O precursor do abolicionismo no Brasil/1.7

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NA FORÇA PUBLICA


Declarado liberto, Gama refugiou-se na Força Pública da Província, acolhendo-se à sombra protetora da instituição militar. A sua relativamente longa permanência na milícia, para a qual não tinha a mínima vocação, não se compreenderia senão como o homizio de um homem que acaba de cometer uma grande façanha, em meio hostil, e que teme novas investidas contra a sua independência e autonomia, sempre faceis numa quadra em que a côr da pele decidia dos destinos dos homens.

Gama, ingressando na polícia militar, não lhe levou, como não podia levar-lhe, a sua alma. Era a negação do espírito daquela classe, feita de dedicação e disciplina. Fê-la apenas uma estação de passagem. Seu ideal estava alhures, no veneno que Prado Junior lhe injectara nas veias, ensinando-lhe a leitura e a escrita. A força pública devia ser uma ponte para o seu alvo. E a prova está em que ele, tendo obtido um protetor valiosíssimo, o conselheiro Furtado de Mendonça, delegado de polícia da Capital, não conseguiu fazer carreira, na tropa, apezar de sua inteligência e de sua vivacidade espiritual, quando centenas de moços ativos, com muito menos credenciais que ele, sempre encontraram, na hoje centenária corporação, um campo de facil acesso, escalando rapidamente os postos de maior relevancia. Gama não logrou ir alem de cabo de esquadra, e assim mesmo, cabo graduado, isto é, cabo não efetivo, pois a graduação sempre indicou no exercito que o militar pertence ao posto imediatamente inferior, sendo, na escala de antiguidade, o numero um para a promoção ao posto imediato. Porisso, é graduado, isto é, pode usar as insignias do posto a que terá fatalmente de ser promovido, mas a que ainda não chegou.

Gama não amava a farda e as ocupações militares. Preferia profissão que lhe interessasse a mania inteletual. Fez-se copista, valendo-se de sua amizade com o escrivão major Benedito Antonio Coelho e, a seguir, entrou, como amanuense, no gabinete do conselheiro Furtado de Mendonça. Foi seu ordenança.

E’ ainda Gama quem se incumbe de documentar a história quanto ao seu nulo pendor militar e ao seu ardente desejo de ser alguem, do ponto de vista inteletual. Em artigo que teremos de reproduzir na integra, mais tarde, escrito em 1869, sem a minima intenção de traçar a própria biografia, Gama denuncia o verdadeiro motivo que o levou á Força Pública:

“Ha cerca de vinte anos — dis ele — o exmo. sr. Conselheiro Furtado, por nimia indulgência, acolheu benigno, em seu gabinete, um soldado de pele negra, que solicitava ansioso os primeiros lampejos da instrução primaria.

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Ao entrar nesse gabinete consigo levava ignorancia e vontade inabalavel de instruir-se.”

Não podia ser mais claro. A exagerada modestia fazia-o reconhecer-se, em 1848, pouco mais ou menos analfabeto. Mas, como sabemos que já o não era, compreende-se bem a proporção que ele estabelecia entre o que até ali aprendera e o que desejava adquirir.

Façamos-lhe justiça, reconhecendo que conseguiu o seu intento. Com as lições continuas que the ministrou o seu bemfeitor, e que o negro, gratissimo, não se cansa de pôr em relevo, Gama realizou a mais inacreditavel obra de cultura autodidática, num prazo de tempo curtissimo que se pode apanhar dentro de datas perfeitamente verificadas. Logrou-o de uma maneira curiosa. Gama obteve autorização para ler os livros da biblioteca do conselheiro Furtado, que devia ser notavel e muito bem organizada, como competia a um mestre da Faculdade de Direito de São Paulo. E o humilde soldado, voluntario e pirrônico, realiza então, esta tarefa formidavel: leu todos os livros da coleção que lhe oferecia o protetor e amigo, repassando-a com deleite e volupia.[1]. Isso explica como ele pôde organizar aquela sua grande bagagem de conhecimentos juridicos, que o fariam logo mais um dos mais acatados causídicos da Capital da Província, e a cultura e a nutrida leitura que ele revelaria, aos olhos assombrados do público, poucos anos depois.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.
  1. Informação do sr. Antonio dos Santos Oliveira.