Poesias (Bernardo Guimarães, 1865)/A Baia de Botafogo

Wikisource, a biblioteca livre

Canto épico

I
Golfo sereno que no teu regaço
A fronte espelhas de escalvados serros,
E soluçando pelas curvas praias
Límpidas ondas preguiçoso estiras;
Vales sombrios de perene esmalte,
Que em caprichosos giros coleando
Vos escondeis nas dobras da montanha
Entre muralhas de empinadas rochas;
Lindas encostas, cômoros viçosos,
Que o rico manto de verdura e flores
Alardeais à luz de um céu formoso;
Negros penhascos, arrojados píncaros,
Que mergulhais as enrugadas frontes
De luz dourada em vislumbrante pego;
Dizei, não éreis vós mansão querida
Do gênio, que Deus pôs guardando a entrada
Das vastas solidões americanas?
Não era aqui seu templo?... estes penedos
Que se perdem no azul do firmamento,
Quais os braços da terra, que estendidos
Como em solene prece a Deus se exalçam,
Nao eram os altares sacrossantos
Sobre os quais a opulenta natureza,
Que o seio anima ao trópico fecundo,
Aos céus erguia as oblações da terra?
E esses vales profundos, essas grutas,
Onde revoam místicas aragens,
De brando aroma saturando os ares,
Os venerandos penetrais não eram,
Onde em santo mistério resguardados
Do futuro os arcanos se escondiam?





Por sobre vós os séculos passaram,
E um dia o nauta audaz transpondo os mares,
Do inculto Éden veio bater às portas,
E devassar recônditos mistérios
Que em vosso seio os fados ocultavam.
Quebrou-se a paz das solidões profundas,
E o silêncio que há séculos pousava
Sobre estes lindos, ignorados ermos.





II
Estas viçosas e gentis colinas
Aos golpes do machado um dia viram
Tombar-lhe aos pés a secular madeixa
De selvas seculares, que oscilavam
A sussurrar-lhes nos sombrios topes;
E gemeram os ásperos fraguedos
Atônitos ouvindo em suas bases
Retinindo a alavanca e a picareta
A lacerar-lhe os flancos de granito,
E aos sons estranhos nas profundas grutas
Em sobressalto os ecos acordavam.
Eis já da indústria o espírito fecundo
Da natureza inculta se apodera,
E a branca pedra e os lenhos da montanha
No incessante lidar vai transformando
Em risonhos casais, jardins formosos,
Que entre folhudas moutas de esmeralda,
Entre festões floridos e latadas,
Alvejam na colina, ou se derramam
Nos sinuosos vales, semelhando
Níveos cisnes, que em bando se recreiam
De quieto lago nas ervosas margens;
Do futuro os arcanos se desvendam
À luz que vem das regiões da aurora;
Rasgam-se os véus que em carregadas trevas
Do novo mundo os fados escondiam,
E às novas gerações o anjo das artes
Vai pelos campos do porvir traçando
As do progresso luminosas sendas.
Da bronca barbaria o inerte gênio
Sobre as montanhas exalçando o vôo
Pesaroso bateu as fuscas asas.

III
Ó colinas, ó veigas perfumadas,
Deleitosos vergéis, jardins de fadas,
Em quanta linda cismadora fronte
Que em vaporosos devaneios perde-se
De vago amor e de emoções sem causa,
Não derramais a sombra benfazeja!
Que segredos, que meigas confidências
Não recatais co'a trêmula folhagem!
Que virginais e cândidos anelos,
Quanto cismar de túmida esperança,
À frouxa luz da tarde, que esmorece,
Ou de brando luar ao clarão pálido,
Não embalais com vagos rumorejos!

Sim, é aqui pelas discretas sombras
Destas silenciosas alamedas,
Que fatigada dos saraus brilhantes,
E do febril turbilhonar das festas,
Vem a beleza em horas de remanso,
A conversar co'as flores, co'as aragens,
Para acalmar dos seios ofegantes
O mui ansioso arfar, e entre suspiros,
Que os róseos lábios leves lhe desfloram,
Dar livremente às virações da tarde
As fugitivas emoções do baile.
E quem sabe?... por vezes menos leda
Talvez pensar de amor fundas feridas
Que o coração teimosas lhe devoram.

E qual é o infortúnio que não acha
Um bálsamo eficaz neste ambiente,
Pejado de perfumes, nestes quadros
Donosos, que sorrindo ao longe e ao perto,
À alegria, aos prazeres vos convidam;
E que parece estarem de seu seio
A respirar eflúvias de ventura!
Quem nestas puras brisas, que bafejam
Âmbar e rosas no macio adejo,
Pressuroso não bebe a longos tragos
Suave olvido às mais pungentes mágoas?

IV
Vede quando o sol se ergue sobre as vagas
Nestas manhãs de abril, como são lindos
Esses céus, essas águas, vales, montes,
Bosques, jardins, palácios e choupanas
Que ao longe e ao perto em maga perspectiva,
Em painéis variados se desdobram.
Do fundo da valada se desprendem
Brancas névoas, que pela azul esfera
A brisa carda em lúcidos vapores.

Além num céu, por onde desdobrado
Um véu sutil de brumas transparentes
Os mui vivos fulgores esmorece,
As colossais figuras se desenham
Dos altaneiros píncaros, perdidos
No vago azul, pilastras de granito
A sustentar a abóbada luzente
De ouro e safira. __ Tu dirias antes
Caprichoso painel, que sobre a tela
Arrojado pincel fantasiara;
Ou encantado Elísio que das ondas,
Das fadas o condão maravilhoso
Vos fez surgir aos olhos vislumbrados.

V
Ó amor, se ainda hoje perdurassem
Essas mimosas crenças, com que outrora
Se embalava a risonha fantasia
Ao engenhoso habitador da Grécia,
Idálias selvas, Amatunta e Pafos,
Com tua gentil mãe desertarias,
E as aras tuas, teus risonhos cultos
Plantar virias nestas lindas veigas;
Aqui ao sol dos trópicos mais viva
Em teus altares arderia a chama;
E nestes vales, onde a flor não murcha
E os verdores jamais empalidecem,
Mais grato asilo, mais propícias sombras
A teus doces mistérios encontraras.

Porém que digo? acaso em cada gruta,
Em cada asilo desses, que se esconde
Entre enleadas redes de verdura,
Entre esses brandos ninhos de esmeralda,
Que pendem pelo viso dos outeiros,
Não tens um templo, em que piedoso aceitas
Constantes oblações, votos ardentes?
Desses vergéis nos áditos umbrosos
Mais de uma Vênus tem aras e templo,
Onde entre aromas e festivos hinos
Em mago enlevo sem cessar recebem
Fiéis adorações, férvidos cultos.

VI
Por esses troncos vagas hamadríadas
Recatam seus encantos; essas fontes
No seio abrigam náiades mimosas,
Que sem temer os atrevidos faunos
Os torneados membros de alabastro
Tranqüilas banham no cristal brilhante.

Se o triste Acteu aqui surpreendesse
Diana a se banhar na clara fonte,
Não fora transformado em feio lobo,
Nem pelos cães famintos devorado;
Mas primeiro de amores morreria.
Não é mister aqui que o belo Adônis
De suas rotas veias verta o sangue
Para dar cor às pudibundas rosas.
Por estes vales Eco só repete
Festivos sons, sem nos lembrar a história
De seu nefasto amor; e nunca mesmo,
Ao mirar-se no espelho destas fontes,
Os Narcisos em flores se convertem,
Por mais que de si mesmos se namorem.
Pode Leda vagar por essas praias
Sem recear os disfarçados cisnes;
Nem os touros aqui por mar em fora
Soem levar as descuidadas ninfas.

Nestas fecundas, venturosas plagas,
Não têm domínio vingativos numes,
Nem malfazejas fadas nelas reinam
Aqui somente a próvida natura
Das engenhosas artes ajudada,
E sem auxílio de sonhados numes,
Prodígios gera, como a Grécia nunca
Em seus mais belos sonhos fabulara.

VII
Vede aquele rochedo, que isolado
Com temeroso vulto se levanta
Por sobre as águas; __ atalaia eterna,
Que nos céus embebendo a fronte imóvel
Ampara as terras e vigia os mares.
Ei-lo campeia, qual o negro eunuco,
Ali postado, taciturno e quedo,
De harém vedado defendendo a entrada.
Junto a seus pés as ondas marulhosas
Com medonhos bramidos rebentando
Na rocha nua, as bases lhe debruam
De um cinto de alva espuma. __ Tal diríeis
De brancos ursos apinhados bandos,
Que atropelados pelas praias correm,
Qual se feroz matilha os perseguira.
Para galgar as íngremes encostas,
Em furiosos saltos se arremessam
Pela empinada, rija penedia!
Em vão forcejam... pela rocha lisa
As impotentes garras escorregam;
E de novo rosnando se despenham
A sumir-se no pego, que os devora,
E de novo os vomita a prosseguirem
No eterno assalto contra a rocha imóvel.

VIII
Na crista dessa roca inacessível
O Querubim, a quem Deus confiara
Da juvenil América os destinos,
Se entronizava, há séculos, guardando
Essas risonhas plagas opulentas,
Que um dia os fados franquear deviam
Do orbe antigo aos cultos habitantes.
Ali serenas vistas derramando
Pela cerúlea imensidão dos mares,
Esperançoso olhar contínuo volve
Para o oriente, donde a luz emana;
Não como outrora o arcanjo inexorável
Com espada de fogo, colocado
Do Paraíso à porta, onde iracundo
Aos miserandos pais da humanidade
Dos perdidos jardins vedava a entrada:
Mas ansioso aguardando o fausto dia,
Em que aprouvesse à Eterna Providência
De par em par abrir as portas de ouro
De um novo Éden, que a sorte mitigasse
De Eva infeliz à deserdada prole.
Enfim lá surge um dia, em que nas orlas
Extremas do oriente vê singrando
- Como galhos de arbustos enfezados
Medrando a custo em páramos de areia -
No equóreo plaino os suspirados mastros,
Que vêm ao continente americano
Novos homens trazer, destinos novos.

Então sorriu-se o Querubim formoso,
E de celeste júbilo banhadas
As faces lhe resplendem; - crava os olhos
De inefável fulgor no firmamento,
E este hosana de amor aos céus exalça:

IX
"Salve, dia feliz, que no oriente
Entre formosas galas despontando,
De uma era nova as portas vens abrindo!
Salve, ditosos nautas, brancas velas,
Que das remotas regiões da aurora,
No mar traçando glorioso esteiro,
Vindes quebrar a secular barreira
Que em vosso mal o espírito das trevas
Entre os dous hemisférios levantava!
Sede bem-vindos nestas ermas praias
Da América formosa, que nest'hora
Agita de prazer o escuro manto
De intonsas selvas, que lhe veste os ombros,
E pressurosa já os mil tesouros
Do fecundo regaço vos oferta.

Já do seio da esconsa eternidade
Nova série de séculos dourados
Vejo surgirem!... - Novos horizontes
Cheios de luz pelo porvir resplendem!...
Já desparece a bárbara rudeza
Dos primitivos íncolas das selvas,
E à luz imensa que da aurora surge
Da ignorância as sombras se esvaecem!
Os torpes manitós, fuscos vampiros,
Das trevas filhos, de tropel desertam
As lôbregas cavernas, onde há pouco
Hediondas oferendas recebiam;
E o torvado pajé, hirto de espanto,
No imundo altar, onde fumega o sangue,
Vê a chama apagar-se, e pelas brenhas
Agoureiras, espíritos escuta
Sinistros vaticínios ululando!..
Dos maracás o ríspido arruído,
Os rudes sons de dissonante inúbia,
As orgias de sangue, os alaridos
De ferozes poemas entoadas
Entre ranger de dentes, entre pragas,
Entre o estourar de crânios, que rebentam
Aos golpes do terrível tangapema,
Vão ser trocados pelos doces quebros
Do passarinho, que saúda a aurora,
Pelo sonoro ciciar da brisa
Que dos canaviais açouta a coma,
Ou do milho os pendões leve debruça,
Pelo cantar singelo do campônio,
Que bendizendo as horas do repouso,
Co'a enxada ao ombro, ao descair da tarde,
Busca do alvergue o sossegado abrigo,
Onde entre os filhos meneando a roca,
A fiel companheira à porta o espera.
Não mais abrigarão estas florestas
Co'as sussurrantes, perfumadas sombras,
Fadadas a mais plácidos misteres,
Ritos de sangue e bárbaras usanças;
E leis mais brandas, mais humano culto
Aqui bafejarão os áureos berços
De novas gerações, a quem os fados
No regaço da paz e da abundância
Grandioso porvir hão preparado."

X
Calou-se um pouco o espírito celeste,
Qual se uma nuvem lhe roubasse aos olhos
O brilhante painel, que nesse instante
O transportava em divinais arroubos.
Cruza os braços no peito, e após instantes,
Um suspiro exalando, assim prossegue:

XI
"Mas ah! - que véu fatídico e sinistro
Me enturva os olhos!... Lutuosas sombras
Pairam pelo horizonte, que inda há pouco
Se me antolhava límpido e sereno!...
De luta e sangue séculos ainda
Sobre estas regiões têm de volver-se,
Té que se cumpra a última palavra
Dos desígnios do Eterno, e abra-se esplêndido
Esse porvir de luz e de venturas,
Do qual hoje desponta o albor primeiro
Na infinita cadeia das idades!
Por largo tempo ainda o anjo das artes
Gastará seus cinzéis na rude crosta
De feroz barbaria, que estas plagas
A seus domínios traz avassaladas.
Mal regradas paixões, torpe cobiça,
Covarde ignávia, cálculos estúpidos,
Trarão ainda à terra da abundância,
Da riqueza e da paz, miséria e fome,
Guerra e flagícios, cativeiro e morte!





Ó vós, a quem os fados incumbiram
De abrir o seio destas virgens plagas
Às luzes da verdade e do progresso,
Cuidais que aos sons da algema e do azorrague
A missão cumprireis santa e sublime,
Que mal compreendeis?... oh! sois indignos,
Sois traidores ao céu, que vos envia!..
Ingratos!... aqui onde a liberdade,
De vossos tristes climas foragida,
Um asilo feliz vos preparava,
Onde nunca aos ouvidos dos humanos
O retinir dos ferros ecoasse,
Por que vindes vós mesmos algemá-la,
E com dobrados nós atá-la ao tronco,
A cuja sombra em doce paz dormia?...





Deixai, deixai lá nos talados campos
Da velha Europa, aonde em holocausto
De seus tiranos ao feroz capricho
Os povos uns aos outros se degolam,
Onde os tronos um'hora se levantam
Sobre montões de ruínas e cadáveres,
Ora tombando com fracasso horrendo
Com seus destroços as nações esmagam,
Deixai o jugo, e códigos de sangue,
Ominoso legado que heis herdado
Da tirania aos séculos ferrenhos.
Não, não venhais nestes tão puros climas
Inocular o pestilente gérmen
De ruins paixões, de vícios execráveis,
Que das velhas nações corrompe a seiva;
E nem tenteis plantar por estas margens
Vãos preconceitos, fósmeas da antigualha,
Estranhas leis, instituições caducas,
Que em vosso mal impróvidos deixastes
Cravar no chão raízes seculares!





Deixai, que nestas veigas solitárias
Renasça a tolerância, e que algum dia
Novos costumes, leis, que se harmonizem
Aos ditames da eterna sapiência,
Da liberdade à sombra aqui floresçam...





Porém se um dia, ó santa liberdade,
Tens de ver teus altares profanados
Neste país, que os céus te destinaram;
Estas imensas regiões fecundas,
Com toda essa opulência e louçania,
Aos olhos dos mortais, indignos delas,
De chofre pelas ondas devoradas,
De novo nos abismos se sovertam!"

XII
Disse, e no espaço desprendendo o vôo
Foi ocultar seu pranto e seus queixumes
Aos pés do excelso trono de Jeová!

Rio de Janeiro, outubro de 1864.