O Saci (8ª edição)/5

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V

Pedrinho pega um saci



TÃO impressionado ficou Pedrinho com esta conversa que dali por diante só pensava em saci, e até começou a enxergar sacis por toda a parte. Dona Benta caçoou com ele, dizendo:

— Cuidado! Já vi contar a historia de um menino que de tanto pensar em saci acabou virando saci...

Pedrinho não fez caso da historia, e um dia, enchendo-se de coragem, resolveu pegar um. Foi de novo em procura do tio Barnabé.

— Estou resolvido a pegar um saci, disse ele, e quero que você me ensine o melhor meio.

Tio Barnabé apreciou aquela valentia.

— Gosto de ver um menino assim. Bem mostra que é neto do defunto sinhô velho, um homem que não tinha medo nem de mula sem cabeça. Ha muitos jeitos de pegar saci, mas o melhor é o de peneira. Arranja-se uma peneira de cruzeta...

— Peneira de cruzeta? interrompeu o menino. Que é isso?

— Nunca reparou que certas peneira têm duas taquaras mais largas que se cruzam bem no meio e servem para reforço? Olhe aqui — e mostrou ao menino uma das tais peneiras que estava ali num canto. Pois bem, arranja-se uma peneira destas e fica-se esperando um dia de vento bem forte, em que haja rodamoinho de poeira e folhas secas. Chegada essa ocasião, vai-se com todo o cuidado para o rodamoinho e zás! joga-se a peneira em cima. Em todos os rodamoinhos ha saci dentro, porque fazer rodamoinhos é justamente a principal ocupação dos sacis neste mundo.

— E depois?

— Depois, se a peneira foi bem atirada e o saci ficou preso, é só dar jeito de botar ele dentro de uma garrafa e arrolhar muito bem. Não esquecer de riscar uma cruzinha na rolha, porque o que prende o saci na garrafa não é a rolha e sim a cruzinha riscada nela. E´ preciso ainda tomar a carapucinha dele e a esconder bem escondida. Saci sem carapuça é como cachimbo sem fumo.

Eu já tive um saci na garrafa, que me prestava muito bons serviços. Mas veio aqui um dia aquela mulatinha sapéca que mora na casa do compadre Bastião e tanto lidou com a garrafa que a quebrou. Bateu logo um cheirinho de enxofre. O perneta pulou em cima da sua carapuça, que estava ali naquele prego, e — "Até logo, tio Barnabé!"

Depois de ouvir tudo com a maior atenção, Pedrinho voltou para casa decidido a pegar um saci, custasse o que custasse. Contou o seu projeto a Narizinho e longamente discutiu com ela sobre o que faria no caso de escravizar um daqueles terriveis capetinhas. Depois de arranjar uma boa peneira de cruzeta, ficou á espera do dia de S. Bartolomeu, que é o dia mais ventoso do ano.

Custou a chegar esse dia, tal era sua impaciencia, mas afinal chegou, e desde muito cedo Pedrinho foi postar-se no terreiro, de peneira em punho, á espera de rodamoinhos. Não esperou muito tempo. Um forte rodamoinho formou-se no pasto, e veio caminhando para o terreiro.

— E´ hora! disse Narizinho. Aquele que vem vindo está com muito jeito de ter saci dentro.

Pedrinho foi se aproximando pé ante pé e, de repente, zás! jogou a peneira em cima.

— Peguei! gritou, no auge da emoção, debruçando-se com todo o peso do corpo sobre a peneira emborcada. Peguei o saci!... A menina correu a ajuda-lo.

— Peguei o saci! repetiu o menino vitoriosamente. Corra, Narizinho, e traga-me aquela garrafa escura que deixei na varanda. Depressa!

A menina foi num pé e voltou noutro.

— Enfie a garrafa dentro da peneira, ordenou Pedrinho, enquanto eu cérco dos lados. Assim! Isso!... A menina fez como ele mandava e com muito jeito a garrafa foi introduzida dentro da peneira.

— Agora tire do meu bolso a rolha que tem uma cruz riscada em cima, continuou Pedrinho. Essa mesma. Dê cá.

Pela informação do tio Barnabé, logo que a gente põe a garrafa dentro da peneira o saci por si mesmo entra dentro dela, porque, como todos os filhos das trevas, tem a tendencia de procurar sempre o lugar mais escuro. De modo que Pedrinho o mais que tinha a fazer era arrolhar a garrafa e erguer a peneira. Assim fez, e foi com o ar de vitoria de quem houvesse conquistado um imperio, que levantou no ar a garrafa para examina-la contra a luz.

Mas a garrafa estava tão vazia como antes. Nem sombra de saci dentro...

A menina deu-lhe uma vaia e Pedrinho, muito desapontado, foi contar o caso ao tio Barnabé.

— E´ assim mesmo, explicou o negro velho. Saci na garrafa é invisivel. A gente só sabe que ele está lá dentro quando a gente cai na modorra. Num dia bem quente, quando os olhos da gente começam a piscar de sono, o saci pega a tomar fórma até que fica perfeitamente visivel. E´ desse momento em diante que a gente faz dele o que quer. Guarde a garrafa bem fechada, que garanto que o saci está dentro dela.

Pedrinho voltou para casa orgulhosissimo com a sua façanha.

— O saci está aqui dentro, sim, disse ele a Narizinho. Mas está invisivel, como me explicou tio Barnabé. Para a gente ver o capetinha é preciso cair na modorra — e repetiu á menina tudo o que o negro lhe dissera.

— Quem não gostou da brincadeira foi a pobre tia Nastacia. Como tinha um medo horrivel de tudo quanto era misterio, nunca mais chegou nem na porta do quarto de Pedrinho.

— Deus me livre de entrar num quarto onde ha garrafa com saci dentro! Crédo! Nem sei como dona Benta consente semelhante coisa em sua casa. Não parece ato de cristão...

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.