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Histórias e Tradições da Província de Minas Gerais/I

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Quereis, minhas senhoras, que vos conte uma história para disfarçar o enfado destas longas e frigidíssimas noites de maio?

Mas, por melhor que seja a minha vontade, não sei, como possa satisfazer ao vosso pedido... digo mal, – cumprir as vossas ordens.

Este frio enregela-me as asas da imaginação; este vento glacial, que uiva pelos telhados, como uma matilha de cães danados, estes guinchos de corujas, que parecem lamentos de precitos, fazem a inspiração recolherse toda encolhida aos mais íntimos esconderijos do crânio, tiritando de frio e de medo.

A falar-vos verdade, minhas senhoras, tenho o espírito tão seco e estéril, como a caveira de um defunto enterrado há cem anos.

Ah! falei-vos em caveira!...

E não é, que esta idéia de caveira veio despertar-me a reminiscência entorpecida pelo frio?!

Foi como a vara mágica de Moisés, que fez rebentar água em jorros da aridez do rochedo do deserto.

E pois vou contar-vos a história de uma caveira me­morável.

Não se arrepiem, minhas senhoras; não é história de almas do outro mundo, de trasgos, nem de duendes.

É uma simples tradição nacional, ainda bem recente, e da nossa própria terra.

Essa história eu a poderia intitular:


História de uma Cabeça Histórica


Era pelos fins do século passado; em 178...

Nesse tempo, esta capital de Minas, que então com justa razão tinha o nome de Vila Rica, era opulenta e populosa, como bem poucas cidades se podiam contar no Brasil.

Os governadores e fidalgos dessa época rodavam em ricas carruagens tiradas por possantes mulas por essas ladeiras, onde hoje só rincham pesados carros puxados a bois.

Havia quase sempre curros ou touradas, e cavalhadas magníficas; procissões de esplendor e riqueza deslumbrantes; espetáculos teatrais, em que a arte suntuosamente protegida pelos governadores era cultivada com esmero no gosto da época; uma literatura própria, se bem que um tanto abastardada pela imitação do classicismo lusitano, literatura de que foram dignos representantes nomes até hoje célebres.

Gonzaga, Alvarenga Peixoto e Cláudio Manuel da Costa são glórias, que nunca mais se eclipsarão.

Havia regozijos e festas de toda a espécie, muito luxo, comércio interior ativo, e o povo nadava na abundância.

E tudo isso por quê?

Porque naquela época o ouro por essas montanhas como que brotava à flor da terra.

O ouro era tão abundante, que os próprios pretos cativos, com as migalhas que escapavam das lavras de seus senhores, edificaram mais de um templo magnífico, que até hoje aí estão, e as pretas, quando iam às suas festas costumeiras, polvilhavam a carapinha com areia de ouro.

Mas em contraposição a tudo isso, o povo gemia debaixo da mais vil, da mais infamante escravidão.

O bem-estar material era grande; mas a degradação moral era profunda.

Ali sobre aquele morro se erguia o vulto sinistro e ameaçador da forca, que nunca se desarmava, e em que a um simples aceno da tirania, apenas com uma aparente forma de processo, se imolava tanto o criminoso como o inocente.

Acolá, no meio daquela praça pública, em face de um templo cristão, – como um sarcasmo vivo, – até bem pouco tempo se achava alçado o pelourinho, ainda mais infamante, em que o cidadão era azorragado publicamente, como o mais vil escravo.

Os capitães-mores também de sua parte castigavam arbitrariamente com açoutes, com o tronco e até com a palmatória as mais leves faltas de seus governados.

O ouro extraído das minas pelo braço do povo era na sua maior parte destinado a alimentar o luxo e a cobiça de seus opressores.

Minas, bem como o Brasil inteiro, era bem como uma vasta fazenda explorada em proveito da metrópole.

O povo era uma turma de escravos, que trabalhavam debaixo do azorrague de seus feitores, – os governadores, capitães-mores, guardas-mores etc.

A fazenda prosperava; mas os escravos indóceis começavam a se enfadar de arroteá-la só para benefício de seus se­nhores.

II

E nessa época de riqueza e opulência, de servilismo e degradação social, no meio da praça principal desta cidade se via uma cabeça humana dessecada, cravada sobre um alto poste.

Este poste e esta cabeça eram noite e dia guardados por uma sentinela.

E à noite uma lanterna se acendia para alumiar o lúgu­bre espetáculo.

Havia dois ou três anos que este sinistro padrão da mais brutal e feroz tirania existia ali hasteado.

E por que razão esse cuidado em conservar ali tão guar­dado, tão vigiado, aquele triste e miserando resto de uma vítima há tanto tempo sacrificada?...

Para que aquela sentinela ali postada constantemente dia e noite?...

Temiam acaso que aquele crânio oco e ressequido onde há tanto tempo se extinguira a vida e o pensamento, de novo se reanimasse, e reunindo-se ao tronco esquartejado e espar­so, desse outra vez o sinal da revolta ao povo oprimido?...

Ou receavam que esse crânio, hasteado na ponta do estan­darte da emancipação, fosse o sinal certo da queda dos tira­nos e do triunfo da liberdade, como esse célebre tambor que os soldados húngaros fizeram da pele de seu bravo chefe Ziska, morto no campo da batalha, tambor que quando rufava à frente deles, era seguro prenúncio da vitória?

Pobre Tiradentes!... ainda que não fosse tão nobre e santa a causa por que te imolaste, a morte afrontosa que sofreste, e a crueldade, direi asquerosa, com que profanaram teus miserandos restos, eram motivos bastantes para aben­çoarmos tua memória e execrarmos a de teus algozes.

III

Era uma noite tenebrosa, horrenda, como essa que aí vai correndo.

Impetuosa ventania, zunindo pelos tetos da antiga e opu­lenta Vila Rica submersa no sono e no silêncio, impelia pelos ares camadas e camadas de espessa e frigidíssima neblina, e fazendo oscilar sobre seu poste a caveira do mártir da liber­dade com sinistro estrépito, agitava-lhe os compridos cabelos castanhos ainda aderentes ao crânio.

Parecia que aquela cabeça heróica, bafejada pelo sopro da liberdade que rugia das montanhas, em seu fúnebre oscilar ameaçava ainda os tiranos, e lhes predizia a próxima ruína.

O pálido clarão da lanterna, que balouçava ao vento, ondulava lúgubre sobre a ossada branquicenta, desenhando ao vivo as cavidades negras dos olhos e a dentadura amarelada.

O pobre sentinela, talvez considerando que estava de guarda a um crânio ressequido que a ninguém podia fazer mal, e que longe de excitar a cobiça, só poderia inspirar horror, o sentinela sentado no hão, recostado sobre uma pe­dra, e com a arma sobre os joelhos, deixava-se furtar do sono.

Um vulto todo rebuçado surge por entre as trevas, e se aproxima cautelosamente do tremendo poste.

Com uma comprida vara que trazia, faz saltar do poste a caveira, apanha-a rapidamente, e de novo desaparece com o favor das trevas e do nevoeiro.

Tudo isto foi feito com tal presteza, que quando o guarda, despertado pelo som rouco da caveira ao cair, deu fé do ocorrido, já era tarde. Viu apenas uma sombra engolfar-se e desaparecer através do nevoeiro.

Um instante depois o relógio da cadeia badalava meia­-noite.

O guarda contou que um fantasma de fogo, esvoaçando pelos ares, havia roubado o crânio, e desaparecera nas nuvens.

As sentinelas da cadeia atestaram o fato e o guarda do poste foi acreditado, e não sofreu castigo.


Não era mesmo para acreditar que o anjo do Brasil viesse reivindicar aquela relíquia veneranda do mártir da liberdade?...

IV

Conheceis essa comprida rua, que na extremidade ocidental desta cidade se estende isolada por uma encosta acima, como a cauda de um lagarto.

Chama-se a rua das Cabeças.

A origem desse nome sinistro vem de que aí se fincavam na ponta de estacas as cabeças dos míseros enforcados pelas esquinas dos becos.

– Para servir de exemplo e escarmento aos povos – diziam os tiranos.

Mas os fatos vieram depois comprovar-lhes, que erravam, procedendo assim.

No alto dessa rua, não há muitos anos, existia ainda um velho de vida misteriosa e retraída, a quem o povo olhava com respeito e curiosidade.

Vivendo sozinho em uma casa quase arruinada, comunicando-se raras vezes com seus semelhantes e só em caso de necessidade, parecia um anacoreta ou um homem possuído de singular monomania.

Entretanto os curiosos, que nunca faltam nas cidades, espiolhando um dia pelas fendas das arruinadas paredes da morada do velho, devassaram um singularíssimo segredo de sua vida íntima.

Viram-no abrir com ar de religioso respeito a portinhola de um nicho ou de um armário praticado na parede, tirar dele um crânio humano branco e mirrado, depô-lo silenciosamente sobre uma mesa colocada em frente a um oratório, e ajoelhando-se depois com os braços encostados sobre a mesa, assim ficar por largo tempo, em atitude de profunda meditação, ou no êxtase de uma oração.

Mas esta descoberta, como bem se pode ver, em nada veio dissipar o mistério que pairava sobre a vida do velho. Pelo contrário vinha ainda rodeá-la de mais um sinistro prestígio, e em vez de acalmar a curiosidade do povo, concor­reu para mais excitá-la.

Que crânio seria esse, que o velho guardava, e parecia venerar com religioso acatamento?

Seria relíquia de algum ente amado?

Seria o velho algum assassino, que em expiação de seu crime queria ter sempre diante de si o crânio da sua vítima para lacerar continuamente a consciência com o cilício do re­morso?...

Seria algum cenobita imitador de S. Jerônimo, que tinha sempre diante de seus olhos uma caveira humana a fim de conservar de contínuo presente ao espírito o nada da exis­tência?

A maior parte do povo porém ficou tendo o pobre velho por um grande feiticeiro, e por isso tinha-lhe medo e o res­peitava.

Assim pois, descobrindo aquele segredo da vida do velho ainda a tornaram mais misteriosa e quase sinistra.

Pouco tempo depois morreu o velho, foi pobremente enterrado no adro relvado da capela do Senhor Bom Jesus, sita na mesma rua, e sua casa tombando em ruínas, ficou abandonada, pois se já em vida de seu dono era objeto de terror para o povo, muito mais o ficou sendo depois de seu falecimento.

Não foi senão alguns anos depois, que se veio no co­nhecimento, de que o velho misterioso não era outro senão o ousado roubador da cabeça do Tiradentes, e que a caveira, que com tão religioso cuidado guardava e venerava, era a daquele ilustre e desditoso mártir do primeiro movimento emancipador.

Contou depois isto alguém, que era o único depositário do segredo do velho, e que por ignorância ou indiferença ligava pouca importância a um fato tão curioso.

Que é feito porém desse crânio histórico, que tão generosos pensamentos abrigou outrora em seu seio?

Quereria seu possuidor em sua fanática veneração pela liberdade e por aquela relíquia do seu principal mártir, que ela fosse com ele enterrada, e seria cumprida a sua última vontade?

Ou ficaria essa relíquia, – digna de ser encerrada em uma urna de ouro, – calcada debaixo dos entulhos das pa­redes esboroadas da habitação do velho?...

Ninguém o sabe.

Os fatos, que acabo de narrar, posto que pouco conhecidos, são tradicionais.

Perguntem aos velhos, e mesmo a alguns moços mais curiosos, das coisas antigas da nossa terra, e se convencerão de que esta história não é de minha lavra.


Ouro Preto, maio de 1867.