O Almada/Canto terceiro

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I

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II

Que lance há hi nessa comédia humana,
Em que não entrem moças? Descorada,
Como heroína de romance de hoje,
Alva, como as mais alvas deste mundo,
Tal, que disseras lhe negara o sangue
A madre natureza, Margarida
Tinha o suave, delicado aspecto
De uma santa de cera, antes que a tinta
O matiz beatífico lhe ponha.
Era alta e fina, senhoril e bela.
Olhos, tinha-os da cor incerta e vaga
Que não é puro azul nem alvo puro,
Antes combinação de ambas as cores.
Mas tão sutil no entanto e tão perfeita
Que não há decidir. Garços lhes chamam,
E, se não mentem fábulas gentias,
Minerva os tinha assim. Nunca mais vivo
Transparecera em rosto de donzela
Vergonhoso pudor, agreste e rude,
Que até de uns simples olhos se ofendia,
E chegava a corar, se o pensamento
Lhe adivinhava anônimo suspiro
Ou remota ambição de amante ousado.
Era vê-la, ao domingo, caminhando
À missa, co’os parentes e os escravos,
A um de fundo, em grave e compassada
Procissão; era ver-lhe a compostura,
A devoção com que escutava o padre,
E no agnus dei levava a mão ao peito,
Mão que enchia de fogos e desejos
Dez ou doze amadores respeitosos
De suas graças, vários na figura,
Na posição, na idade e no juízo,
E que ali mesmo, à luz dos bentos círios,
(Tão de longe vêm já os maus costumes!)
Ousavam inda suspirar por ela. [14]

III

Entre esses figurava o moço Vasco.
Vasco, a flor dos vadios da cidade,
Namorador dos adros das igrejas,
Taful de cavalhadas, consumado
Nas hípicas façanhas, era o nome
Que mais na baila andava. Moça havia
Que por ele trocara (erro de moça!)
O seu lugar no céu; e este pecado,
Inda que todo interior e mudo,
Dous terços lhe custou de penitência
Que o confessor lhe impôs. Era sabido
Que nas salas da casa do governo,
Certa noite, de mágoa desmaiaram
Duas damas rivais, porque o magano
As cartas confundira do namoro.
Estas proezas tais, que o fértil vulgo
Com aumentos de casa encarecia,
E a bem lançada perna, e o luzidio
Dos sapatos, e as sedas e os veludos,
E o franco aplauso de uns, e a inveja de outros,
O cetro lhe doaram dos peraltas.

IV

E contudo, era em vão que à ingênua dama
A flor do esquivo coração pedia;
Inúteis os suspiros lhe brotavam
Do íntimo do peito; nem da esperta
Mucama, — natural cúmplice amiga
Desta sorte de crimes, lhe valiam
Os recados de boca; — nem as longas,
Maviosas letras em papel bordado,
Atadas com a simbólica fitinha
Cor de esperança, — e olhares derretidos,
Se a topava à janela, — raro evento,
Que o pai, varão de bolsa e qualidade,
Que repousava das fadigas longas
Havidas no mercado de africanos,
Era um tipo de sólidas virtudes
E muita experiência. Poucas vezes
Ia à rua. Nas horas de fastio,
A jogar o gamão, ou recostado,
Com um vizinho, a tasquinhar nos outros,
Sem trabalho maior, passava o tempo.

V

Ora, em certo domingo, houve luzida
Festa de cavalhadas e argolinhas,
Com danças ao ar livre e outros folgares,
Recreios do bom tempo, infância d´arte,
Que o progresso apagou, e nós trocamos
Por brincos mais da nossa juventude
E melhores decerto; tão ingênuos,
Tão simples, não. Vão longe aquelas festas,
Usos, costumes são que se perderam,
Como se hão de perder os nossos de hoje,
Nesse rio caudal que tudo leva
Impetuoso ao vasto mar dos séculos.

VI

Abalada a cidade quase tanto
Como nos dias de solene festa
Da grande aclamação, de que inda falam [15]
Com saudade os muchachos de outro tempo,
Varões agora de medida e peso,
Todo o povo deixara as casas suas.
Grato ensejo era aquele. Resoluto
A correr desta vez uma argolinha,
O intrépido mancebo empunha a lança
Dos combates, na fronte um capacete
De longa, verde, flutuante pluma,
Escancha-se no dorso de um cavalo
E armado vai para a festiva guerra.

VII

Ia a passo o corcel, como ia a passo
Seu pensamento, certo da conquista,
Se ela visse o brilhante cavaleiro
Que, por amor daqueles belos olhos,
Derrotar prometia na estacada
Um cento de rivais. Subitamente
Vê apontar a ríspida figura
Do ríspido negreiro; a esposa o segue
E logo atrás a suspirada moça,
Que lentamente e plácida caminha
Com os olhos no chão. Corpilho a veste
De azul veludo; a manga arregaçada
Até à doce curva, o braço amostra
Delicioso e nu. A indiana seda
Que a linha mão da moça arregaçava,
Com aquela sagaz indiferença,
Que o demo ensina às mais singelas damas,
A furto lhe mostrou, breve e apertado
No sapatinho fino, o mais gracioso,
O mais galante pé que inda há nascido
Nestas terras: — tacão alto e forrado
De cetim rubro lhe alteava o corpo,
E airoso modo lhe imprimia ao passo...

VIII

Ao brioso corcel encurta as rédeas
Vasco, e detém-se. A bela ia caminho
E iam com ela seus perdidos olhos,
Quando (visão terrível!) a figura
Pálida e comovida lhe aparece
Do Freire, que, como ele namorado,
Contempla a dama, a suspirar por ela.
Era um varão distinto o honrado Freire,
Tabelião da terra, não metido
Nas arengas do bairro. Pouco amante
Dessa glória que tantas vezes fulge
Quando os mortais merecedores dela
Jazem no eterno pó, não se ilustrara
Com atos de bravura ou de grandeza,
Nem cobiçara as distinções do mando.
Confidente supremo dos que à vida
Dizem o último adeus, só lhe importava
Deitar em amplo in folio as derradeiras
Vontades do homem, repartir co’a pena
Pingue ou magra fazenda, já cercada
De farejantes corvos, — grato emprego
A um coração filósofo, e remédio
Para matar as ilusões no peito.
Certo, ver o usuário, que a riqueza
Obteve à custa dos vinténs do próximo,
Comprar a eterna paz na eterna vida
Com biocos de póstumas virtudes;
Em torno dele contemplar ansiados
Os que, durante longo-áridos anos,
De lisonjas e afagos o cercaram;
Depois alegres uns, sombrios outros,
Conforme foi silencioso ou grato
O abastado defunto, — emprego é esse
Pouco adequado a jovens e a poetas.

IX

Jovem não era nem poeta o Freire;
Tinha oito lustros e falava em prosa;
Mas que és tu, mocidade? e tu, poesia?
Um auto de batismo? quatro versos?
Ou brancas asas da sensível pomba
Que arrulha em peito humano?
                                       Único as perde,
Quem o lume do amor nos seios d'alma
Apagar-se-lhe sente. A névoa pode
Qual turbante mourisco, a cumeada
Das montanhas cingir da nossa terra,
Que muito, se ao redor viceja ainda
Primavera imortal?
                                       Um dia, ao vê-la
De tantos requestada a esquiva moça,
Sente o Freire bater-lhe as adormidas
Asas o coração. Que não desdoura,
Antes lhe dá realce e lhe desvinca
A nobre fronte a um homem da justiça,
Como os outros mortais, morrer de amores;
E amar e ser amado é, neste mundo,
A tarefa melhor da nossa espécie,
Tão cheia de outras que não valem nada.

X

Margarida no entanto ia caminho.
E, ou fosse intenção, ou fosse acaso,
A linda moça um ramo que trazia
De alvas saudades entre os lindo dedos,
Deixa-lho aos pés cair. Quem vos pudera
Pintar o regozijo, o espanto, a glória
Que transluziu de súbito no rosto
................ Já trêmulo se curva,
A apanhar satisfeito a odiosa prenda...
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Quando rubro de cólera e despeito
Pica as esporas, galga de um só lance
O pequeno intervalo, e mais depressa
Do que cruza um fuzil nos turvos ares,
Ou muda de lugar vadia estrela,
Co’a pata do ginete o ramo abafa
E estas palavras furiosas solta:
“Vilão! suspende ou morres!” Amarelo
Como lauda de pública escritura
Que envelheceu, e trêmulo de medo,
O Freire recuou. Desmonta e apanha
As pobres flores; respeitoso as beija,
E com elas adorna as plumas do elmo.
Depois fitando com desprezo o triste
Tabelião, lhe brada: "Se inda ousares
Os olhos levantar àquela dama,
O castigo hás de ter da audácia tua;
Não bárbaro, decerto, que não vale
Tua pessoa a pena de um delito;
Mas ridículo, sim; um tal castigo
Que na memória fique da cidade,
Que as mães contem às filhas casadeiras,
E de eterna irrisão teu nome cubra".
Disse, e montando no corcel que estava
Impaciente de voar à liça,
Dali se foi a largo trote, enquanto
Oposto rumo furioso segue
O abatido rival.

X

Ora, uma noite, após conversa longa,
Freire encostado ao muro, ela à janela,
Naquele doce olvido de si mesmos
Em que toda se envolve a alma encantada,
Após ardentes e trocados beijos,
Trocados... mas de longe, — a bela moça:
"Adeus! (murmura) É tarde; vai-te embora.
Se papai nos descobre, estou perdida.
Foge, meu doce amor; olha, não percas,
Por um instante mais, toda a ventura
Que nos aguarda em breve. Tanta gente
Tem inveja de ti! Não sei, receio;
Fala-me o coração..." — Com voz macia,
Replica o namorado: "Importa pouco,
Ó minha bela Margarida, a inveja
De tão frouxos rivais. Se for preciso,
Eu, que sou tão pacato, a todos eles
Darei uma lição de tanto peso
Que inda depois de mortos e enterrados,
Lhes doerá nas abatidas costas.
Que queres? Minha força és tu; teus olhos
Para mim valem mais que cem espadas.
Com eles na memória, amada minha,
Nada temo na terra; um regimento,
Um touro bravo, cem medonhas cobras,
Uma horda guerreira de tapuias,
Tranquilo afrontarei, se a tua vida,
Se o nosso amor, de os afrontar dependem".

XII

Assim falou o Freire; e despedidos
Um do outro com juras e protestos,
Depois de muitas e bonitas cousas,
Desapareceu a bela Margarida,
Enquanto o resoluto namorado
Para os lares inclina a ousada proa.
Não cuides tu, taful do tempo de hoje,
Que ao toque da alvorada à casa tornas,
Cantarolando uma ária que a Lagrange
Nos desvãos da memória te há deixado,
Que era fácil então, nas horas mortas,
Andar desertas ruas. Treva espessa
O caminho escondia. Gás nem óleo
Os passos alumiava ao caminhante
Que não trouxesse a clássica lanterna. [16]
E lanterna traria um namorado
Que andava às aventuras? Bom piloto
Da cidade natal, lá ia o Freire
Sem muito tropeçar buscando os lares.
Cem quimeras, batendo as asas leves,
Lhe revoam na mente. Ele imagina
Que o velho pai da moça, perdoando
A secreta paixão, lhe entrega a filha
E seu genro o nomeia; que a cidade
De outro assunto não fala uma semana.
Já o casto véu de noiva lhe arrancava
Com as sôfregas mãos...

XIII

                                      Confusas vozes
Ouve subitamente a poucos passos;
Dez vultos surgem, vinte braços se erguem,
E dez golpes de junco lhe desdouram
A descuidada espádua. O pobre Freire,
Para ameigar ou convencer os bárbaros,
Um discurso começa; mas sentindo
A cada frase dez protestos juntos,
A tangente procura das canelas,
E a correr deita pelas ruas fora.
Então, começa a tenebrosa e longa
Odisséia de voltas e revoltas,
Que em suas vastas regiões etéreas
As lúcidas estrelas contemplaram
A rir à solta, a rir de tal maneira
Que todo o espaço foi sulcado logo
De lágrimas brilhantes, — meteoros
Lhes chama a veneranda astronomia.
Ei-lo que volta rápido as esquinas,
Os passos negaceia, aqui descansa,
Ali tenta ameaçar os seus algozes,
Vinte vezes tropeça e cai por terra,
Vinte vezes ligeiro se levanta,
Grita, voa, murmura, implora e geme,
Té que, ofegante de cansaço e medo,
Na lagoa parou da Sentinela.

XIV
Com os ossos moídos, e vexado
Da triste posição em que se vira,
O miserável amador na cama
Foi lastimar os brios e as costelas;
E já nas mãos de um benfazejo sono
O espírito entregava, quando a Ira
Com asas de cor de fogo, lhe aparece,
E deste modo fala: “Que sossego,
Que covardia é essa que te embarga
A voz para punir tamanha injúria
De um rival?... Sim, rival, que em seu desforço,
Dez homens apostou? Pois sabe, ó mísero,
Que o teu futuro do castigo pende;
A sentença que houver punido o infame,
Caminho te abrirá para as venturas
Íntimas, conjugais. Fortuna é dama
Que os corações medrosos aborrece.
Despe a modéstia que te peia os braços;
Vai ao Mustre falar; expõe-lhe a queixa,
E vinga de um só lance o amor e o brio!”

XV

Disse, o teto rompeu, voou no espaço.
Era sonho ou visão? Por largo tempo,
Entre um grupo de pálidas estrelas,
A figura agitara as rubras asas,
Té que se ouviu um singular estrondo
Remoto e prolongado. Ninguém soube
A causa disto, mas afirma um cabo
De ordenanças ter visto alguns minutos
Sobre a Gávea chover enxofre e cinzas.