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Suspiros poéticos e saudades (1865)/As Ruinas de Roma

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À claridade da Lua

Oh que espetáculo fúnebre e sublime!
Aqui foi Roma! — Aqui ergueu-se altiva
A Senhora do Mundo!
E de tanta grandeza eis o que resta!

Quantas trombetas no Universo soam,
E os fastos marciais da augusta Roma
Sonorosas proclamam!
Quantas vozes de Roma o nome entoam!
Mas uma vista só destas relíquias,
Estas colunas, qu'inda se sustentam
Meias fora das covas, meias dentro,
Como espectros alçados dos sepulcros;
Este mesmo silêncio, tudo fala,
Sem turbar os sentidos assombrados!
Oh grandezas, quão perto estais do nada!

Eu saudei-vos, ruínas, quando o dia
Sobre vós seus fulgores entornava,
Vosso florido manto realçando;
Quão longe então estáveis
Desta mística, horrível majestade!
Oh que não é o sol o astro dos mortos!
Nem se cobre de púrpura o cadáver!

Tu és, oh lua, o astro das ruínas!
No páramo celeste solitária
Plácida alvejas, de palor tingindo
Estes negros destroços,
Qual a trêmula lâmpada suspensa
No asilo dos finados,
Que só das trevas o horror aclara,
Para mais realçar o horror da morte.

Como uma ave de agouro em clima estranho,
De tão longínquas plagas transportado,
Plagas à culta Europa ainda ignotas
Quando já isto tudo eram ruínas,
Eis-me aqui sobre o monte Palatino!
E amanhã? — Onde irei? só Deus o sabe.

Oh pó erguido! Oh pedras! Oh ruínas!
Que sublimes lições estais ditando
Nessa muda linguagem dos sepulcros!
Oh desgraçado o povo que as não ouve!
Desgraçado quem não as compreende!
Vós sois mais eloqüentes
Que os vossos oradores, cujas vozes
Vezes mil noutros tempos ecoastes:
Vossa voz só nos seios d'alma soa,
Como a terrível voz da consciência,
Ou como o gelo, que entorpece o corpo,
E a vida toda ao coração concentra.

O que há aí mais sublime que esse Mário,
Gênio de morte, um homem curvo à morte,
Sentado nas ruínas de um Império?
Seu rosto baço... seu olhar sombrio...
Que idéia o pensamento lhe revolve?
Quem não dirá que em torno d'ele giram,
Dos destroços erguidos,
Milhões de espectros, cujas negras sombras
Em seu feroz semblante se desenham?
Quem não dirá que ele ouve
Carpidores gemidos,
Magoados queixumes
De angustiadas mães, de tristes órfãos,
Que lhe pedem seu pão, e o amaldiçoam?

Da Humanidade inteira és símb'lo, oh Mário!
Do pó tirada pela mão do Eterno,
Desde o berço do sol té seu sepulcro,
Quantas sofrido tem vicissitudes?
Quantas fases tem tido? E marcha ainda!
Quantas vezes na marcha tortuosa,
Qual no mar o baixel, que o vento busca,
Longas calmas sofreu, longas tormentas?

E qual o fim será da Humanidade?
Que porto lhe destina a Providência?
Mas quem pode do seio do futuro
Arrancar este arcano?
Confia, Humanidade, em teu Piloto
Confia; a Providência é quem te guia.

Oh Deus, Mário também serás um dia!
A vista espraiarás pelo Universo,
E só verás ruínas!...
E todos esses luminosos Mundos,
Do santuário teu fanais brilhantes,
Ter-se-ão extinguido!
E a quem dirás então? — Eis-me sozinho
Sentado sobre o exício do Universo,
Concentrado em mim mesmo, no infinito;
Dei fim à Humanidade; ei-la em poeira;
Um sopro de meus lábios sumiu tudo!

Quem te ouvirá, oh Deus? — A Eternidade!
Oh futuro, oh futuro inacessível
Aos mortais olhos, só a Deus presente!

Oh pó erguido! oh pedras! oh ruínas!
Ah! quantas gerações aqui passaram,
Cujos rastos impressos na poeira
O vento os dissipou, como seus nomes
Pela esponja do tempo extintos foram!
De quantas cenas testemunhas fostes!
Que infâmias vistes, que cruéis delitos
Inda aos homens ocultos!
Que batalhas! que horrores!

Que milhões de cadáveres caíram.
Entre estes sete montes, como pedras
Despegado se têm destes fragmentos!
Tudo isto era um só monte,
Era um vasto redil de armentio gado.[1]

Que acesa lava em borbotões fervendo
Engoliu estes Templos?
Que estragador, ardente meteoro,
Despejado do Inferno, talou tudo?
Oh Guiscard! oh Guiscard! estas muralhas
Escapadas do incêndio, e enfumaçadas,
Inda te chamam fero, inda te acusam![2]

Lá stá o Capitólio!
Quantos cativos Reis, ao carro atados
Do seu triunfador, ali subiram!
Ali Mânlio morou; dali a um passo
Foi as águas mortais beber do Tibre.[3]
Aqueles muros Catilina viram,
E aos acentos de Cícero tremeram.
Ali se decretava a liberdade,
A escravidão dos Reis, e dos Impérios.
Ali entre punhais expirou César,
Só por querer cingir a calva fronte
Co'o diadema real, depondo os louros;
Mas o que ao grande César foi negado,
Tibérios, e Calígulas tiveram!
Tanto dos homens a injustiça pode,
Ou tanto a corrupção que o brio extingue.

Ah! saiamos daqui, que profanado
Foi este monte, habitação dos Grachos,
E do imortal filósofo de Túsculo,
Pelo mais ruim tirano.
Eis seu palácio de ouro;
Nero aqui se entregava aos seus delírios.
Lá palideja ao longe aquela torre[4]
Como um fantasma ao clarear da lua!
Ali ria-se Nero
Com satânicos olhos cintilantes,
Nos quais de Roma a imagem se pintava
Envolta em crepitantes labaredas,
E o povo que expirava emaranhado
Entre as ondas de fogo, e de fumaça.
Cantor do inferno, o monstro, o parricida
Tanto horror celebrava ao som da Lira!
O que não mancha um monstro?
Oh! que o seu coração era de ferro!
Os hórridos gemidos,
Os gritos d'agonia
Das moribundas vítimas das chamas,
Aos ouvidos de Nero acordos eram!

Triste Jerusalém, co'os teus despojos
Ergueu-se este arco a Tito triunfante.
Este outro a Constantino,
Vencedor de Maxêncio e de Licínio,
Herói, que a Cruz alçou no Capitólio,
Aras pagãs a Cristo consagrando.

Mas silêncio... Silêncio... Ouço gemidos,
Que se escapam dali, entre as arcadas
Do Flávio anfiteatro!
Quem a esta hora geme?
Estas pedras serão? espectadoras
Outrora de cruéis, sangrentas cenas,
Que doídas talvez inda hoje chorem,
Quando homens, que as pisavam, aplaudiam
O espetáculo infame?

Não, não; são os cristãos, são penitentes,
Que abraçados co'a Cruz prostrados jazem,
E choram sobre o chão de pó, e sangue,
As palavras ouvindo do Eremita,[5]
Que n'alma lhes embebe a Eternidade.
Orai, cristãos, orai; pedi ao Eterno,
Por vós, por vossos pais, por vossos filhos.

Que sons funéreos de sagrados bronzes
Longos vão reboando
Nestas imensas, lúgubres arcadas?
Oh meu Deus, que terrível pensamento
Estes sons repetidos me despertam!
Aquela vasta cúpula, que o gênio
Nos ares colocou em glória tua,
E às egípcias pirâmides supera;
Aquela torre, donde agora partem
Os sons, que estas abóbadas retumbam;
Todo aquele soberbo monumento,
Rico de mil prodígios espantosos,
Tudo isso cairá!... serão ruínas!
Futuras gerações sobre seus combros
De mausoléus, de estátuas, de colunas,
Subirão, oh meu Deus; e a essas pedras
Perguntarão: Que mãos vos elevaram?
Que mãos vos destruíram?

Ind'hoje eu vi o sol, num lago de ouro,
Entre montanhas de rubins acesos,
Atrás daquela cúpula ocultar-se.
Pois bem, oh sol, tu passarás um dia
Nesse mesmo lugar onde declinas;
Não ouvirás os sons religiosos
Dos órgãos, que hoje escutas;
Descoberto verás o santuário,
Prostradas as colunas em pedaços,
Quebrados os altares,
Aberto, e destruído o Vaticano;
Aí se aninharão noturnas aves,
Reptis passearão na relva e musgo;
E apenas ouvirás seus tristes guinchos!
E o que dirás, oh sol, de tanto estrago?
Dirás, sem suspender a marcha tua:
"Mais que as obras dos homens,
De Deus duram as obras.
Tudo o que é dos mortais a morte sela.
Jamais minguei de luz, tanta luz dando
Desde que Jeová do caos tirou-me.
Por que caíste, oh Templo?
Tu, que espanto do mundo outrora foste?
Tu, que outrora soberbo
Meu luminoso oceano dividias,
Erguendo tua sombra até meu rosto?"

Quantas vezes o filho pisa a terra
Que o cadáver do pai, ou mãe encobre,
Inda enfeitado co'as herdadas jóias?
Assim da. prisca Roma a filha herdeira
Da pompa sua, majestosa se ergue
Sobre o imenso esqueleto mutilado,
Da augusta soberana.
Filha de Roma, cairás como ela!

Estes desenterrados obeliscos,
Que agora entre teus muros se levantam,
Arrancados do Egito, quantas quedas
De cidades têm visto, e terão inda
Novos leitos no pó de Impérios novos!
Filha de Roma, cairás como ela!

As obras dos mortais como eles morrem;
Nem duram as cidades mais que os cedros,
Que espontânea produz a Natureza;
Nova planta da extinta se alimenta;
Fênix é o Universo,
Que, morrendo, renasce a cada instante.
Tudo o que o homem vê morte respira;
E se tu, oh meu Deus, não és eterno,
O que é eterno então? o que? o Nada?
Transitório será tudo no Mundo?
E o dever, e a justiça em que se firmam?
Oh Razão, o que és tu? — Ímpios, calai-vos,
Loucos sois delirantes.
Não, oh sábio Spinosa,
Tu não eras ateu, não te entenderam;[6]
Um Deus há sempiterno, o Ser dos seres.

Filha de Roma, cairás como ela.
Outra herdará teu nome, e teus tesouros,
E com tuas riquezas adornada,
Seu estrado fará do teu sepulcro.
Mas quando este Universo se aniquile,
Na memória de Deus serás eterna.

Roma, 25 de janeiro de 1835

Notas

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  1. Depois da destruição do Foro Romano, pelo fero Rober Guiscard, em 1084, toda esta parte da antiga Roma, desde S. João de Laterano até o Capitólio, tão entulhada ficou, que a terra, pedras, e imundícias cobriram as ruínas, que ainda hoje se desencavam; aí apascentavam rebanhos de vacas, e daí veio o nome de Campo Vaccino, com que ainda hoje é conhecido.
  2. A destruição de Roma é devida, como vimos na antecedente nota, ao cavaleiro Rober Guiscard de Hauteville, filho de Tancrède, que, capitaneando os Normandos, entrara à testa de um formidável exército em Roma em 1084, fazendo recuar Henrique diante de si, e pondo fogo na cidade, desde S. João de Laterano até o Coliseu. Depois do saque dos Normandos ficou a antiga Roma deserta, e a população transportou-se toda inteira além do Capitólio, que em outro tempo fora o campo de Marte.
  3. Chamo mortais as águas do Tibre, não que elas venenosas sejam, mas porque aí morriam afogados os condenados de Estado, que da rocha Tarpeia se precipitavam, como Mânlio, e outros, de que fala a História.
  4. Mostra-se ainda em Roma uma torre quadrada, que no meio da cidade se eleva, na qual, diz-se, Nero se abrigara, para gozar da horrível cena do incêndio de Roma. Aí tangia ele a lira, enquanto as chamas devoravam a cidade. O verbo palidejar, de que me sirvo, creio que não vem nos dicionários, nem me lembra tê-lo encontrado em nenhum autor; se sou o primeiro que o introduzo na língua, poderei alegar em seu favor, que, tendo nós branquejar, negrejar, amarelejar e outros de igual desinência, nenhuma dúvida poderá este encontrar da parte de acanhados puristas; demais ele explica perfeitamente o efeito da torre em questão, esclarecida pelo clarão da lua. Aproveitando-me da natureza desta nota, direi que a filosofia espiritualística, que tantos progressos tem feito entre alemães e franceses, tem adotado novos termos e dado a velhas palavras novas terminações, como, por exemplo, idealidade, religiosidade, progressibilidade etc. Estas palavras representam novas idéias e delas nos podemos servir sem escrúpulo; de outra maneira condenemos as ciências e a língua à imobilidade.
  5. Há no recinto do anfiteatro Flávio (Coliseu) 14 altares, representando os martírios de Jesus Cristo, no meio uma cruz; servem esses altares para as estações penitenciais; aí vimos na Quaresma quantidade de povo prostrado, escutando as pregações dos missionários.
  6. Spinosa é considerado vulgarmente como ateu; filósofos modernos fazem-lhe justiça. Seu sistema da mais alta Metafísica não tem sido interpretado como devia, que mais pende ele para o panteísmo que para o ateísmo. De sua doutrina claramente se colige que ele concebia um Ser necessário, substancial e perfeito, que é Deus, e o resto só tem uma existência fenomenal e contingente. Pode dizer-se, rigorosamente falando, que não há ateus, pois que aqueles mesmos que parecem professar tais princípios, ou dão existência a uma substância primária, seja o nome qual for, ou se contradizem a cada passo.