertende haver certeza
Da serra que demanda, onde fundada
Veja uma vez a povoação sonhada.

Consultando as precisas providências
Se detém alguns dias, e as urgências
Do estéril sítio apenas socorridas
Eram de algumas caças, que trazidas
Vinham dos índios menos assustados
Co'a chegada dos mais, que estão listados
À comandância do Hóspede: entre vários

Da nação Monaxós, que voluntários
Ao Herói visitavam, se encontrava
Um mancebo gentil, a quem cercava
Branco penacho a testa; os braços cinge
De amarela plumagem; bravo o finge
A tinta do urucú: a cor, nem preta,
Nem branca por extremo, mas que afeta
Do gelado Samiúte o estranho gesto;
Pouco ao braço e ao ombro lhe é molesto
O arco e a aljava; o rosto, a fala e tudo
Verte um ar de respeito, ar sem estudo.
Em vão das flechas a purpúrea arara
Fugir-lhe espera; em vão na garra avara
Mosqueado tigre lhe ameaça a morte:
Empunha o dardo, e valeroso e forte
O faz despojo do robusto braço,
A fere, e corta no vazio espaço.

De impulso por então não conhecido,
O índio, a quem Amor tinha ferido,
Se deixava arrastar, e praticando
Tudo quanto a paixão lhe está ditando,
Do valor de seu braço ele confia
Roubar traidor a vida de Garcia.
Protegido da noute, às horas quando
Jaziam todos, n'ua mão tomando
Uma faca e em outra o dardo agudo,
Por tudo olhando e precavendo tudo,
A tenda busca do saudoso amante;
A luz lhe rege o passo e ao mesmo instante
Na cama o tenta e lhe prepara a morte.
Houve uma vez de ser propícia a sorte,
Que não dorme Garcia e sente o ruído;

Ergue-se; toma a espada e acometido
Se vê apenas, quando reparada
A ferida do dardo, mete a espada
Por um lado ao traidor, em sangue envolta
A tira e a mão suspende; a um tempo solta,
A corrente de sangue inunda a terra;
O índio semivivo os dentes ferra,
Acena de morrer, e grita, e brada
Em roucas vozes, com que amotinada
Tem toda a gente, que ao sucesso acode.
Debalde a conjectura alcançar pode
O mesmo, que está vendo; estranho e oculto
É o motivo do aleivoso insulto.
Faminto lobo no redil fechado
Assim receoso entrou; mas acossado
Do molosso feroz, foi de repente
Cair despojo ao sanguinoso dente.

Conhecendo Albuquerque, que respira
Inda vivo, a um dos pousos o retira,
E lhe põe sentinelas; manda entanto
Se lhe apliquem remédios: o óleo Santo,
Que ministra de Bueno a mão experta,
Estanca o sangue, e da ferida aberta
Cerrando a boca, inda a esperança anima
De que a morte de todo o não oprima.