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Cartas de Amor ao cavaleiro de Chamilly/Carta Segunda

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CARTA SEGUNDA


II
 

O teu tenente acaba de dizer-me que fôras obrigado a arribar, por fôrça de uma tormenta, no reino do Algarve.

Receio que sofresses muito sôbre o mar, e esta apreensão se apoderou de mim tam vivamente, que não cuidei mais nos meus males…

¿Estás tu bem persuadido, que o teu tenente toma mais interêsse do que eu, em tudo o que te acontece?…

¿Porque razão teve êle esta informação antes de mim?… Finalmente, ¿porque não me escreveste?…

Sou bem desgraçada, se nenhuma ocasião encontraste para o fazer depois da tua partida, e mais desgraçada ainda, se tendo ocasião, me não escreveste!…

A tua injustiça e a tua ingratidão são extremas; mas afligir-me-ia desesperadamente, se te careassem algum infortúnio; pois antes quero que delas não recebas o castigo, do que ver-me vingada.

Resisto a tôdas as aparências que deveriam persuadir-se de que mui pouco amor me tens e sinto maior propensão a abandonar-me cegamente à minha paixão, do que às razões que me ofereces para queixar-me da tua falta de atenção e cuidado.

Quantas inquietações me terias poupado se o teu procedimento fôsse tam remisso e lânguido nos primeiros dias que te vi, como me parece agora, e desde algum tempo!…

¿Mas quem não deixaria enganar-se como eu, por tantos desvêlos, e a quem não pareceriam êles sinceros?…

Quanto custa resolver-nos a suspeitar longamente da bôa fé daqueles que amâmos!…

Vejo muito bem que a menor desculpa te satisfaz, e antes que tu atendas a dar-mas, o amor que tenho por ti serve-te com tanta fidelidade, que não posso consentir em descobrir-te culpas, senão para gozar do sensível prazer de justificar-te eu mesma!

Consumiste-me com as tuas assíduas perseveranças, inflamaste-me com os teus transportes, encantaste-me com as tuas finezas, asseguraste-me com os teus juramentos, a minha inclinação violenta seduziu-me, e as conseqüências dêstes começos tam agradáveis e tam venturosos não são mais do que lágrimas, gemidos, e uma funesta morte, sem que possa achar-lhe algum remédio!

Verdade é que, amando-te, gozei deleitações maravilhosas, mas custam-me hoje penas extraordinárias!…

Tôdas as comoções que me causas são extremas…

Se eu tivesse resistido ao teu amor, se te houvesse dado qualquer motivo de enfado e de ciúme, para mais inflamar-te; — se tivesses notado no meu proceder alguma reserva artificiosa; — se eu, enfim, tivesse querido opôr a razão à inclinação natural que para ti sentia, e da qual cedo me advertiste, — posto que os meus esforços sem dúvida teriam sido inúteis; — poderias castigar-me severamente, servindo-te de todo o teu poderio.

Mas pareceste-me amável; antes de me haveres dito que me amavas, juraste sentir por mim a maior paixão; fiquei de gôsto absorta e entreguei-me a amar-te perdidamente…

Tu não estavas, como eu, vendado; ¿porque sofreste pois que eu caísse no estado em que me acho?…

¿Que querias tu fazer dos meus enlevamentos, que não podiam deixar de ser-te muito importunos?…

Tu bem sabias que não havias de ficar sempre em Portugal; ¿e porque a belprazer me escolheste aqui, para fazer-me tam desgraçada? Neste país terias sem dúvida encontrado outra qualquer mulher mais formosa, com a qual terias desfrutado iguais divertimentos, pois só os grosseiros procuravas; — que te teria amado com fidelidade enquanto estivesses presente a sua vista, e que o tempo teria podido consolar fàcilmente da tua ausência, e que tu terias podido abandonar sem perfidia e sem crueldade…

Semelhante procedimento é mais próprio de um tirano afincado a perseguir, do que de um amante, que só deve pôr cuidado em agradar.

Ai de mim! ¿porque tratas com tanto rigor um coração todo teu?

Vejo claramente que és tam fácil em deixar-te persuadir contra mim, como eu o fui em deixar-me persuadir a favor de ti.

Eu teria resistido, sem o estimulo de todo o meu amor, e sem o mais leve pensamento de ter feito alguma façanha, a razões maiores do que as que pudéram obrigar-te a deixar-me…

Tôdas me teriam parecido mui fracas, e nenhumas teriam tido a fôrça de arrancar-ne de teu lado…

Mas tu quiseste aproveitar os pretextos que pudeste achar para voltar a França…

Um navio partia…

Deixá-lo partir!…

A tua família te havia escrito…

¿Ignoras tu as perseguições que eu sofri da minha?…

A honra obrigava-te a me abandonar…

¿Curei eu da minha?…

Tinha obrigação de ir servir o teu rei…

Se tudo que dêle dizem é verdade, podia escusar os teus serviços, e saberia desculpar-te.

Teria sido nímiamente afortunada se juntos tivéssemos passado a vida; mas já que era forçoso que uma ausência cruel nos separasse, parece-me que devo sentir grande satisfação de não ter sido infiel, e não quisera, por quanto há no mundo, ter cometido uma acção tam feia…

Como!… Conheceste o fundo do meu coração e extrêmo da minha ternura, e pudeste resolver-te a deixar-me para todo sempre, e a expôr-me aos sustos que devem assaltar-me do teu esquecimento, ou ao receio de que me lembres sòmente de mim para sacrificar-me a uma nova paixão?!…

Bem vejo que te amo como uma louca.

Contudo não me queixo de todos os ímpetos violentos do meu coração.

Habituo-me às suas perseguições, e mal podería viver sem um particular prazer que descubro e desfruto, amando-te entre mil dores e pezares…

Mas o que me mortifica sem cessar é o enôjo e aversão, que tenho para tudo…

A minha familia, os meus amigos, êste convento, são-me insuportáveis. Tudo que de obrigação devo ver, tudo que de necessidade devo fazer, me é odioso…

Tam zelosa sou da minha paixão, que, a meu parecer, tôdas as minhas acções, todos os meus deveres te dizem respeito…

Sim, faço algum escrúpulo se não emprégo por ti todos os momentos da minha vida…

Que faria, ai de mim! sem tamanho ódio e tamanho amor, quais enchem o meu coração! ¿Poderia eu sobreviver ao que me occupa continuadamente, para levar uma vida tranqüila e lânguida?…

Não, semelhante vácuo, e tal insensibilidade, não me convêm.

Todos reparam na mudança completa do meu génio, do meu modo, e de tôda a minha pessoa…

Minha mãe falou-me nisto ao princípio com desabrimento, depois com alguma bondade…

Não sei o que lhe respondi.

Parece-me que tudo lhe confessei…

As mais austeras religiosas compadecem-se do estado em que me vêem: mesmo é causa de mostrarem certa consideração e melindre para comigo.

Todos se comovem do meu insano amor… e tu só, tu permaneces em profunda indiferença… sem escrever-me senão cartas frias, cheias de cansadas repetições, que nem enchem a metade do papel, dando a conhecer grosseiramente que morrias da impaciência de findá-las…

D. Brites perseguiu-me, há alguns dias, para fazer-me sair do meu aposento, e julgando divertir-me, levou-me à varanda donde se vê Mértola…

Segui-a, sim; mas ali fui assaltada imediatamente por uma cruel lembrança, que me fez derramar lágrimas todo o resto do dia.

Reconduziu-me; e apenas chegada deitei-me sôbre a cama, aonde fiz mil reflexões sôbre a pouca aparência que vejo de jàmais sarar… Tudo que fazem, para aliviar-me, exaspera a minha dôr, e nos mesmos remédios acho motivos particulares de afligir-me…

Naquele logar te vi passar muitas vezes com um garbo e gentileza que me encantavam. Achava-me sôbre esta varanda no dia fatal em que comecei a sentir os primeiros efeitos da minha desditosa paixão.

Pareceu-me que desejavas agradar-me, ainda sem me conheceres.

Persuadi-me que me tinhas distinguido entre tôdas as minhas companheiras.

Imaginei, quando te demoravas, que tinhas gôsto de que eu admirasse a destreza e bizarria com que arremessavas o teu cavalo. Surpreendeu-me mesmo o susto que experimentei, quando o fizeste passar por um sitio escabroso.

Enfim, interessava-me secretamente em tôdas as tuas acções.

Bem sentia que não me eras indiferente, e tomava para mim tudo o que fazias.

Tu conheces em demasia as conseqüências dêstes começos, e ainda que não tenha a guardar respeitos, não devo contudo referir-tas, receando de aumentar os teus crimes, e de argüir-me de tantas diligências inúteis para obrigar-te a ser-me fiel…

Não o serás, ingrato!..

¿Como posso eu esperar das minhas cartas, e dos meus queixumes, o que o meu amor e inteiro abandôno não puderam vencer da tua ingratidão?

Estou mais que certa da minha infelicidade, o teu uníquo procedimento não me deixa a menor razão para duvidar dela; tudo devo apreender, pois me abandonaste!

¿Os teus atractivos terão porventura só poder sôbre mim? ¿Deixarás tu de parecer bem a outros olhos?

Creio que não desestimaria que os sentimentos dos outros justificassem de algum modo os meus, e quisera que tôdas as damas de França te reputassem amável, que nenhuma te amasse, e que nenhuma te agradasse.

Êste projecto fantástico é ridículo e impossível; não obstante saber assaz de própria experiência quam pouco és capaz de uma tenaz afeição, e que para esquecer-me não careces de auxílio algum, nem de ser constrangido por uma nova paixão.

Talvez desejava conhecer-te algum pretexto com lume de razão… Verdade é que eu seria mais desgraçada, mas tu menos culpável.

Vejo, ainda mal, que te demorarás em França, sem grande contentamento, com plena liberdade.

As fadigas de uma viagem longa, quaisquer pequeninas obrigações, e o pejo de não saber corresponder aos meus transportes, são as causas que te retêm.

Ah! não me temas…

Contentar-me hei com ver-te de tempos a tempos, e saber ùnicamente que vivemos no mesmo sítio, e respiramos o mesmo ar.

Mas quiçá lisonjeio-me, a severidade e rigores de outra mulher te comoveram mais do que te comoveram os meus favores…

¿Será possível que maus tratos tenham a eficácia de incender-te?

Reflecte, porém, antes de enlear-te em uma grande paixão, e atende o excesso das minhas dolorosas aflições, a incerteza de todos meus projectos, a diversidade das agitações de minha alma, a extravagância das minhas cartas, as minhas confianças, as minhas desespeções, os meus anelantes desejos, os meus ciúmes…

Ah! guarda-te da infelicidade que te espera…

Conjuro-te de tirar proveito do estado em que eu cai, para que, ao menos, o que sofro por ti não te seja inútil.

Haverá cinco ou seis meses fizeste-me uma confidência molesta, confessando-me, com demasiada sinceridade, que tinhas amado uma dama no teu país…

Se é ela quem te impede de voltar aqui, dize-mo sem disfarce, para que cesse de finar-me lentamente.

Algum resto de esperança sustenta-me ainda; mas se êste deve ser frustado, estimaria mais perdê-la inteiramente, e perder-me com ela…

Manda-me o seu retrato, e algumas das suas cartas.

Escreve-me tudo o que ela te diz.

Talvez descobrirei motivos de consolar-me, ou de ainda mais afligir-me.

Não posso aturar por mais tempo êste trabalhoso estado em que permaneço: tôda mudança me será favorável…

Quisera também possuir o de teu irmão, e o de tua cunhada.

Tudo que te pertence me é por extremo caro; e sou perfeitamente devota a tudo que te diz respeito.

Nada reservei para mim, nenhuma disposição de mim mesma…

Há momentos aos quais me parece que seria capaz de submeter-me até a servir aquela que amas…

Tanto os teus maus tratos e desprezos me tem abatido, que não ouso às vezes nem sequer cogitar que poderia, a meu parecer, demandar-te ciúmes sem desagradar-te, e que creio obrar com a maior semrazão em dirigir-te reproches…

Muitas vezes deixo-me convencer que não devo manifestar-te com insano furor, como faço, sentimentos que tu desdenhas.

Há muito tempo que um oficial espera por esta carta…

Tinha resolvido escrevê-la de modo que pudesses recebê-la sem desgôsto, mas é demasiado extravagante… é necessário terminá-la.

Ai de mim! não me sinto fôrças para tomar esta resolução. Parece-me que te falo quando te escrevo, e que me estás algum tanto mais presente…

A primeira que te escrever não será nem tam extensa, nem tam enfadonha. Poderás abri-la e lê-la fiado na minha palavra.

Verdade é que não devo falar-te de uma paixão que te é desagradável, e dela mais não te falarei.

Daqui a poucos dias fará um ano que me abandonei tôda a ti, sem alguma consideração e comedimento!

O teu amor parecia-me muito fervoroso e jàmais teria pensado, nem por sombras, que os meus favores te desgostassem, até obrigarem-te a fazer quinhentas léguas e a expôr-te a naufrágios, só para te alongares de mim.

De ninguém era de esperar semelhante tratamento!…

Podes lembrar-te do meu pudor, da minha confusão, da minha desordem… mas tu não te lembras de cousa alguma, que haja de obrigar-me, mau grado teu, a amar-me!

O oficial, que deve levar-te a minha carta, avisa-me pela quarta vez que quere partir.

Que pressa tem!…

Abandona certamente alguma pobre desgraçada neste país.

Adeus.

Custa-me mais acabar esta carta, do que te custou deixar-me, talvez para sempre.

Adeus.

Não me atrevo a dar-te mil ternos nomes, nem abandonar-me, livre de qualquer constrangimento, a todos os meus afectos…

Amo-te mil vezes mais que a própria vida, e mil vezes mais do que imagino.

Quanto me és caro, e quanto és cruel para mim!…

Tu não me escreves!…

Não pude coïbir-me de repetir-te ainda isto…

Torno a principiar, e o oficial partirá…

¿Que importa?… Parta embora…

Eu escrevo mais para mim do que para ti… Não procuro senão desabafar; assim também o comprimento da minha carta te há-de meter mêdo…

Não a lerás…

¿Que fiz eu para ser tão desditosa?… ¿E porque inficionaste com veneno a minha vida?…

Ah! ¿porque não nasci em outra terra?…

Adeus; desculpa-me…

Não ouso rogar-te que me ames…

Vêde a que termos me reduziu o meu destino!…

Adeus!