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Vozes inúteis

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Acabamos de receber do Sobral este telegrama: “Senador Rui Barbosa. Mulheres e crianças estão morrendo à fome pelas estradas. Homens famintos, desesperados da vinda dos socorros, atacaram em centenas as propriedades e pretenderam assaltar o trem de cereais em Massapé. O trem não parou na estação. A caridade particular está exausta, o comércio coato. Clamai providências, para salvar nossos concidadãos, matando-lhes a fome.”

Clamai! Aí está. Pretendem os famintos do Ceará que clamemos. Mas clamar como? Clamar por quem? Para quem clamar? Há, neste país, ainda algum clamor, que se oiça, a não ser o do ventre político? Tempos tivemos, em que, nesta terra, havia vozes: vozes de protesto, vozes de censura, vozes de antagonismo, vozes de reação. A linguagem ainda servia então à nossa raça, para discutir, reclamar, argüir, fulminar, para tomar contas, distribuir justiça, vingar agravos, premiar virtudes, semear idéias, impor ditames, em nome da razão, em nome da honra, em nome da humanidade, em nome do povo. Hoje de ordinário a palavra não serve, senão para mentir, e calar, para servir, calando, e servir, mentindo, para servir com o incenso, e servir com o insulto, servir, em todos os graus do poder e em todos os graus da cobiça, aos violentos e aos nulos, aos senhores e aos mordomos, aos mandões e aos lacaios, servir servilmente, menos pelas satisfações da ambição, como os romanos do império, que pelos interesses da obe­diência, como os chins do mandarinato. Apenas esse rumor de formigueiro, o bulício do enxame no carrear do grão para as luras, quebra com uma surdina de insetos o pesado silêncio do medo. A nação acabou por emudecer, e dorme profundamente, como nesses sonos extremos da miséria, ou da congelação polar.

Contra este colapso todos os estimulantes se têm baldado, e já se não sabe que comoção o abalará. A crueldade? A perseguição? A selvageria? A efusão do sangue inocente? Tudo isso atravessamos nós piamente, como quem cursa um programa de estudos. A corrupção? Vimo-la assumir formas desconhecidas, e cair, pela indiferença universal, na ordem normal das coisas. O escândalo? Esse tocou às extravagâncias da pornocracia, sem que estremecêssemos. O descrédito da justiça? O abuso do imposto? A extorsão fiscal? A morte das indústrias? A indigência das classes laboriosas? Estamos afeitos. Nenhuma dessas provações alterou a nossa imobilidade.

A missão do jornalista agora é bradar aos ouvidos deste cadáver. Já principia a ser ridículo o papel de sentinela e despertador entre mortos. Que se importa a nação de que se violem as leis? Que se importa de que a legislatura seja um apêndice do executivo? Que se importa de que legisladores e juízes se convertam em veadores do novo soberano? Que se importa de que o Governo distribua ao estrangeiro pedaços do território nacional? Que se importa de que dois mil volumes no Labréia contrabandeiem para o Acre os elementos de guerra bolivianos, enquando ao Mucuripe se tolhe uma viagem comercial, a pretexto de conduzir armamentos brasileiros? Que se importa de que nos reduzamos, entre as nações sul-americanas, a uma sombra do nosso passado? Que se importa de que o presidente da República acondicione a estrebaria das suas parelhas e o curral do seu gado entre os canhões e as praças d’armas dos nossos navios de combate?

A nação não se importa de coisa nenhuma. E o Ceará esfomea­do, extenuado, esfarrapado, imagina que um grito nosso comova esta insensibilidade? Outrora as rapacidades do erário e as crises do estômago popular faziam revoluções. Hoje fazem escravos. Hoje consolidam o cativeiro. Os derradeiros órgãos sensórios de uma nacionalidade são a algibeira e as vísceras digestivas. Estes mesmos, entre nós, já perderam totalmente a impressionabilidade. Que se há de fazer agora? Obrigar à ação benfazeja o governo de um povo, que se sepulta? Comunicar a um povo inconsciente um movimento de energia sobre o seu governo? Dois absurdos. Só onde ainda existe a consciência, poderá penetrar a suasão. Só onde ainda há restos de vida, será capaz de atuar o galvanismo.

Quando se clama para Deus, pode-se clamar indiferentemente do povoado, ou do deserto. Mas, quando se clama para o poder, é preciso que se não clame do vazio. E é no vazio que hoje em dia gira a imprensa independente. Solitária na sua obstinação e na sua ilusão, ela se esgota impotente, desprezada, quase risível, enquanto em torno lhe vai crescendo a aluvião do abuso, da força, do sofisma aplaudidos, soberbos, triunfantes. Parecia uma vitória obtida contra eles esse auxílio de dez mil contos para a agonia do Ceará. Votou-se o crédito. Sancionou-se a lei. O Ceará congratulou-se. Mas com que utilidade? A lei não se cumpre. Não se remeteram os recursos. De sorte que o martírio, instantaneamente alivia­do por uma esperança, recrudesce medonho na sua tenebrosa intensidade.

Os livros de arte falam com calefrios de terror na trilogia de Wiertz, o quadro da Fome, da Loucura e do Crime. Na tela, um casebre de teto gretado e malseguro. Sentada ao chão uma infeliz, a cabeça envolta nos trapos de um lenço, uma faca ensangüentada na destra, a outra mão arrimando a fronte, crestados os olhos do pranto, mas enxutos, com o sorriso da idiotia no semblante desvairado. Aos joelhos uma trouxa ensopada em sangue, entre­mostrando as formas de uma criança mutilada. Estão-lhe secas as lágrimas, exaustos os peitos, a razão ausente, a vista vagamente perdida na lareira sinistra, onde, entre as estilhas de uma cadeira e os andrajos da pequenita, assomam, do caldeirão a ferver, os pezinhos do bambino trucidado. Último toque, porém, da tragédia, enquanto a fogo lento se vai cozendo o hediondo repasto, aos pés da mãe alucinada: o assombro do espectador soletra distintamente num fragmento de papel, como um epigrama, a palavra Contribuições.

Substituam contribuições por socorro, e terão a cena da atualidade: a caridade sem pressa, a esmola tardia, o óbolo social, que apenas acode ao enterro, em vez de chegar para o pão. Dir-se-ia contarem os cães presentemente, no mundo oficial, mais amigos que as criaturas humanas. E ainda bem que, debaixo do céu cruel, só os fortes, os talhados pela natureza para a luta pela vida, têm direito à preservação. As famílias, as raças, os estados não escapam à rudez eliminatória da seleção natural, essência hoje das instituições republicanas. O Ceará é um fraco; e para os fracos não há lugar na ordem implacável da criação. Do Tesouro não se pode esperar comiseração maior que do firmamento azul, para onde a miseranda terra da seca estende em vão, debaixo do flagelo do sol, os braços macilentos de seus filhos. Esta época balda de crenças não conhece a piedade. A eqüidade e a doçura da lei moral substituiu-se pela inexorabilidade esmagadora das leis físicas. Necessário é que desapareçam os ramos valetudinários da família brasileira, para que os vigorosos frondejem. Não embaracemos a fatalidade.