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O que é o Casamento?/III

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Na casa de HENRIQUE, em Petrópolis.

CENA PRIMEIRA

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ISABEL, CLARINHA, SIQUEIRA e SALES

(SALES entra quando os outros têm chegado do passeio. Formam-se dois grupos separados CLARINHA e SALES – ISABEL e SIQUEIRA)

SALES – Como andam depressa!... Desde Vila Teresa que os sigo sem poder alcançar. Minha Senhora. (Cumprimenta ISABEL.)

CLARINHA – Ora! Por que tomou tanto incômodo!

SALES – Permite que lhe ofereça estas flores?

CLARINHA – O meu médico não permite, não, Senhor: fazem-me dor de cabeça!

SALES – À vista disso condeno-as à prisão. (Esconde no peito.)

CLARINHA – Era melhor que lhes desse a liberdade!

ISABEL – O passeio fatigou-me.

SIQUEIRA – Então já viste o lucro que se tira da política?

ISABEL – Fala comigo, meu pai?

SIQUEIRA – Não leste o jornal de ontem?

ISABEL – Não, já veio?

SIQUEIRA – Estava sobre a mesa. Traz uma correspondência bem forte contra Augusto. Entre outras cousas, diz que ele esbanjou a sua fortuna e de tua filha, e foi obrigado a vender quanto tinha para pagar dívidas de jogo.

ISABEL – Mas, é uma calúnia, meu pai.

SIQUEIRA – Quem o sabe melhor do que eu, Bela, que conheço Augusto, como a mim mesmo? É um homem de bem, na extensão da palavra!

ISABEL – Como lhe há de ter doído, meu Deus! Ver-se insultado assim, e por quê?

SIQUEIRA – Ele já deve estar habituado! São as flores da carreira política.

ISABEL – Não! Só eu sei o que ele terá sofrido.

SIQUEIRA – O melhor é não dar valor a isso! Não vale a pena chorar por tão pouco. Estou arrependido de ter falado nisso.

ISABEL – Por quê? Eu lhe agradeço. Podia não ler o jornal e escapar-me.

SIQUEIRA – Não perdias nada.

ISABEL – É justo que tenha a minha parte nesse desgosto. Não sou eu a causa dele?

SIQUEIRA – A causa?... E de que modo?...

ISABEL – Foi para satisfazer um desejo meu; talvez um capricho, que meu marido vendeu os nossos bens. Se não me fizesse a vontade não o caluniariam agora.

SIQUEIRA – Achariam outro pretexto. Não faltam!

CLARINHA – Meu tio!... O Senhor nunca teve ciúmes de sua mulher?

SIQUEIRA – Como, Clarinha? Não ouvi.

CLARINHA – Pergunto se o Senhor nunca teve ciúmes de sua mulher.

SIQUEIRA – Ah! Estou viúvo há tanto tempo!... A falar verdade, não me lembro.

CLARINHA – Ora! não quer responder.

SALES – O Sr. Siqueira já não entende desta matéria.

SIQUEIRA – Confesso que nunca fiz profissão dela.

CLARINHA – Pois querendo, pode tomar lições com o Senhor Sales.

SALES – Comigo! Ainda estou solteiro!

CLARINHA – Felizmente para sua futura mulher.

SALES – Explique-me a razão, D. Clarinha.

CLARINHA – Não quero ofender a sua modéstia. (A SIQUEIRA) Decididamente não responde?... Meu tio tem na consciência algum pecado...

SIQUEIRA – O de ter querido bem a minha mulher.

CLARINHA – Não se pode querer bem, sem ter ciúmes.

SIQUEIRA – Conforme! Quando se está a merecer, é natural; mas depois que se tem a certeza de uma estima recíproca, me parece até uma ofensa.

SALES – Não concordo!.

CLARINHA – Nós já sabíamos a sua opinião, Senhor Sales, antes do Senhor dizê-la. E tu; Isabel, pensas como meu tio?

ISABEL – Perdoa, Clarinha! Estou tão aflita agora.

CLARINHA – Que foi! O que sucedeu? (Correndo a ela.)

ISABEL – Recebi uma notícia bem desagradável.

CLARINHA – De quem? De Augusto? E não me dizias! (SALES aproveita o momento em que CLARINHA se afasta para deitar no chapéu dela o ramo de flores.)

SIQUEIRA – Não é nada! Uma calúnia anônima contra Augusto.

CLARINHA – Não dês importância a isto! É tudo inveja!...

SALES – Em minha opinião o código só devia admitir o anônimo nas correspondências amorosas...

SIQUEIRA – Essas estão fora da lei. (A ISABEL) Augusto virá hoje?

ISABEL – Estou esperando por ele.

SIQUEIRA – Então não pode tardar.

CENA II

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ISABEL, CLARINHA e SALES

CLARINHA – Está bom! Não quero que meu tio te ache triste!

ISABEL – Augusto!... E este homem aqui!

CLARINHA – Não te importes com ele.

ISABEL – Tu sabes que eu não posso suportá-lo.

CLARINHA – Mas, que te fez ele, que não tens querido dizer-me!

ISABEL – Nada... uma repugnância invencível... Uma dessas antipatias que não se explicam... Não posso vê-lo.

CLARINHA – Espera. (Alto) Senhor Sales!

SALES – Estava admirando esta cabana! É muito poética!

CLARINHA – Pois deixe a cabana tranquila, e faça-me o favor de ir até a Rua do Imperador.

SALES – Com muito gosto. Fazer o quê?

CLARINHA – Fazer-me a vontade.

SALES – A Senhora está gracejando.

CLARINHA – Ora! Por gracejo, não o obrigava a ir tão longe. É muito sério.

SALES – Então não percebo.

CLARINHA – Porque não lhe faz conta. Tenha a bondade de ir até lá e contar quantas janelas tem o Hotel de Bragança. Foi uma aposta que fiz com Henrique e quero ganhar.

SALES – O seu desejo é ordem para mim.

CLARINHA – Por saber disto é que tomei a liberdade.

SALES Quantas janelas a Senhora disse que tinha?

CLARINHA – Não me lembro.

SALES – Então é inútil!

CLARINHA – Não há meio de lhe fazer compreender as cousas. Henrique é teimoso, Sr. Sales, mas acredita no que lhe digo.

SALES – Perdão! Vou imediatamente: hoje mesmo venho lhe trazer a resposta!

CLARINHA – Enfim... O Senhor é muito amável... Mas é escusado vir hoje... Vamos sair.

SALES – Então... será amanhã. (Com intenção) Uma e outra cousa.

CENA III

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ISABEL e CLARINHA

CLARINHA – Estás sossegada?

ISABEL – Tu me prometeste que eu nunca o encontraria aqui; e sem isso não vinha a Petrópolis.

CLARINHA – Henrique e teu marido é que são os culpados. Não há dia em que o não convidem.

ISABEL – Se o tratasses secamente!

CLARINHA – Trato-o como tens visto. Às vezes me aborrece; outras confesso que, na insipidez em que vivo, me serve de divertimento! É tão ingênuo!

ISABEL – Zombas dele, bem sei! Mas tu não vês que esse moço não te compreende, e supõe que o distingues? Não vês que ele só vem aqui por tua causa?

CLARINHA – Reparaste nisto?

ISABEL Não é de agora: quando solteira já ele te fazia a corte.

CLARINHA – Com uma rosa no peito: agora traz-me ramos de violetas. Vai em progresso.

ISABEL – Mas, Clarinha, bastava esse motivo para não consentires que ele frequentasse a tua casa.

CLARINHA – Quem governa aqui? Não sou eu? Henrique tem olhos como tu.

ISABEL – Talvez ainda não tenha percebido.

CLARINHA – Tu percebeste?

ISABEL – Eu sou mulher, Clarinha!

CLARINHA – Qual, Bela. Não é essa a razão. É porque ele me estima.

ISABEL – Porque confia em ti.

CLARINHA – Confiança que se parece tanto com indiferença, não me agrada. Preferia que ele me julgasse uma cabecinha de vento!...

ISABEL – Ah! que não avalias o que agora desprezas.

CLARINHA – Pode ser!... Mas dize!... Que grande merecimento tem uma virtude da minha idade, que não acham muito feia, quando o marido entende que ela é inabalável?

ISABEL – Essa virtude tem o gozo imenso de inspirar a fé e a serenidade n'alma daquele que escolhemos para companheiro de nossa existência. Tem a satisfação íntima que lhe dá a consciência de sua força para resistir a qualquer desvario. O amor que produz o ciúme e as contrariedades, Clarinha, é uma excitação, que passa deixando a fadiga, o tédio e às vezes a dúvida: o amor que vive da confiança é uma afeição calma e doce. Há ocasiões em que parece fugir; mas volta sempre pela atração irresistível das recordações puras.

CLARINHA – Já me disseste tudo isto; mas o que eu sei é que se as perdizes viessem sem cerimônia passear neste jardim, Henrique não teria as tais emoções de caçador!... Pois eu valho menos do que uma perdiz, Bela!

ISABEL – Não estás hoje com o teu bom humor. O que tens?

CLARINHA – O que eu tenho?... Tenho um marido que não se importa comigo. Tenho dezoito anos que não voltarão: e tenho a fraqueza de querer bem a quem não me quer. Achas que é pouco?

ISABEL – Está bom! Tudo isto passa com um abraço de Henrique. Não é Joaquim? Lá... (Aponta.)

CLARINHA – Parece. (Afasta-se.) Estás vendo! O Senhor Sales não fez a gracinha de deixar o seu ramo de flores no meu chapéu!

ISABEL (sem voltar-se) – É a consequência de teus gracejos! Quando te digo quê ele não compreende...

CLARINHA – Não é de admirar! Outros que deviam... (Vai atirar o buquê, cai um bilhete que lê rapidamente e esconde.) Que é isto? (Pausa.)

ISABEL – O que dizias?

CLARINHA (comovida) – Nada; não falei contigo.

ISABEL (chegando-se) – É preciso acabar com este brinquedo! Aquele moço pode te comprometer!

CLARINHA – Oh! Fique descansada! Vai acabar.

CENA IV

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As mesmas e JOAQUIM

ISABEL – Teu Senhor não veio?

JOAQUIM – Veio, sim, Senhora. Ficou na estação.

ISABEL – Ele está bom? Passou bem na cidade? Não achou a casa muito desarranjada, não?

JOAQUIM – Sempre faltava minha Senhora lá; mas ele não sentiu nem um incômodo, não, Senhora. (Apresenta uma cestinha.)

ISABEL – O que é isto?

JOAQUIM – São umas frutas que meu Senhor mandou trazer.

ISABEL – Para Iaiá?

JOAQUIM – Para minha Senhora.

ISABEL – Ah! Ele não se esqueceu de mim!

JOAQUIM – E é isto só?... Quando minha Senhora voltar para a cidade há de ver!... A casa nem se parece!... A sala de minha Senhora está que faz gosto!

ISABEL – Antes não lhe tocassem!... Vivi feliz ali por tanto tempo.

CLARINHA ( a JOAQUIM) – Quem te perguntou por isso? (A ISABEL) Era uma surpresa que Augusto queria te fazer. Agora já não é segredo! Foste tu mesma que escolheste os trastes, a cor do papel, as cortinas, tudo, até as perfumarias!

ISABEL – Estás sonhando, Clarinha; nunca falei de semelhante cousa.

CLARINHA – Deveras! Não te lembras do meu projeto?... E dos conselhos que me deste para arranjar a minha casa?... Pois era da tua, que se tratava!

ISABEL – Que maldade!

CLARINHA (a JOAQUIM) – Já está tudo pronto?

JOAQUIM – Está quase. Hoje foi o armador deitar os retratos.

ISABEL – Quais retratos?

JOAQUIM – O da minha Senhora, o de Iaiá, o de Nhanhã e o de Senhor moço Henrique.

ISABEL – E o dele?

JOAQUIM – O de meu Senhor?... Esse não vi, não, Senhora.

CLARINHA – Quer que tu o peças!... Faceirice desses meus Senhores: gostam de se fazer desejados!

ISABEL (a JOAQUIM) – Dize a Rita que traga Iaiá.

CLARINHA – Joaquim, ouve! Logo que escurecer hás de rondar pela parte de fora desta grade para que ninguém se aproxime. Estão-me roubando as flores.

JOAQUIM – Deixe estar, Nhanhã. Eu descobrirei quem é.

CENA V

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ISABEL e CLARINHA

CLARINHA – Ficas esperando por mano?

ISABEL – E tu por que não esperas também por Henrique?

CLARINHA – Não merece destas finezas! Não se deixou ficar ontem, por lá?... Que venha quando quiser!

ISABEL – Fez mal; porém vinga-te com generosidade. Se o receberes com meiguice, se te mostrares alegre, e carinhosa, ele terá remorsos, e outra vez não passará assim dois dias fora de casa, sem necessidade.

CLARINHA – Não passará dous não! Passará oito! Nada. Este sistema não me serve.

ISABEL – Experimenta-o.

CLARINHA – Há outro melhor!

ISABEL – E não se pode saber?

CLARINHA – Não, Senhora! Também tenho os meus segredos!

ISABEL – Guarda-os: não sou curiosa senão da tua felicidade.

CLARINHA – Não te demores, este jardim é muito úmido. E tu ainda não estás boa...

ISABEL – Quem fechou isto?... (Na porta da cabana.)

CLARINHA – Fui eu! Que vais fazer aí?

ISABEL – Meu chapéu!...

CLARINHA – Ah! Não vi. Toma. (Fecha de novo e guarda a chave.)

CENA VI

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ISABEL e MIRANDA

MIRANDA (cortejando de longe) – Boa tarde, está melhor?

ISABEL – Melhor, muito obrigada. O Senhor passou bem?

MIRANDA – Passo sempre bem na cidade.

ISABEL – Decerto. Está mais tranquilo: não é obrigado a constranger-se a todo momento. Mas foi o Senhor quem exigiu que eu viesse a Petrópolis!

MIRANDA – Perdão! Não exigi. Clarinha convidou-a.

ISABEL – Se eu não percebesse o seu desejo teria vindo?

MIRANDA – Este passeio deve fazer bem à sua saúde: é uma distração. Em companhia da sua prima, ao menos a Senhora não está tão só e tão triste.

ISABEL – A minha tristeza é natural; é gênio. Ninguém já repara nela. Mas o Senhor... Joaquim me disse... Tem feito tantas despesas em preparar a casa.

MIRANDA – Ah! Mandei fazer alguns consertos... Desculpe-me se não a preveni. Pensei que a casa como estava podia trazer-lhe lembranças desagradáveis...

ISABEL – Guardava as mais doces recordações de minha vida! Não importa!... Nela viverei sempre feliz! O que sinto é que tome tanto incômodo por minha causa.

MIRANDA – Não, Senhora. A nossa posição exige uma certa decência, mesmo com sacrifício.

ISABEL – E por que não consente que sua filha tenha uma parte nesses sacrifícios?... A glória de seu nome, os seus serviços, a estima pública que o cerca, não deve pertencer a ela algum dia? Por que não usa de sua fortuna?... Ela é rica!

MIRANDA – Minha filha é pobre... Quanto a essa fortuna, acredite-me, não a coloque nunca entre nós ambos... Se a felicidade de uma menina, e a sua honra, Senhora, só pudessem ser compradas por tal preço... Não teria a força.

ISABEL – E tem a força de se ver caluniado, de ver pesar sobre a sua probidade uma suspeita infame! Quando podia destruí-la com uma palavra!

MIRANDA – Injúrias anônimas! Quem está livre delas?... Ah! Se fossem esses os espinhos de minha vida! Cuida que ainda resta sensibilidade para esses pequenos dissabores nas almas devastadas pelas grandes dores!

ISABEL – Se eu pudesse restituir-lhe a felicidade a custo de minha vida inteira... Mas tenho medo de morrer deixando-lhe essa ideia... É o que ainda me tem conservado neste mundo. Nunca, até hoje, o Senhor me quis ouvir uma palavra...

MIRANDA – Para quê?... É melhor não revolver esta cinza... seria mais uma humilhação para ambos, para o iludido, e para o que iludisse.

ISABEL – Senhor!... Sinto que pouco tenho a viver!... O que eu lhe digo agora, direi com meu último suspiro, quando Deus já não deixa mentir!... Sou inocente!...

MIRANDA – E eu não o sei?...

ISABEL – Ah!...

MIRANDA – A todo o momento o repito a mim mesmo... Estou ouvindo sempre, sempre, dentro de minha alma, essa palavra que já me disse uma vez... E quero crer... quero enganar-me a mim mesmo! Mas... não posso!

ISABEL – Há em tudo isto um mistério que me condena!... Mas acredite! uma mulher criminosa, por mais vil que fosse, não vivia assim atada à sua vergonha, e esmagada por esse desprezo tão cruel, que a procura colocar a cada passo em face de um homem ridículo, que supõe seu amante! Oh! essa coragem só a dá consciência pura.

MIRANDA – Tenho-a feito sofrer muito! Por que não me deixou a mim só esse martírio!...

ISABEL – Não cumpro o meu dever?

MIRANDA – Dever!... A Senhora não tem deveres para comigo!

CENA VII

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Os mesmos e ALVES

ALVES – Permissão para um viajante!

MIRANDA – Oh! Alves!... Quando chegaste?

ALVES – Esta manhã. (A ISABEL) Minha Senhora! Soube agora que estavas aqui!

MIRANDA – Foste feliz na tua viagem? Gozaste sempre saúde?

ALVES – Por esse lado não tenho razão de queixa. Passa-se perfeitamente em Minas: mas os negócios não correm bem.

MIRANDA – Creio que agora correm mal por toda a parte.

ALVES – É verdade!... Mas, por lá não fazes uma ideia... Vai para um ano, hás de te lembrar, que ando nas minhas cobranças, e de oitenta contos de réis não cheguei a arrecadar vinte!.

MIRANDA – Não desanimes por isso! Continua a trabalhar, e espera por melhores tempos.

ALVES – Sim; porém os meus credores, a quem passei letras ao prazo de um ano, não esperam mais! Meu sócio já me escreveu, participando-me isso, e eu não sei o que fazer... Acho-me como vês numa situação bem crítica.

MIRANDA – Realmente para um homem do teu caráter a posição é terrível. Faltar aos seus compromissos. ALVES – Ver declarar-se a falência da sua casa, e apesar de sua boa fé, fica sujeito a suspeitas injustas! Isso tem-me feito sucumbir! O prejuízo enfim, vá feito. Tenho forças para suportar a pobreza.

MIRANDA – Oh! A pobreza não assusta aos homens honestos. Dá-lhes estímulo ao contrário. Mas, dize-me que posso eu fazer em teu favor?

ALVES – Obrigado por esta palavra! Não esqueci o oferecimento sincero que me fizeste na ocasião de minha partida; mas, se não o lembrasses, não teria ânimo.

MIRANDA – Sim, eu te disse que podias recorrer a mim, no caso de qualquer embaraço...

ALVES – É o que eu faço e com bastante acanhamento. Nestes negócios vexo-me mais em dirigir-me a um amigo, do que a um estranho, a quem obrigo a minha firma, e não o meu reconhecimento.

MIRANDA – Não devias ter acanhamento comigo. A minha fortuna estava toda à tua disposição...

ALVES – És um verdadeiro amigo.

MIRANDA – Atende! Não mereço os teus elogios. O que eu te oferecia há um ano não o posso agora.

ALVES – Perdeste a fortuna?

MIRANDA – Não a tenho.

ALVES – Mas tuas propriedades, tuas apólices.

MIRANDA – Vendi-as todas.

ALVES – E o produto?

MIRANDA – Não sei!...

ALVES – Roubaram-te?...

MIRANDA – Não.

ALVES – Mas como se consome assim mais de cem contos de réis em um ano!...

MIRANDA – A vida é cara na atualidade... A política faz descuidar os negócios... Mil cousas que fora longo dizer!

ALVES – Ah! Desculpa-me! Vejo que te incomodo!

MIRANDA – Não! O que sinto é não poder servir-te.

ALVES – Por isso não deixaremos de ser amigos... Nada valho e agora menos; mas sou sempre o mesmo: na fortuna como na adversidade. Ao menos a franqueza acharás sempre em mim.

MIRANDA – Agradeço-te. Se alguma vez recorresse aos meus amigos, não lhes faria a injúria de duvidar de sua palavra; nem exigiria deles os motivos de seu procedimento. Há reservas que se respeitam.

ALVES – Acabemos com isso, Miranda. Perca-se tudo embora; mas o que eu não quero perder é a tua amizade.

ISABEL – Senhor Alves.

ALVES – Perdão, minha Senhora.

ISABEL – Atenda-me um instante. Eu lhe explico!

ALVES – Não é necessário.

ISABEL – Não posso deixar que o Senhor conserve uma queixa de seu amigo e por minha causa... Foi um erro meu; as mulheres são às vezes tão imprudentes...

MIRANDA – Não se trata disso agora.

ISABEL – Tive a fraqueza de falar na riqueza de meu pai, uma vez que meu marido não quis satisfazer um capricho meu, uma extravagância... Ele perdoou-me; mas jurou que não tocaria nessa fortuna... Compreende agora... um escrúpulo... uma susceptibilidade... Dele pois, ou de mim, aceite, Senhor Alves.

ALVES – Não devia duvidar de ti!... (A ISABEL) Eu admiro e agradeço, minha Senhora. Mas não posso aceitar sem o consentimento de Miranda. (Entra HENRIQUE.)

MIRANDA – Ela pode dispor livremente do que lhe pertence, Alves.

ISABEL – Ouve? Não deve recusar.

ALVES – Mas, D. Isabel, eu tenho escrúpulos... Luto com embaraços; posso ser infeliz, e causar-lhe graves prejuízos.

ISABEL – Que importa!... Então deverei tudo a meu marido. É um orgulho de mulher, Senhor Alves. ALVES – Pois bem, se for absolutamente necessário, aceitarei. Vou amanhã à Corte! verei o estado dos meus negócios e me resolverei.

CENA VIII

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Os mesmos e HENRIQUE

HENRIQUE – Oh! Estás de volta enfim.

ALVES – É verdade! E venho achar-te casado e feliz. O que são protestos de homem solteiro! (A MIRANDA) Na véspera de minha partida disse-me que nunca se casaria; e isso com um tom que me Convenceu.

MIRANDA – E um mês depois estava casado!

HENRIQUE – Todos fazemos o mesmo. Quando se protesta é porque já o negócio está decidido.

ALVES – Fizeste bem; o casamento é uma necessidade.

HENRIQUE – Aos trinta anos: antes é um luxo. (Vão se afastando.)

ALVES – Estarás arrependido?

HENRIQUE – Não! Minha mulher vive satisfeita de seu lado, eu gozo de toda a liberdade... Nem um aborrece ao outro. Compreendemos o casamento, não achas?

ALVES – Teu tio me parece que o compreende de outra maneira!

HENRIQUE – Temos gênios tão diferentes! Já sei que ficas conosco alguns dias.

ALVES – Não posso nem passar a noite aqui; tenho que pôr em ordem as contas de minhas cobranças para amanhã seguir. (Afastam-se.)

MIRANDA (a ISABEL) – Obrigado, Senhora. (Aperta a mão.)

ISABEL – Me agradece, meu Deus!... Mas eu sinto não possuir outra fortuna para ter a felicidade de perdê-la, Senhor!

CENA IX

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ISABEL e CLARINHA

(No fundo do portão vê-se HENRIQUE, AUGUSTO e ALVES.)

CLARINHA – Bela!... Não viste Henrique?

ISABEL – Está aí conversando com o Senhor Alves.

CLARINHA – Não sei quem é?

ISABEL – Um amigo de Augusto. Vamos ter com ele?

CLARINHA – É o que faltava!... Chegou depois de dois dias e ainda nem me procurou!...

ISABEL – Chegou agora mesmo!... Olha! ali vem ele.

CLARINHA – Deixa-me só! Se estiveres aqui, ele nada me dirá!

ISABEL – Tens razão. (A meia voz a HENRIQUE) Clarinha está zangada: abraça-a.

HENRIQUE – Adeus, Clarinha!

CLARINHA – Ah! Já não o esperava!

HENRIQUE – Também era demais. Duas noites pode-se passar fora de casa, porém três... Era um escândalo!

CLARINHA – Ora! que tinha isso! Podia se divertir! Não reparo nestas cousas.

HENRIQUE – Então não está zangada comigo?

CLARINHA – Zangada por quê? Não nos casamos para aborrecermo-nos todos os 365 dias do ano... Divertiu-se muito?

HENRIQUE – Nem por isso!... Perdi o meu tempo e o melhor perdigueiro.

CLARINHA – Que desgraça!... Pois nós brincamos e passeamos muito. Mano ficou na cidade; porém o Senhor Sales fez-nos sempre companhia. Esteve muito amável.

HENRIQUE – Faço ideia! Quantas vezes falou da viagem à Europa?

CLARINHA – Uma vez só! Não sabes! Confessou-me que tinha feito essa viagem por causa de um desgosto que sofrera. Um casamento... Não sei o quê!...

HENRIQUE – Estou muito fatigado para ouvir agora as histórias de Sales, Clarinha. Manda-me preparar alguma cousa para jantar... Venho morto de fome e de sono.

CLARINHA – Pode dormir estes dois dias... Amanhã temos um passeio ajustado para a Cascatinha; a casa fica bem sossegada. Ah! Guarda-me esta chave! Não perca!

HENRIQUE – Que passeio é esse tão fora de propósito?

CLARINHA – Já convidei Bela, o tio Siqueira, e o Senhor Sales. Cuidei que não viesse hoje.

HENRIQUE Se eu soubesse disso decerto que não vinha cá.

CLARINHA – Foi pena!... Quando quiser, chame Augusto e venha jantar. (Sai correndo, e deixa o lenço com o bilhete de SALES, que HENRIQUE apanha.)

CENA X

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MIRANDA, HENRIQUE, ISABEL e IAIÁ

(ALVES despede-se no fundo e sai. MIRANDA dirige-se a HENRIQUE, enquanto ISABEL recebe de RITA a menina e senta-se com ela à porta.)

ISABEL (a RITA) – Podes ir. (A IAIÁ) Vamos ver papai!... Minha filha há de dizer que teve muitas saudades de Papai! Diga sim! Para Mamãe lhe querer bem!...

MIRANDA (Vendo o papel que HENRIQUE lhe apresenta) – Que papel é este?

HENRIQUE – Leia! (ISABEL atende.)

MIRANDA – Está tão escuro já!... (Lendo) "Se me ama..

espere-me ao escurecer... na...

HENRIQUE – Na cabana do jardim!... Ah!... (Aponta.)

MIRANDA – Mas que é isto?

HENRIQUE – Uma carta de amor! Não vê?

MIRANDA – Onde a achaste?

HENRIQUE – Neste lugar: ela deixou-a cair quando saiu!

MIRANDA – Ela quem?

HENRIQUE – Não adivinha?... Minha mulher!

MIRANDA – É impossível, Henrique!

HENRIQUE – O seu lenço, veja.

MIRANDA – Conheces esta letra?

HENRIQUE – Perfeitamente! É do Sales. (ISABEL corre para a casa.)

CENA XI

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HENRIQUE e MIRANDA

MIRANDA – Do Sales?...

HENRIQUE – É verdade!... Um ente desprezível!

MIRANDA – Esta carta será realmente para tua mulher, Henrique... Quem sabe!

HENRIQUE – Eu vi-a cair. Ela a tinha no seio.

MIRANDA – Que fatalidade, meu Deus!

HENRIQUE – Se ouvisses o que me dizia há pouco, não duvidarias. Traía-se sem querer... O nome desse homem lhe vinha constantemente aos lábios! A infame!... Cuspia-me na face a desonra!... Mas enganou-se! (Deita dois quartos de bala nos canos da espingarda.)

MIRANDA – Que vais fazer?

HENRIQUE – O miserável não tarda!... Se ele vier... Se o esperar... Tenho dois tiros e a minha honra salva!

MIRANDA – A honra não se discute!... Mas, Henrique, tens a certeza de que tua mulher seja criminosa?

HENRIQUE – E estas provas?

MIRANDA – Não bastam.

HENRIQUE – E se ela vier?

MIRANDA – Ainda assim! Pode não ser criminosa; pode cometer apenas uma falta, uma falta bem grave não nego! Porém a tua consciência está calma e tranquila neste momento?... Não te acusa ela de teres deixado entregue às suas próprias forças sem apoio e sem proteção a virtude de uma menina inexperiente?... Responde! Se cumpriste o teu dever, cruzo os braços e calo-me.

HENRIQUE – Não há razão que justifique semelhante falta, meu tio!

MIRANDA – Decerto nada a justifica. Mas qual é a razão que justifica o marido que trai seus deveres?

HENRIQUE – Há uma grande diferença...

MIRANDA – Sei o que pretendes dizer! Não é dessa fidelidade material do homem, que eu falo. O nosso grande dever é o de proteger e fazer a felicidade da mulher que nos sacrificou tudo, que é a mãe de nossos filhos, e a companheira inseparável da nossa existência. Como procedemos nós depois que passam os primeiros gozos de um amor partilhado? Voltamos às ocupações habituais. No nosso orgulho de homens, entendemos que a inteligência da mulher não pode acompanhar-nos nessa porção mais importante de nossa vida, e só deve ocupar-se dos arranjos domésticos, das modas e dos bailes. Deixamos no isolamento esses entes fracos a quem arrancamos da casa de seus pais, às festas da família, à ternura materna, às afeições dos seus!... Gastos pelos amores fáceis nem um se lembra que a alma, ainda virgem, de sua mulher, tem necessidade de viver!... Esquecemos enfim o tesouro que nos foi confiado, e cujo valor só sentimos nos momentos de sua perda!

HENRIQUE – Nunca deixei de amar Clarinha... Tinha toda a confiança nela, e supunha que era feliz...

MIRANDA – Caíste no erro de todos os maridos. Não associaste completamente tua mulher à tua vida, não a interessaste nos teus projetos e sonhos do futuro... Não há nada que a mulher não compreenda pelo coração; nas cousas as mais áridas, elas acham o encanto que dá o amor e a imaginação. Tu gostas da caça, por exemplo. Se Clarinha partilhasse contigo, mesmo de longe, as tuas emoções e os teus prazeres, não se julgaria abandonada quando a deixas por este passatempo. O seu espírito te acompanharia.

HENRIQUE – É noite!... Eu lhe peço... Retire-se!

MIRANDA – Quando estiveres mais calmo.

HENRIQUE – Agora, perdoe-me, não o atendo.

MIRANDA – É agora que me deves ouvir!

HENRIQUE – Deixe-me só!...

MIRANDA – Não!... Não posso deixar-te nesse estado.

HENRIQUE – Pois bem, fique! Mas não me contenha... Há ocasiões em que o homem não se domina.

MIRANDA – Uma última vez, Henrique...

HENRIQUE – É debalde... A minha resolução está tomada! (HENRIQUE arma a espingarda. AUGUSTO medita.)

MIRANDA (lento) – Vou te revelar o segredo de um amigo. Também ele amava sua mulher, também ele cometera o mesmo erro. Recolhendo-se alta noite, entrou na sala no momento em que um homem que ele não pode conhecer se despedia de sua mulher e saltava pela janela.

HENRIQUE – Que fez ele?...

MIRANDA (idem) – Chorou a sua felicidade perdida. Agarrou uma arma como agora fizeste... Uma menina... sua filha, balbuciou seu nome, e salvou-os a ambos!... Salvou-os da morte, mas que vida, Henrique! A sociedade, a reputação impôs a estas duas criaturas um suplício horrível! Viveram no mesmo teto, odiando-se ou desprezando-se. (Anima-se) Desprezando-se? Não!... Porque o marido amava a mulher culpada! E como nunca a amara... Amor odiento, paixão vergonhosa, que o rebaixava aos seus próprios olhos, Que tortura, Henrique!

HENRIQUE – Não sucederia isto, se tivesse seguido o seu primeiro impulso!

MIRANDA – E quando ele visse essa mulher que julgou criminosa dar o exemplo da virtude a mais austera! Quando visse o heroísmo e a dignidade com que essa alma nobre suportou todas as afrontas; não estremecia lembrando-se que podia ter assassinado a inocente? Oh! Quantas vezes depois de a haver insultado vilmente, não estive quase lançando-me a seus pés, e pedindo-lhe perdão!...

HENRIQUE – Que diz? O Senhor?

MIRANDA – Eu?... Disse eu?... Falava-te como esse amigo me falou... Ele duvidava!... Que provas tinha? Sua mulher guardava o silêncio, é verdade! Mas, não havia nisso algum mistério?... Demais também sentia-se culpado! Aquela primeira falta foi irreparável? Quem sabe se ela não é pura ainda e se não houve precipitação em cavar o abismo que nos... que os separa!... E agora... Henrique, julgas que seja impossível? (ISABEL aparece do lado da cabana.)

HENRIQUE – Silêncio!... Não ouve? Ali por entre as árvores... 0 seu vestido!... Não é?

MIRANDA – Espera! Cuidas que apesar de tudo esse homem de quem te falei tinha o direito de matar sua mulher?... Onde vais?

HENRIQUE – Não me siga, meu tio! Se me preza não se coloque entre mim e a minha honra.

MIRANDA – Não consentirei nunca, Henrique! (HENRIQUE foge entre as árvores. MIRANDA corre a ISABEL.)

CENA XII

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ISABEL e MIRANDA, (depois CLARINHA)

ISABEL (dirige-se à cabana em voz baixa) – Clarinha!... (Na porta da cabana) Clarinha!...

MIRANDA (á meia voz) – Não se perca!... Seu marido, Clarinha.... (Ouve-se um tiro. ISABEL cai nos braços de MIRANDA que a tem arrebatado.)

ISABEL – Ah!...

MIRANDA – Minha mulher!...

ISABEL – Ouvi a carta... Era preciso salvar..

MIRANDA – A quem?... A seu amante?...

ISABEL – Por que não me deixou morrer! (CLARINHA aparece.)

CLARINHA – Que foi isto? Ouvi um tiro!

MIRANDA – Nada! Henrique descarregou a espingarda e... e... ela assustou-se.