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Alice no País do Espelho (Trad. Lobato, 2ª edição)/Capítulo 1

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CAPÍTULO I

A CASA DO ESPELHO


DUMA COISA Alice estava certa: de que o gatinho branco nada tinha que ver com aquilo. A culpa era tôda do gatinho prêto. Isso porque enquanto o gatinho prêto estava reinando na sala, o gatinho branco estêve nas unhas de sua mãe Diná, a sofrer uma lavagem de cara.

Diná lavava os seus filhotes assim: agarrava um dêles pela orelha e o fixava com uma das patas ao chão;

com a outra esfregava-lhe a cara, a começar pelo focinho. E êles se submetiam a essa toalete muito quietos, rosnando apenas, pois sabiam que a esfrega era para bem dêles.

O gatinho prêto havia passado a manhã na sala, sôlto, brincando, e ainda lá estava aos pinotes, enquanto Alice, meio adormecida em sua poltrona, falava sòzinha, com os olhos semi-abertos fixos no tapête onde jazia um novêlo de lã quase todo desenrolado.

— Olá, seu maroto! murmurou ela agarrando o gatinho pelo pescoço e beijando-o para mostrar a sua contrariedade. Depois, voltando-se para Diná, disse: — Olhe, é preciso dar melhor educação aos seus filhos, ouviu? Ainda está em tempo...

Alice tomou do chão o novêlo de lã, que pôs no colo, ao lado do gatinho prêto. Ia enrolá-lo de novo, trabalho que não rendia, porque Alice não parava de falar consigo própria e distrair-se, achando graça na atenção com que o gatinho acompanhava aquêle serviço. Às vêzes procurando ajudá-la êle a atrasava ainda mais.

— Sabe que dia é amanhã? perguntou-lhe a menina. Não sabe! Nunca sabe nada, êste bobinho. Pois teria sabido, se tivesse estado comigo à janela. Teria visto as crianças amontoarem na rua lenha para uma fogueira o que quer dizer que estamos em vésperas de São João. Teremos uma bela fogueira amanhã, vai ver.

Enquanto falava ia enrolando a lã em redor do pescoço do gatinho, que de súbito se debateu e fêz de novo cair o novêlo.

Sem erguer-se da poltrona Alice começou a ralhar com o maroto.

— Eu devia ficar zangada, sabe? Você é o tipo do atrapalhador de serviço. Que faria se eu abrisse a janela e o atirasse na neve, hein? Olhe, nem mais um pio, está ouvindo?

E com o dedo indicador erguido:

— Vou passar em revista tôdas as suas más ações de hoje. Em primeiro lugar você miou muito quando

Diná o esfregava, de manhã. Não negue. Ouvi perfeitamente. Que diz? Como? A pata de Diná esbarrou em seu olhinho direito? É? Mas de quem foi a culpa? Por que ficou de ôlho aberto? Não venha com essa escapatória, que não aceito. Vamos agora à segunda má ação. Você puxou o gatinho branco pelo rabo quando êle estava a beber o seu pires de leite. Quê? Estava com sêde? Êle também estava — e havia chegado primeiro. Agora, a terceira má ação: desenrolar o meu novêlo de lã. Três culpas, Kitty, e ainda não foi punido por nenhuma! Estou juntando os castigos para quarta-feira.

Depois, pensando nas suas próprias reinações, continuou:

— Suponha-se que êles juntem os meus castigos. Que fariam no fim do ano? Com certeza me mandariam para a cadeia. Ou — deixe-me ver — suponha-se que cada castigo consista em me deixarem sem jantar. Então, no dia do castigo somado, eu teria de ficar sem cinqüenta jantares, pelo menos...

E para o gatinho:

— Está ouvindo o bater da neve na vidraça, Kitty? Gosto dêsse barulhinho. Parece que a neve está beijando os vidros do outro lado, não? Será que a neve beija assim as árvores e os campos porque os ama? Depois ela os recobre duma camada branquinha, talvez dizendo: “Durmam, queridos, durmam bem até que o verão retorne.” E quando tudo renasce de novo ao calor do verão, Kitty, as árvores e os campos se vestem de verde e dançam — dançam tão lindo quando o vento sopra!... Oh, eu quero que seja assim! concluiu Alice deixando cair o novêlo para bater palmas de alegria. Quero que as árvores realmente comecem a dormir no outono quando as fôlhas entram a amarelar!...

Depois:

— Kitty, você sabe jogar xadrez? Não se ria. Estou falando sério. Pergunto porque quando eu estava a jogar xadrez inda há pouco você olhava para o tabuleiro, como quem entende do jôgo. E quando eu disse: “Xeque!” você rosnou. Realmente, foi um belo xeque, Kitty, e eu teria ganho a partida se não fôsse aquêle bispo negro com o qual não contei. Faz de conta, Kitty...

Impossível tomar nota da metade das coisas que Alice dizia quando vinha com um dos seus faz-de-contas. Justamente na véspera havia ela tido uma séria disputa com sua irmã por causa dum faz-de-conta. “Faz de conta que somos reis e rainhas”, dissera Alice à irmã, que imediatamente a interrompeu, alegando que como eram apenas duas, não podiam ser reis e rainhas. “Muito bem”, replicou Alice sem se atrapalhar. “Você, que se julga singular, ficará sendo um rei ou uma rainha, à escolha. Eu ficarei sendo o resto.”

Outra vez Alice realmente apavorou a sua velha ama, gritando-lhe de súbito ao ouvido: “Ama, faz de conta que sou uma hiena e você, um osso!”

Mas estas coisas estão nos afastando da cena de Alice com o gatinho. Voltemos atrás. — Faz de conta que você é a Rainha Branca, Kitty. Se se puser de pé e cruzar os braços, fica tal qual uma rainha de xadrez. Experimente, vamos ver! E Alice tomou a Rainha Branca do tabuleiro para a pôr diante do gatinho como modêlo. De nada adiantou. O gatinho não sabia cruzar os braços. Para castigá-lo Alice o colocou em face do espelho a fim de que se visse a si próprio e se envergonhasse. — E se não cruza os braços direitinho disse-lhe ela — atiro-o para dentro da Casa do Espelho. Gostaria disso?

Em seguida explicou:

— Escute. Vou contar as minhas idéias a respeito da Casa do Espelho. Antes de mais nada, porém, note que a sala que se vê no espelho é esta mesma sala, mas ao contrário. Posso ver tudo da sala, menos o que está atrás da chaminé. Oh, eu queria tanto ver isso!... Queria saber se lá atrás há fogo durante o inverno. A gente nunca sabe se há fogo senão quando aparece fumaça — e então a Casa do Espelho aparece cheia de fumaça. Mas isso pode ser falso. Pode parecer que há fogo sem haver fogo. E os livros da Casa do Espelho? São iguais aos livros comuns mas com as letras ao contrário. Já fiz a experiência. Quereria você, Kitty, viver na Casa do Espelho? Não sei se encontraria pires de leite lá. Talvez leite de espelho, que é leite ao contrário, não sirva para beber. Mas, oh, Kitty, deve ser lindo viver na Casa do Espelho! Vamos experimentar. Faz de conta que já conseguimos penetrar lá dentro. Ande comigo.

Alice trepou à chaminé, varou o vidro do espelho e viu-se na casa dêle. A primeira coisa que fêz foi olhar se havia fogo na chaminé, do outro lado — e ficou satisfeita de ver que havia. “Bravos! Assim ficarei aqui tão quentinha como na outra sala”, pensou Alice, “ou ainda mais quente, porque não haverá ninguém para me impedir de me aproximar demais do fogo.”

E então Alice começou a observar todas as coisas e notou que o que era igual ao que havia na sala comum não tinha interêsse para ela, visto ser igual, mas que o resto era bem diferente. As pinturas das paredes, perto do fogo, por exemplo, pareciam vivas. O relógio da chaminé tinha o aspecto dum velhinho a lhe fazer caretas.

Êles não conservam esta sala tão bem arrumada como a lá de casa”, pensou Alice ao ver diversas peças de xadrez caídas nas cinzas da chaminé. Logo depois

observou que essas peças estavam vivinhas e passeando duas a duas.

— Aqui está o Rei Branco e com êle a Rainha Branca, murmurou Alice baixinho para não assustá-los. Lá estão o Rei Negro e a Rainha Negra, sentados no atiçador de fogo e perto dêles, duas Torres de braços dados. Será que podem ouvir-me? Que não podem ver-me, sei, pois chego bem pertinho sem que se assustem. Creio que fiquei invisível...

Nisto alguma coisa começou a mexer-se na mesa, atrás de Alice. Voltando o rosto viu ela um Peão Branco que rolava impaciente e batia o pé. Ficou atenta, a ver o que sucedia.

— Meu filho! gritou a Rainha Branca precipitando-se para o lado do peão com tal ímpeto que derrubou o Rei na cinza. Meu lírio! Meu imperial gatinho! gritava ela tentando transpor a grade da chaminé.

— Imperial malandro! murmurou o Rei a esfregar o nariz amarrotado pela queda. Bem que tinha êle razão de estar danado com a Rainha, pois ficara coberto de cinzas da cabeça aos pés.

Ansiosa por ser útil, Alice tomou a Rainha e a colocou no tabuleiro, perto do peãozinho que esperneava com ataque. Mas o fato de ser erguida do chão até à mesa fêz a Rainha perder o fôlego, de modo que ao chegar permaneceu uns minutos arquejante, sem poder abraçar o barulhento filhinho. Logo porém que recobrou completamente o fôlego, gritou para o Rei, que ficara embaixo, na cinza: Cuidado com o vulcão!

— Que vulcão? perguntou o Rei, olhando ansioso para o lado do fogo como se só dali pudesse aparecer um vulcão.

— O vulcão que me arrojou aqui! gritou a Rainha sempre aflita. Suba, mas pelo caminho natural. Evite ser trazido pelo vulcão.

Alice pôs-se a olhar para o Rei. O coitado subia lentamente, com grande esfôrço.

— Assim levará horas para chegar, disse-lhe ela. Quer que o ajude?

O Rei nada respondeu. Estava provado que não a ouvia, nem a via. Em vista disso Alice o tomou entre os dedos e o ergueu até ao tabuleiro, mas lentamente e não de golpe, como fizera com a Rainha, de modo que êle pudesse ir-se acostumando com as diferenças de altitude. E antes de pô-lo no tabuleiro achou conveniente espaná-lo da cinza que lhe recobria o corpo.

Ninguém pode fazer idéia da cara do Rei ao ver-se suspenso no ar por invisível mão e, além disso, espanado. Seus olhos arregalaram-se e sua bôca abriu-se tôda.

— Oh, nada de cara tão feia! exclamou a menina, esquecida de que o Rei era surdo. Você me faz rir tanto que acabará caindo no chão. Meus dedos já estão perdendo a força... E feche essa bocarra, para não engolir cinza.

Assim dizendo, Alice acabou de espaná-lo e o colocou no tabuleiro. Ao ser largado lá o Rei caiu de costas. Vendo-o imóvel e como sem sentidos, Alice, muito aflita, correu em busca de água para lhe borrifar o rosto. Não havia água. Alice, porém, passou mão num tinteiro e voltou correndo para despejá-lo na cara do Rei. Felizmente o encontrou já voltado a si e cochichando com a Rainha, tão baixo que Alice mal podia ouvir.

— Tive tanto mêdo que esfriei até ao fundo dos ossos, dizia êle.

— Você nunca teve ossos, meu caro... respondeu a Rainha.

— O horror daquele momento!... prosseguiu o Rei. Jamais poderei esquecê-lo...

— Esquece, sim. Você é um grande esquecido. Para que não esqueça deve tomar nota.

O Rei aceitou o conselho e tirando do bôlso um enorme livro de notas começou a escrever com um lápis aquêle horror que sentira. Vendo as suas dificuldades, Alice resolveu ajudá-lo. Veio para trás dêle e segurou na ponta do lápis para o guiar. O pobre Rei ficou atrapalhado e por alguns instantes lutou em silêncio com o lápis. Alice, porém, que tinha mais fôrça, venceu.

— Tenho que arranjar outro lápis, disse o rei por fim. Este está muito pesado e escreve por si coisas que não tenho intenção de escrever.

— Que coisas êle escreve? perguntou a Rainha com os olhos no livro de notas, onde leu: O Cavalo Branco está escorregando do atiçador. Êle equilibra-se mal. Depois disse: — Mas isto não pode ser a nota do horror que você sentiu, meu caro!

Havia na mesa, perto de Alice, um livro, e enquanto a menina permanecia sentada a observar o Rei (Alice ainda estava com o tinteiro na mão para caso o Rei desfalecesse outra vez), voltou-lhe as folhas para ler algum pedacinho. O livro, entretanto, era escrito numa língua desconhecida, como se poderá ver por esta amostra:

!sárt-sáz, sárt-sáZ! siod, mU! siod, mU
sáz - ra on uinuz adapse A
!sárt - uiac ortsnom od açebac A
... sárt arap odnaetoniP

— Parece um lindo verso, disse consigo Alice, que a princípio nada entendera. Quem sabe se está ao contrário e com um espelho poderei ler direito? Vamos fazer a experiência. Para isso tenho que passar à outra sala. Sim sim, antes, porém, quero dar uma vista dolhos pelo jardim.

Mal o pensou e já o pôs em prática. Deixou a sala a correr, descendo pelo corrimão em vez de descer pela escada. Essa história de descer por escadas é coisa de gente velha. Desceu voando e num segundo foi parar no vestíbulo que dava para o jardim.




Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.