Suspiros poéticos e saudades (1865)/A Velhice
Longa foi a viagem;
Assaz lutastes; descansai agora.
Depois de haver vingado alpestre monte
Desde o albor da manhã, o peregrino
Afadigado desce,
E envolto em trevas vai pousar no vale.
Para vós assaz auroras madrugaram;
Por vós luas assaz alvas luziram;
Assaz de flores esmaltou-se a terra,
E de frutos as árvores copadas.
Sim, sim, assaz gozastes;
Mas uma voz vos chama, e vos diz: — basta.
Basta! — A hora soou; abre-se a campa,
E o sopro do seu antro,
Como o vapor da cânica caverna
Nas margens do sombrio Aniano lago,[1]
Da vida vos apaga a tênue flama.
Para vós basta, oh Velhice!
Inda o sol tem resplendores,
Inda a noite tem estrelas,
Inda a lua alvos fulgores.
Inda os prados reverdecem
E de florzinhas se arreiam;
Inda, suspensos nos ramos,
Os passarinhos gorjeiam.
Inda o zéfiro sereno
Cheio de aroma, e doçura,
Fruindo o néctar das flores,
Na madrugada murmura.
Inda a cascata ruidosa
Entre seixos se despenha;
Inda o som da sua queda
Ressoa ao longe na brenha.
Inda os regatos deslizam,
As feras nos bosques rugem,
E lambendo a branca areia,
Nas praias as ondas mugem.
Tudo vida inda respira;
A terra não 'stá mudada;
Vós só marchais, oh Velhice,
Triste, débil e curvada.
Vossos olhos se fecharam
Ao quadro da Natureza;
Em torno de vós só giram
A morte, o horror, e a tristeza.
Tudo em seu morno silêncio
Agora vos anuncia
Que a noite só vos pertence,
Que para vós vai-se o dia.
A noite eterna vos estende os braços,
Ah! preparai-vos para o sono eterno.
Basta! — E' hora das preces.
Funéreo som no templo os bronzes vibram,
E o eco seu parece dizer — morte!
Sob o peso da fronte encanecida,
Já se curva e vacila o vosso porte,
Qual co'os flocos de neve a frágil hástea;
Entoastes o cântico da vida,
Entoai vosso cântico de morte;
Como o cândido cisne,
Que indo descer à escuridão do lago,
Cantando diz-lhe adeus na fatal hora,
Para nunca mais ver raiar a aurora.
Basta! — E' hora das preces, oh Velhice!
Para o mundo acabastes.
Vossa alma resgatai do barro impuro;
O céu, que alma vos deu, pede vossa alma,
E a terra vosso corpo está pedindo;
Ah! dai à terra o que vos deu a terra!
Mas ah, não choreis!
E por que chorais?
Se vós não sabeis
Nem o que ganhais,
Nem o que perdeis.
Perdeis a terra, é certo; mas que importa,
Se celeste esperança vos conforta!
Viver é sonhar,
Sonhar é dormir;
Deveis acordar,
Para ao céu subir,
E no céu velar.
Acordai; sossegai o aflito peito,
Que ides deixar o amargurado leito.
O pranto enxugai,
Bani o temor;
O Nome entoai
Do Eterno Senhor;
E a Ele voai.
Vossa bênção lançai à Mocidade,
Que vai na luta entrar da Humanidade.
Paris, janeiro de 1836
==Notas==
- ↑ À margem do lago de Agnano (Anianus lacus dos Romanos) jaz a gruta vulgarmente chamada do cão, pelas experiências que ali se repetem perante os curiosos que a visitam, introduzindo nela um pobre cão, que logo cai asfixiado em respirando o gás carbônico que do chão dela se exala, e no meio do qual se apaga a luz do archote. Neste caso especial, creio, merecerá desculpa o adjetivo cânica, que não vem nos dicionários.