Pensar é preciso/VI/O surgimento das línguas neolatinas: a lírica trovadoresca e os cantos épicos
O surgimento das línguas neolatinas: a lírica trovadoresca
Outro fator fundamental para o início do renascimento foi o surgimento das línguas neolatinas, também chamadas românicas ou modernas, em oposição às línguas clássicas ou mortas (grego e latim). A maior parte dos povos europeus, a partir do séc. I a. C., foi obrigada a aprender a língua dos conquistadores romanos, que impuseram o latim em todas as regiões por eles colonizadas. Tal fenômeno é comum, pois o fator cultural geralmente está na dependência do poder militar e econômico. Aconteceu não apenas com o império romano, mas, sucessivamente, com o poderio espanhol, francês e britânico. Hoje, estamos sob a égide do imperialismo norte-americano, que nos obriga a estudar a língua inglesa elevada à condição de língua internacional.
Com a decadência do império dos Césares, no séc. V d.C., não havendo mais a pressão de Roma sobre suas colônias, os povos que habitavam a península ibérica e italiana e o centro da Europa iniciaram um longo processo de diferenciação de suas falas, afastando-se da língua do antigo dominador. A língua latina, que permanecera o idioma oficial da igreja católica e das instituições públicas, já não sendo mais falada pelo povo, começa a ceder lugar aos dialetos regionais, que vinham se afirmando por força do substrato (os dialetos locais anteriores à imposição da língua dos romanos) e do superstrato lingüístico (os dialetos dos bárbaros e dos árabes, que passaram a ocupar os territórios dos latinos).
O processo de formação das línguas nacionais durou, aproximadamente, seis séculos, devido ao isolamento regional e ao predomínio da religião cristã que conservava e universalizava o uso do latim (o que tenta fazer até hoje!). Somente depois da virada do primeiro milênio começaram a aparecer documentos escritos em francês, italiano ou galego. Os fatores do substrato e do superstrato explicam as diferenças entre as várias línguas modernas, enquanto a descendência do mesmo cepo, o latim, que é a língua-mãe, dá conta das semelhanças.
Os primeiros documentos numa língua românica foram escritos no francês falado na região da Provença, a langue d’ oc. E, como nas origens de qualquer língua, estão registrados em versos, pois a poesia (a linguagem infantil e natural) vem sempre primeira do que a prosa (a língua da maturidade, regulada pela gramática). A poesia provençal é chamada também trovadoresca, de “trovador” (do latim trobare, que deu o italiano trovare = encontrar), o poeta que encontrava a rima certa. Do Sul da França os trovadores se espalhavam pelas cortes da Europa, prestando sua vassalagem às damas em versos do mais puro lirismo. O tema recorrente é a aspiração a um amor impossível, pois a dama cantada geralmente é uma senhora casada e de condição econômica bem superior à do menestrel. A poesia trovadoresca apresenta uma concepção revolucionária do amor, ao mesmo tempo espiritual e adulterino, nunca antes vista na literatura ocidental.
Tal temática tem instigado os estudiosos, que formularam várias teses na tentativa de explicar essa contradição. A hipótese mais sugestiva é que a mulher amada é considerada um ideal inalcançável por representar a soma das virtudes que ultrapassam o desejo sexual, material. A namorada do trovador seria o símbolo da Grande Mãe partenogenética, que dá à luz sem a intervenção do macho, constituindo o princípio estável em que o homem se refugia, especialmente quando se sente acossado pelas dificuldades da vida. A união espiritual do trovador e de sua amada seria a reconstrução do mito ancestral do ser bissexuado, chamado de andrógino ou hermafrodito, que existiria no mundo antes de Júpiter separar o elemento masculino do feminino, com o fim de enfraquecer o ser humano. E, sendo a mulher amada casada com um homem poderoso, o desejo de um amor adúltero, mesmo fisicamente irrealizável, não deixa de ser uma revolta contra o autoritarismo machista, simbolizado pelo marido, pai, governante, personificado no mito grego de Júpiter, como vimos anteriormente.
A poesia provençal influenciou as composições líricas de outras regiões da Europa. Na língua portuguesa, a “cantiga de amor” é que melhor espelha o rebuscamento da poesia trovadoresca. Mas, paralelamente à imitação da poética que vinha do Sul da França, os poetas galego-portugueses cultivaram também formas poemáticas autóctones: o lirismo paralelístico e simbólico da “cantiga de amigo” e os versos realísticos e satíricos da “cantiga de escárnio”. As produções poéticas medievais da península ibérica, de 1200 a 1350, de autoria de Dom Dinis, Martim Codax e Pero Meoro, entre outros, foram conservadas no Cancioneiro da Ajuda, da Biblioteca Nacional de Lisboa e da Biblioteca do Vaticano, em Roma.
Mas o maior poeta lírico da época medieval foi o italiano Francesco Petrarca (1304-1374) que superou a herança do trovadorismo, tornando-se um mestre de poesia pela criação do chamado “doce estilo novo”. Abolindo o formalismo dos poetas de inspiração provençal, ele ensinou a adequar as palavras ao sentimento, expressando o que realmente o poeta sente por dentro. Nas duas coletâneas, As Rimas e Os Triunfos, o grande poeta florentino exprime a antítese entre as aspirações ascéticas, próprias da mundividência medieval, e as seduções mundanas do início da renascença. Seu modo de fazer poesia, chamado de “petrarquismo”, influenciou a produção lírica da posteridade. Camões, o maior poeta lírico da renascença portuguesa, muito lhe deve.
A formação das nacionalidades européias: os cantos épicos
Além da poesia lírica, a segunda fase da idade Média nos deixou o registro de filões de ficção narrativa transmitidos oralmente, ao longo de muitos séculos: o ciclo bretão, centrado sobre a figura do Rei Artur e os cavaleiros da Távola Redonda, na Inglaterra; o ciclo carolíngio, em torno de Carlos Magno e os Paladinos da França; El cantar de mio Cid, na Espanha; a Canção dos Nibelungos, na Alemanha. Trata-se de histórias fantásticas criadas pela imaginação popular sobre os heróis que contribuíram para a formação das várias nacionalidades. Não havendo ainda uma língua escrita, as façanhas eram narradas em versos, para uma melhor memorização e transmissão de pai para filhos. Segue uma breve apresentação desses poemas, relevando sua importância para a tradição cultural e a formação das principais nacionalidades européias. Se a poesia lírica medieval tratava do tema do amor, o canto épico e a novela de cavalaria têm por assunto principal a luta patriótica. Mas os dois motivos se entrelaçam, pois amor e guerra andam sempre juntos.
A Demanda do Santo Graal: a epopéia britânica e o espírito medieval
A lenda sobre o “Santo Graal” (vaso) remonta a José de Arimatéia, o discípulo de Jesus que recolheu num cálice as últimas gotas do sangue de Cristo e colocou o corpo do crucificado no túmulo, razão pela qual foi perseguido e aprisionado pelos judeus. Ele teria sido visitado por Jesus na prisão e libertado por Vespasiano, depois que este foi curado de lepra, envolto no véu da Verônica, a mulher de Jerusalém que enxugou o rosto de Cristo. Esta lenda deu origem à devoção do Santo Sudário, imagem de Jesus ainda conservada na Catedral de São Pedro, em Roma. (Olhem a anacronia: Vespasiano foi Imperador no decênio 69-79 depois de Cristo, quando José de Arimatéia devia estar... bem velhinho!). Enfim liberto, José instituiu a confraria do Graal, com o fim de guardar a santa relíquia do sangue de Cristo. Depois de sua morte, um cunhado teria levado o Santo Vaso, junto com seus doze filhos, para a Inglaterra.
A lenda cristã acerca do Graal se cruza com a vida do lendário rei de Gales, Artur, que viveu entre o séc. V e VI. A figura do rei Artur como herói nacional está ligada à resistência dos celtas contra os anglo-saxões. Ele teria apaziguado as tribos rivais e conferido unidade nacional ao povo britânico, sob a égide do Cristianismo, de forma semelhante ao que fizera Moisés com tribos hebraicas e fará Maomé, um século depois, com tribos arábicas.
Sobre o assunto, na França e na Inglaterra, se divulgaram vários cantos de amor e guerra que, após uma longa tradição oral em versos, deram origem às novelas de cavalaria em prosa, traduzidas em várias línguas modernas, a partir do início do séc. XIII. A matéria da Bretanha constitui um vastíssimo complexo de textos, em versos e em prosa, que narram aventuras mirabolantes. Além do rei Artur, personagens importantes são os heróis Percival, Boors e Galaaz, o traidor Lancelot que arrebata a noiva do bondoso Artur, Tristão e Isolda. Apenas para saborear a forma e dar uma idéia do conteúdo da Demanda do Santo Graal, transcrevo um trecho do episódio “A Tentação de Galaaz”, quando o jovem herói, cavaleiro andante, junto com o amigo Boors, chega ao castelo do rei Bruto e recebe hospedagem:
“E depois que estavam dentro e foram desarmados, o rei os fez assentar perto de si e fez-lhes muita honra e começou a perguntar de seus feitos. E eles lhe disseram um pouco de algumas coisas. E a filha do rei Brutos, que era muito formosa, olhou muito tempo Galaaz e pareceu-lhe tão formoso e tão bem feito, que o amou entranhadamente, como nunca amou tanto nada do mundo, que não tirava dele os olhos; e quanto mais o olhava, mais gostava dele e mais o amava”.
O texto continua narrando que a mocinha, de noite e apenas de camisola, entra no quarto do jovem herói e se deita na cama junto dele. Mas, ao passar a mão pelo corpo para despertá-lo, percebe que ele usava a “estamenha”, uma malha que funcionava como cinto de castidade. Mesmo assim queria que o jovem fizesse amor com ela, caso contrário ela se mataria. Galaaz não acreditou na ameaça e não cedeu ao apelo erótico da mocinha. E ela, não suportando o sentimento de rejeição, trespassa seu corpo com a espada de Galaaz.
Do ponto de vista da coerência interna à própria obra, podemos apontar vários elementos de inverossimilhança no texto em tela, especialmente na caracterização da personagem feminina: uma paixão repentina e tão violenta não é admissível numa mocinha de apenas quinze anos; o impulso amoroso é sem motivo, pois o jovem herói nem sequer olhara para ela; a moça nem teria a força física suficiente para empunhar a espada enorme e fazê-la penetrar no corpo inteiro, do peito até às costas; a espada nem sequer estava no quarto de Galaaz, pois, conforme está dito acima e seguindo as normas do código da cavalaria, a arma foi deixada na casa das armas, na entrada do castelo. Como se vê, o princípio da verossimilhança (a arte parecida com a realidade), que era o preceito fundamental da estética clássica, não é tido em conta pela arte medieval. Não existe mais racionalidade, bom senso, equilíbrio, meio termo. O ser humano é visto ou como um anjo ou como um demônio.
Tal mentalidade medieval é expressa teoricamente pela doutrina do pensador religioso Maniqueu (216-277), também chamado de Mani ou Manés), oriundo de uma seita da Mesopotâmia, também ele crucificado por pregar uma nova doutrina de salvação e se achar outro profeta. O fundador do Maniqueísmo admitia uma perpetua luta entre o princípio do Bem (Deus, o espírito) e o princípio do Mal (o Diabo, a matéria). Os dois princípios seriam antagônicos e irredutíveis, constituindo um Dualismo Cósmico que explicaria a oposição entre a alma e o corpo, a luz e as trevas, o amor e o ódio, a bonança e a tempestade. A igreja de Roma, evidentemente, condenou a doutrina maniqueísta, pois não podia admitir a coexistência de dois seres absolutos, independentes na sua origem. Mas persistem as perguntas: se o Diabo existe, por quem ele foi criado? Se foi um anjo que se rebelou, por que Deus lhe deu tanto poder? Como conciliar a existência do mal, do sofrimento de criaturas inocentes, face à imensa misericórdia divina?
Na verdade, o dualismo cósmico é uma configuração mental de arquétipos do comportamento humano, existentes antes e depois da teoria do agnóstico Mani. Encontramos tal dualismo nos mitos cosmológicos de Urano (Céu) e Gaia (Terra), na oposição apolíneo vs dionisíaco, nos personagens bíblicos de Abel e Caim, na postura opositiva da estética clássica e romântica, no estudo das profundezas da psique humana, onde Freud diferencia o “id” (a força do instinto individual) do “superego” (o poder das injunções sociais). Felizmente, o pai da Psicanálise encontra uma síntese entre a oposição do código da natureza vs o código cultural: é o “ego”, o eu consciente, que medeia entre os dois extremos, propiciando o equilíbrio ao ser humano. É a inteligência que faz a diferença!
La Chanson de Roland: a epopéia francesa.
Em 778, poucos anos antes do rei da França, Carlos Magno, ser coroado Imperador pelo papa de Roma, houve uma expedição militar na Espanha para lutar contra Marsílio, emir da cidade de Saragoça, tomada pelos muçulmanos. Ao redor deste fato histórico, a imaginação popular foi criando lendas que exaltavam o valor dos paladinos da França, especialmente de Roland, o mais valente guerreiro. Após uma tradição oral de mais de três séculos, os cantos épicos foram juntados num único poema. O manuscrito original, de autoria desconhecida, remonta ao ano de 1170. Mas ficou obliterado por longos séculos. Descoberto em 1832, na época do Romantismo, quando se buscavam e exaltavam as origens das várias nacionalidades dos povos europeus, o texto começou a ser estudado e editado. Eu utilizo a tradução em língua portuguesa, calcada sobre o manuscrito de Oxford.
No início da trama, o exército de Carlos Magno está sediado em território espanhol. O mouro Marsílio envia ao Rei da França um embaixador propondo sua retirada em troca de valiosos presentes e da promessa de conversão ao Cristianismo. Numa reunião no acampamento militar, os principais líderes franceses, com exceção do herói Roland, aceitam a proposta de paz e enviam Ganelão, cunhado de Carlos Magno a Saragoça para selar o pacto. Mas Ganelão, invejoso da glória de Roland, trama sua morte, aconselhando o Rei a voltar com o grosso do exército para a França, deixando apenas Roland e um grupo de paladinos na retaguarda.
O punhado de franceses é atacado por milhares de muçulmanos no estreito de Roncesvales, nas montanhas dos Pirineus. Apesar da heróica resistência, os franceses são massacrados, pois Carlos Magno, avisado da traição pelo som da corneta de Roland ferido, não chega a tempo. Segue a vingança e o castigo: o exército cristão massacra todos os soldados muçulmanos, conquista Saragoça, obriga seus habitantes a receberem o batismo e retorna a Aix, a cidade francesa sede do Império, onde Ganelão é julgado e condenado à morte por esquartejamento.
Este é o resumo da fábula do poema La Chanson de Roland. Mas a história é outra. A literatura, como a religião, não está preocupada com a realidade histórica ou científica. A arte e a fé são frutos da imaginação, que cria mundos fantásticos. Apontamos algumas discrepâncias entre o mito e a realidade: quem libertou a cidade de Saragoça do domínio muçulmano não foi o rei francês Carlos Magno, mas Afonso I de Aragão, em 1118; a expedição francesa não durou tanto tempo e acabou com a derrota e não com a vitória de Carlos Magno; o número dos componentes dos exércitos, de um lado e de outro, é exagerado (centenas de milhares de soldados!); os cristãos bascos são transformados em muçulmanos; o maravilhoso cristão apresentado na obra é uma repetição de passagens da Bíblia ou do Corão: o arcanjo Gabriel, que já apareceu a Moisés, à Virgem Maria e a Maomé, aparece também na hora da morte do herói Roland, levando sua alma para o céu; o rei Carlos, como fizera Josué, pede a Deus que pare o sol para retardar a chegada da noite e dar-lhe tempo para matar todos os infiéis em Roncesvales; os episódios bélicos são misturados com assuntos familiares e amorosos: o herói Roland é visto como sobrinho do rei da França, tendo como noiva a bela Aude, que morre de dor ao saber da morte do amado, antecipando o mito shakespeariano de Romeu e Julieta.
Portanto, mais do que um episódio histórico, a epopéia francesa deve ser vista como a exaltação de um conjunto de valores ideológicos que vigoraram na Idade Média e formaram o ideal da instituição da Cavalaria: a defesa da religião cristã, o patriotismo, o sentimento de honra e de amizade, do amor idealizado. É por isso que a figura de Roland se tornou um mito e transcendeu os limites da França, com os nomes eufônicos de Rolando ou Orlando. Sua fortuna se manifesta principalmente na Itália renascentista, quando se retoma o gênero da poesia épica greco-romana, tingido dos matizes do romance cavalheiresco. Ludovico Ariosto, retomando o poema inacabado Orlando Apaixonado, de Matteo Boiardo, escreveu a obra imortal Orlando Furioso, de que Camões imitou a estrutura rímica para a composição dos Lusíadas. Outro poema do gênero épico-cavalheiresco é Jerusalém Libertada, de Torquato Tasso.
Poema del Cid: a epopéia espanhola.
O Cid (em árabe “Senhor”, com o apelido “Campeador” = campeão) está à Espanha como Roland à França: são os dois heróis-símbolos das respectivas nacionalidades. O elemento de convergência é a luta dos cristãos contra os mouros. Mas há profundas diferenças entre os dois personagens. Enquanto Roland é uma figura mítica, o Cid é o protagonista de fatos historicamente comprovados. Seu nome civil é Ruy Díaz de Vivar, um condutor de exércitos que morreu em 1099. Apenas poucas décadas depois de sua morte, a partir de 1140, aproximadamente, já surgiram os primeiros cantares sobre suas façanhas bélicas, seu envolvimento com os políticos de sua época e seus laços familiares. Como acontecia em todos os poemas épicos, primeiro houve uma tradição oral e depois começaram a aparecer cantos escritos. O primeiro manuscrito encontrado do Poema del Cid remonta ao ano de 1307, mas só foi descoberto e publicado, pela primeira vez, em 1779, na época do Romantismo, quando os povos europeus buscavam as origens de suas nacionalidades.
O poema conta a vida de Ruy Díaz, senhor de Vivar e vassalo de D. Alfonso de Castilha. As vitórias militares lhe proporcionam fama e riqueza, o que suscita inveja nos nobres de Castilha. O rei, acatando as intrigas, acaba exilando o herói. Mas ele continua sua campanha de conquistas de territórios muçulmanos, chegando a penetrar em Valência, onde assenta seu quartel general. Defende bravamente a cidade do ataque do rei do Marrocos, Yucef, que desembarcara na Espanha para reconquistar Valência. De lá, o Cid envia presentes a D. Alfonso, ao bispo, aos amigos e parentes, solicitando a revogação do decreto de exílio. O Rei reconhece o seu valor e permite que sua esposa Jimena, junto com as filhas Elvira e Sol, visitem o herói em Valência, arrumando o casamento das mocinhas, ainda em tenra idade, com dois nobres de Carrión, Diego e Fernando. Mas logo os dois genros do Cid se revelam covardes, interesseiros e violentos, batendo em suas esposas. O herói reclama por justiça e o tribunal de Toledo condena os dois velhacos a restituir os bens. O poema termina com duelos e novas núpcias.
Na verdade, El cantar de mio Cid foge das características do gênero épico tradicional por não fazer uso do maravilhoso, do extraordinário. Não há intervenções divinas, revelações sobrenaturais, nenhuma espécie de milagre. A religião está presente apenas como ritual: antes das batalhas, os muçulmanos invocam Maomé e os cristãos Santiago. São professados dogmas e sacramentos da fé, conforme a tradição católica. Como também não há nenhuma idealização de ações humanas. Cid derrota o conde de Barcelona e exige um resgate, vende a cidade de Alcácer, cobre pesados impostos das povoações subjugadas, compra o perdão do Rei com valiosos presentes, estipula o preço do dote, enfim, tudo é calculado, pesado, quantificado: a espada Tizona vale mil Marcus, ao herói cabe a quinta parte de cada botim de guerra. Da mesma forma que as Cruzadas, a defesa da religião cristã contra o Islamismo é apenas um pretexto para o enriquecimento à custa de cidades-estado vizinhas: o valor militar, aos poucos, vai suplantando a nobreza de sangue.
A canção dos Nibelungos: a epopéia germânica.
O assunto da Canção dos Nibelungos remonta, aproximadamente, à mesma época do rei Artur, que deu origem ao ciclo de cultura da Bretanha, a partir do séc. V, quando vários povos do norte da Europa, considerados “bárbaros”, despedaçaram o império romano e se converteram ao cristianismo. Desta vez, o centro das ações é a antiga Germânia. O episódio histórico, que deu origem às lendas, foi a conquista do antigo reino da Burgûndia, região da parte alta do rio Reno, por Átila, alcunhado “flagelo de Deus”, chefe da horda dos hunos, no ano de 437. Burgundos e Nibelungos, povos que se consideravam mais civilizados e já tinham aderido ao cristianismo, não se conformaram com o fato de terem sido derrotados por uma tribo de gente primitiva, proveniente da Ásia central. Então, como aconteceu com os gregos que inventaram o mito do rapto de Helena para justificar o assédio à cidade de Tróia, assim a fantasia dos povos da antiga Alemanha imaginou que a derrota foi devido ao ciúme que duas belas princesas sentiam pelo herói Sigfrido.
O jovem nibelungo Sigfrido, príncipe da Neerlândia, sobe o rio Reno, do burgo de Xante até à cidade de Worms, para conhecer e pedir em casamento a linda Cremilda, princesa da Burgûndia. Lá, ele ajuda na luta contra os reis invasores da Dinamarca e da Saxônia. Seu heroísmo bélico lhe cativa a simpatia de Cremilda e do seu irmão Gunther, que, por sua vez, estava apaixonado pela bela e valorosa Brunilda, princesa da Islândia. Estabelece-se, então, um pacto de ajuda mútua: Sigfrido ajudaria Gunther na conquista de Brunilda, em câmbio da mão de sua irmã Cremilda. Os dois viajam para a Islândia, Sigfrido disfarçado como vassalo do rei Gunther. A intrépida Brunilda tinha feito uma promessa: só se casaria com o cavaleiro capaz de vencê-la em várias provas. O desafiante perdedor seria condenado à morte. Gunther fica com medo e pede a ajuda de Sigfrido que, vestindo um manto mágico, derrota a princesa. A vitória é atribuída a Gunther e Brunilda é obrigada a acompanhar os dois jovens até à Burgûndia. Lá se realiza o duplo matrimônio: Sigfrido casa com Cremilda e Gunther com Brunilda.
Mas a noite de núpcias de Gunther foi um desastre: Brunilda que, talvez inconscientemente, gostava mais de Sigfrido do que do seu noivo, sofre de um ataque de ciúme ao perceber a paixão de Cremilda. Recusa-se, então, a fazer amor com Gunther, aduzindo que não achava certo que sua cunhada se casasse com um vassalo de seu marido. Gunther, na tentativa de possuí-la pela violência, é subjugado pela jovem princesa, que o pendura numa janela, atando-lhe as mãos e os pés. Mais uma vez o rei recorre ao amigo Sigfrido que, na noite seguinte, tornado invisível pelo manto mágico, consegue subjugar Brunilda em luta corporal, entregando-a ao esposo. A seguir, Sigfrido leva sua esposa para Xante, sua cidade natal, e passam-se anos de felicidade para os dois casais abençoados por filhos.
Esta situação de harmonia muda quando Brunilda inventa de rever a cunhada Cremilda. Ela mesma tinha pedido ao marido Gunther que convidasse a irmã e o cunhado para a festa da primavera. Sigfrido, a esposa, os filhos, os pais e numeroso séqüito, levando muitos presentes, fazem a longa viagem, sendo acolhidos festivamente. Mas a presença de Sigfrido reacende o ciúme de Brunilda, que humilha a cunhada Cremilda, dizendo que ela lhe era socialmente inferior, pois casara com um vassalo de seu marido. Ao que a jovem responde que não era verdade, pois Sigfrido, além de ser nobre, era o mais valente e amoroso dos homens. Revela, então, a verdadeira identidade de Sigfrido, dizendo que não fora Gunther, mas seu marido que a subjugara no campo de batalha e na cama, na noite de núpcias. Como prova, mostra-lhe o anel que Sigfrido levara consigo quando saiu do quarto.
A revelação deixa a altiva Brunilda furiosa ao ponto de maquinar uma terrível vingança. Ela fica sabendo que o herói Sigfrido, após vencer um dragão, banhara-se no seu sangue, que lhe fechou o corpo e o tornou invencível. Mas havia um ponto fraco no seu ombro, onde uma folha cobrira o osso omoplata durante o banho. Com esta indicação, ela encarrega um nobre amigo seu, o astuto Haguen, para efetuar a vingança: durante uma caçada, enquanto Sigfrido está inclinado para beber das águas de um riacho, uma espada lhe é enfiada nas costas, provocando a morte do herói.
Agora é a vez de a viúva Cremilda jurar vingança. Ela chora amargamente a morte do esposo e se sente culpada por ter revelado, imprudentemente, o ponto de vulnerabilidade de Sigfrido. A notícia da triste sorte da viúva se expande pela Europa central e Átila, rei dos hunos, encantado pela fama da beleza e da fidelidade de Cremilda, envia cavalheiros para pedir sua mão em casamento. A rainha aceita por um dúplice propósito: vingar a morte de Sigfrido e converter Átila ao cristianismo. Viaja, então, do Reno para o Danúbio, chegando à cidade de Viena, onde se realizam as núpcias, abençoadas pelo nascimento de um filho.
Mas Cremilda, que nunca desistiu de vingar a morte de Sigfrido, convida seus irmãos e outros nobres da Burgûndia para visitá-la na Hungria. Lá há um confronte entre os nibelungos e os hunos, com a vitória destes últimos. Gunther, o marido de Brunilda e Haguen, o assassino de Sigfrido, são levados prisioneiros até Cremilda, a nova rainha do reino da Hungria, que acaba matando o irmão, na tentativa de reconquistar o tesouro dos nibelungos, escondido no rio Reno. Mas ela também morre pelas mãos de um vassalo de Teodorico, rei dos visigodos. Com ela morre a última nobre representante da raça dos nibelungos.
Essa história fabulosa sobre os antigos povos germânicos, evidentemente, sofreu um longo processo de maturação pela tradição oral. Os episódios originais do séc. V, aos poucos, foram enriquecidos por rapsodos posteriores, cada qual contribuindo com seu cabedal cultural, até chegarmos ao séc. XVIII, no começo do Romantismo alemão, quando foram descobertos os vários manuscritos acerca do Poema dos Nibelungos. A semelhança com passagens homéricas e bíblicas supõe certo grau de cultura inconcebível em povos primitivos. Por exemplo, o episódio da morte de Sigfrido pela descoberta de seu ponto vulnerável, parece uma versão adaptada do mito grego do “calcanhar de Aquiles”.
Na verdade, o poema é a exaltação do ideal de vida da nobreza medieval, baseado no princípio da fidelidade e da honra. O que é relevante e faz a diferença entre a epopéia germânica e os cantos épicos latinos, especialmente espanhóis, é o tratamento da mulher. Enquanto no Cantar de mio Cid, a figura feminina é considerada apenas um objeto de uso ou de troca, a moça sendo obrigada a casar em tenra idade e sem possibilidade de escolha, configurando uma sociedade profundamente machista, no poema dos Nibelungos é a vontade da mulher que prevalece. O homem nobre ou o herói de guerra é visto apenas como um vassalo da mulher, a quem ele deve obedecer, conforme o código cavalheiresco que já vimos na poesia lírica da Provença.