Página:Herculano, Alexandre, História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal, Tomo I.pdf/32

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davia, no meio do fanatismo que inspirava semelhantes crueldades, o systema de processo contra os delinquentes desta especie não tinha analogia alguma com o que depois a Inquisição adoptou. Não havia juizes especiaes para investigarem e apurarem os factos; serviam para isso os tribunaes ordinarios. O accusado assistia aos actos do processo, dava-se-lhe conhecimento de todas as accusações, facilitavam-se-lhe os meios de defesa, e nada se lhe occultava. Era inteiramente o inverso das praxes posteriores; e, ainda assim, póde-se dizer que a igreja era, até certo ponto, extranha á imposição de penas afflictivas e ao derramamento de sangue com que mais de uma vez se manchou a intolerancia religiosa antes do seculo xiii.

E nisto ella respeitava as tradições primitivas do christianismo. Nos primeiros seculos, os bispos e prelados, sendo inexoraveis em separar do gremio dos fiéis os dissidentes da fé, no que, em rigor, nada mais faziam do que certificar a existencia de um facto, paravam ahi ou, quando muito, davam conta ao poder secular do que tinham practicado. Na opinião de alguns, isto mesmo era uma falta de caridade, e por isso occultavam aos officiaes publicos a excommunhão que haviam fulminado.