O Saci (8ª edição)/11

Wikisource, a biblioteca livre

XI

Discussão


O saci deu uma gargalhada.

— Que gabolice! exclamou. Casas? Qual é o bichinho que não constroi sua casa na perfeição? Veja a das abelhas, ou das formigas, ou os casulos. Poderão existir habitações mais perfeitas? Todos aqui na mata moram. Cada um inventa seu jeito de morar. Todos, portanto, têm suas casinhas, onde ficam muito mais bem abrigados do que os homens lá nas casas deles. O caramujo, esse então até inventou o sistema de carregar a casa ás costas. E´ o mais esperto. Vai andando. Assim que o perigo se aproxima, arreia a casa e mete-se dentro.

— Casa, vá lá, disse Pedrinho meio convencido. Mas aeroplano? Que bichinho daqui seria capaz de construir aviões como nós homens os construimos ?

Outra risada do saci.

— Olhe, Pedrinho, você está-me saindo tão bobo que até me causa dó. Aviões! Pois não vê que avião é a mais atrasada máquina de voar que existe no mundo? Aqui os bichinhos estão de tal modo adiantados que nenhum precisa de mostrengos como o tal avião. Todos possuem no corpo um aparelho de voar aperfeiçoadissimo. Não vê que vôam, bobo? Outro dia assisti a uma cena muito interessante. Eu estava perto duma lagoa cheia de patos, quando um avião passou voando por cima das nossas cabeças. Os patos entreolharam-se e riram-se. Você, sabe, Pedrinho, que bicho estupido é o pato. Pois mesmo assim um deles disse com muita sabedoria: "Parece incrivel que os homens se gabem de ter inventado uma coisa que nós já usamos ha tantos milhares de anos..."

— Sim, continuou Pedrinho, mas nós sabemos ler e vocês não sabem.

— Ler! E para que serve ler? Se o homem é a mais estupida de todas as criaturas, de que adianta saber ler? Que é ler? Ler é um jeito de saber o que os outros pensaram. Mas que adianta a um estupido saber a estupidez que outro estupido pensou?

Era de mais aquilo. Pedrinho encheu-se de colera.

— Não continue, saci! Você está me ofendendo. O homem não é nada do que você diz. O homem é a gloria da natureza.

— Gloria da natureza! repetiu o capetinha com ironia. Ou está repetindo como papagaio o que ou viu alguem falar, ou então você não raciocina. Inda ontem ouvi dona Benta ler num jornal os horrores da guerra na Europa. Basta que entre os homens haja isso que eles chamam guerra, para que sejam classificados como as criaturas mais estupidas que existem. Para que guerra?

— E vocês aqui não usam guerras tambem? Não vivem a perseguir e comer uns aos outros?

— Sim; um comer o outro é a lei da vida. Cada criatura tem o direito de viver e para isso está autorizada a matar e comer o mais fraco. Mas vocês homens fazem guerra sem ser movidos pela fome. Matam o inimigo e não o comem. Está errado. A lei da vida manda que só se mate para comer. Matar por matar é crime. E só entre os homens existe isso de matar por matar — por esporte, por gloria, como eles dizem. Qual, Pedrinho, não se meta a defender o bicho homem, que você se estrepa. E trate de fazer como Peter Pan, que embirrou de não crescer para ficar sempre menino, porque não ha nada mais sem graça do que gente grande. Se todos os meninos do mundo fizessem gréve, como Peter Pan, e nenhum crescesse, a humanidade endireitaria. A vida lá entre os homens só vale enquanto vocês se conservam meninos. Depois que crescem, os homens viram uma calamidade, não acha? Só os homens grandes fazem guerra. Basta isso. Os meninos apenas brincam de guerra.

Pedrinho nada respondeu. Estava um tanto abalado pelas estranhas idéias do saci. Quando voltasse para casa iria consultar dona Benta para saber se era mesmo assim ou não.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.