A Divina Comédia (Xavier Pinheiro)/grafia atualizada/Inferno/XII

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O Minotauro está de guarda ao sétimo círculo. Vencida a ira dele, chegam os Poetas ao vale, em cujo primeiro compartimento vêem um rio de sangue fervendo, no qual são punidos os que praticaram violências contra a vida ou as coisas do próximo. Uma esquadra de Centauros anda em volta do paul vigiando os condenados, frechando-os se tentam sair do rio de sangue. Alguns desses Centauros pretendem deter os Poetas, porém Virgílio os domina, conseguindo que um deles os escolte e transporte na garupa a Dante. Na passagem o Centauro, que é Nesso, fala a respeito dos danados que sofrem a pena no rio de sangue.

DA descida era o passo tão fragoso
E tal por quem lá estava à guarda e atento,
Que se fazia à vista pavoroso.

Como a ruína, que daquém de Trento,
O Ádige feriu, por terremoto
Ou por faltar de chofre o fundamento;

Do viso ao val do monte, que foi roto,
Tão derrocada vê-se a penedia,
Que a descê-la o caminho é quase imoto.

A ribanceira assim nos parecia.
E à borda do penedo fracassado
De Creta o monstro infame se estendia,

Da falsa vaca torpemente nado.[1]
Apenas viu-nos, se mordeu fremente,
Como quem pela raiva é devorado.

“Cuidas” — bradou-lhe o sábio incontinente —
“Ser de Atenas o príncipe, o que à morte
Lá sobre a terra te arrojou valente?

“Arreda, bruto! Que este é de outra sorte;
Da tua irmã não recebera ensino;
De vós outros vem ver a pena forte”.

Qual touro desprendido, quando o tino
Mortal golpe lhe rouba, que não pode
Correr, mas salta a vacilar mofino:

Assim o Minotauro. O Mestre acode
Dizendo-me: “Demanda presto a entrada
E desce, enquanto em vascas se sacode”. —

A quebrada descíamos formada
De pedras soltas; cada qual, movida,
Cedia, em sendo por meus pés calcada.

E eu cismava. Ele disse: — “Tens sorvida
A mente na ruína, que do horrendo
Monstro a ira defende já vencida.

“Deves saber que, de outra vez descendo
Até o extremo lá do baixo inferno,
Esta rocha não vi, como a estás vendo,

“Mas, pouco antes de vir se bem discerno,
Aquele que há tomado a grande presa,
A Dite, lá no círculo superno,

“Deste val tremeu tanto a profundeza,
Que sentisse pensei todo o universo
O amor, com que alguém diz ter certeza

“De que ao caos muita vez será converso.
Foi aqui, noutras partes, nesse instante,
Roto o velho penhasco em treva imerso.

“Mas olha o vale: o rio é não distante
De sangue, onde verás fervendo aquele,
Que violência exerceu no semelhante.

“Ó ira louca, ó ambição, que impele
Na curta vida nossa, ao inferno arrasta
E para sempre nos submerge nele!” —

Eis uma cava divisei mui vasta,
Que abrangia, arqueada, o plano inteiro,
Como dissera quem do mal me afasta.

No espaço, a que o penhasco é sobranceiro,
Centauros correm, setas agitando,
Como soíam no viver primeiro.

Descer nos vendo, pára o ardido bando.
Três de entre eles então nos demandaram,
Os arcos e arremessos preparando.

Os brados de um de longe nos soaram:
— “Vós, que desceis, dizei a pena vossa;
De lá falai, ou tiros se disparam!” —

Virgílio respondeu: — “Resposta nossa
Terá Quiron de perto, sem demora.[2]
Sempre te dana a pressa que te apossa”. —

Tocou-me e disse: — “Quem nos fala agora
É Nesso, o que morreu por Dejanira;
Mas se vingou de quem fatal lhe fora.

“Esse do meio, que o seu peito mira,
Aio de Aquiles, é Quiron famoso;
Esse outro é Folo, sempre aceso em ira”. —

Aos mil em volta ao rio sanguinoso
As almas seteavam, que excediam,
Mais do que é dado, o líquido horroroso.

Àqueles monstros que ágeis se moviam,
Chegamo-nos. Quiron com seta ajeita
Os cabelos, que os lábios lhe encobriam.

Quando desta arte a larga boca afeita,
Disse à companha: — “Haveis já reparado
Que move aquele tudo, em que os pés deita?

“Nunca assim pés de morto hão caminhado”.
O Guia meu, que junto já lhe estava
Do peito, onde era um ser noutro enleado,

— “Vivo está, vem comigo” — lhe tornava —
“A visitar o val maldito, escuro
Para cumprir dever, que lho ordenava.

“Deixando de cantar o hosana puro
Alguém me há cometido o cargo novo.
Não é ladrão, nem eu esp’rito impuro:

Em nome do poder, por quem eu movo
Os passos meus em tão medonha estrada,
Envia algum, que escolhas no teu povo,

“Por nos mostrar a parte acomodada
Ao vau, e no seu dorso haver transporte
Quem não é sombra ao vôo aparelhada”.

Quiron volveu-se à destra e a Nesso forte
— “Torna atrás” — disse — “e serve-lhes de guia:
Que outro bando o caminho lhes não corte!” —

Já partimos na fida companhia,
As ondas costeando rubras, quentes,
Donde agudo estridor ao ar subia.

Té os cílios no sangue os padecentes
Eu vi. Disse o Centauro: — “São tiranos
Truculentos e em roubo preminentes.

“Chora-se aqui por feitos desumanos.
Alexandre aqui está, Dionísio antigo[3]
Que gemer fez Sicília tantos anos.

“De negra coma, aqui sofre o castigo
Azzolino; e o que está, louro, ao seu lado[4]
Obizzio d’Este, ao qual (verdade eu digo)[5]

“Roubara a vida o pérfido enteado”. —
E o Vate, a quem voltei-me, assim dizia:
— “O segundo lugar me é reservado”. —

Pouco além parou Nesso: olhar queria
Uma turba, que, estando submergida,
Toda a cabeça para fora erguia,

Disse, indicando uma alma retraída:
“Perante Deus um coração ferira,
Que inda Londres venera estremecida”. —[6]

A cabeça vi de outros, que subira
Do rio à superfície e o inteiro busto,
Suas feições no mundo eu distinguira:

Ia baixando o sangue até que a custo
Os pés cobria a quem passar quisesse:
O fosso ali vencemos já sem custo.

“Se desta parte o borbulhão parece
Do rio escassear, eu te asseguro”
— Disse Nesso — “que mais engrossa e desce

“Na parte oposta até juntar-se ao escuro
Pego em que, como hás visto, a tirania
As penas dá no seu tormento duro.

“A divina justiça lá crucia
Esse Átila, que açoite foi da terra,[7]
Pirro e Sexto; e redobrar-se a agonia[8]

“Dos dois Renatos, que tamanha guerra
Fizeram nas estradas, salteando,
— O Pazzo e o de Corneto”. — E a fala cerra.

Voltou depois do rio o vau passando.

Notas[editar]

  1. De Creta o monstro infame, o Minotauro, nascido de um touro e de Pasifae, o qual foi morto por Teseu. [N. T.]
  2. Quiron, centauro morto por Hércules, quando do rapto de Dejanira. [N. T.]
  3. Alexandre, tirano de Fere na Tessália ou Alexandre de Macedônia. — Dionísio, tirano de Siracusa. [N. T.]
  4. Azzolino, Ezzelino III de Romano, tirano da Marca Trevisana. [N. T.]
  5. Obizzio, d’Este, tirano de Ferrara. [N. T.]
  6. Uma alma, etc., Guido de Monfort, que matou a Arrigo, irmão de Eduardo I, rei da Inglaterra, cujo coração foi colocado num monumento. [N. T.]
  7. Átila, rei dos Hunos, chamado o flagelo de Deus. [N. T.]
  8. Pirro, filho de Aquiles que matou a Príamo. [N. T.]