Eu (Augusto dos Anjos, 1912)/Queixas Nocturnas: diferenças entre revisões

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Quem foi que viu a minha Dor chorando?!

Saio. Minh'alma sai agoniada.

Andam monstros sombrios pela estrada

E pela estrada, entre estes monstros, ando!

Não trago sobre a túnica fingida

As insígnias medonhas do infeliz

Como os falsos mendigos de Paris

Na atra rua de Santa Margarida.

O quadro de aflições que me consomem

O próprio Pedro Américo não pinta...

Para pintá-lo, era preciso a tinta

Feita de todos os tormentos do homem!

Como um ladrão sentado numa ponte

Espera alguém, armado de arcabuz,

Na ânsia incoercível de roubar a luz,

Estou á espera de que o Sol desponte!

Bati nas pedras dum tormento rude

E a minha mágoa de hoje é tão intensa

Que eu penso que a Alegria é uma doença

E a Tristeza é minha única saúde.

As minhas roupas, quero até rompê-las!

Quero, arrancado das prisões carnais.

Viver na luz dos astros imortais,

Abraçado com todas as estrelas!

A Noite vai crescendo apavorante

E dentro do meu peito, no combate,

A Eternidade esmagadora bate

Numa dilatação exorbitante!

E eu luto contra a universal grandeza

Na mais terrível desesperação

É a luta, é o prélio enorme, é a rebelião

Da criatura contra a natureza!

Para essas lutas uma vida é pouca

Inda mesmo que os músculos se esforcem;

Os pobres braços do mortal se torcem

E o sangue jorra, em coalhos, pela boca.

E muitas vezes a agonia é tanta

Que, rolando dos últimos degraus,

O Hércules treme e vai tombar no caos

De onde seu corpo nunca mais levanta!

É natural que esse Hércules se estorça,

E tombe para sempre nessas lutas,

Estrangulado pelas rodas brutas

Do mecanismo que tiver mais força.

Ah! Por todos os séculos vindouros

Há de travar-se essa batalha vã

Do dia de hoje contra o de amanhã,

Igual á luta dos cristãos e mouros!

Sobre histórias de amor o interrogar-me

E vão, é inútil, é improfícuo, em suma;

Não sou capaz de amar mulher alguma

Nem há mulher talvez capaz de amar-me.

O amor tem favos e tem caldos quentes

E ao mesmo tempo que faz bem, faz mal;

O coração do Poeta é um hospital

Onde morreram todos os doentes.

Hoje é amargo tudo quanto eu gosto;

A bênção matutina que recebo...

E é tudo: o pão que como, a água que bebo,

O velho tamarindo a que me encosto!

Vou enterrar agora a harpa boêmia

Na atra e assombrosa solidão feroz

Onde não cheguem o eco duma voz

E o grito desvairado da blasfêmia!

Que dentro de minh'alma americana

Não mais palpite o coração - esta arca,

Este relógio trágico que marca

Todos os atos da tragédia humana!

Seja esta minha queixa derradeira

Cantada sobre o túmulo de Orfeu;

Seja este, enfim, o último canto meu

Por esta grande noite brasileira!

Melancolia! Estende-me a tu'asa!

És a árvore em que devo reclinar-me...

Se algum dia o Prazer vier procurar-me

Dize a este monstro que eu fugi de casa!

''([[Eu (Augusto dos Anjos)|Eu]], 52)''


[[Categoria:Pré-Modernismo]]
[[Categoria:Pré-Modernismo]]

Revisão das 13h48min de 13 de julho de 2020

Queixas Nocturnas

 

Quem foi que viu a minha Dor chorando?!
Saio. Minh’alma sáe agoniada.
Andam monstros sombrios pela estrada
E pela estrada, entre estes monstros, ando!

Não trago sobre a tunica fingida
As insignias medonhas do infeliz
Como os falsos mendigos de Paris
Na atra rua de Santa Margarida.

O quadro de afflições que me consomem
O proprio Pedro Americo não pinta...
Para pintal-o, era preciso a tinta
Feita de todos os tormentos do homem!

Como um ladrão sentado numa ponte
Espera alguem, armado de arcabuz,
Na ancia incoercivel de roubar a luz,
Estou á espera de que o Sol desponte!

Bati nas pedras dum tormento rude
E a minha magua de hoje é tão intensa
Que eu penso que a Alegria é uma doença
E a Tristeza é minha unica saúde!

As minhas roupas, quero até rompel-as!
Quero, arrancado das prisões carnaes,
Viver na luz dos astros immortaes,
Abraçado com todas as estrellas!

A Noite vae crescendo apavorante
E dentro do meu peito, no combate,
A Eternidade esmagadora bate
Numa dilatação exorbitante!

E eu lucto contra a universal grandeza
Na mais terrivel desesperação...
E’ a lucta, é o prelio enorme, é a rebellião
Da creatura contra a natureza!

Para essas luctas uma vida é pouca
Inda mesmo que os musculos se esforcem;
Os pobres braços do mortal se torcem
E o sangue jorra, em coalhos, pela bocca

E muitas vezes a agonia é tanta
Que, rolando dos ultimos degraus,
O Hercules treme e vai tombar no cháos
De onde seu corpo nunca mais levanta!

E’ natural que esse Hercules se estorça,
E tombe para sempre nessas luctas,
Estrangulado pelas rodas brutas
Do mechanismo que tiver mais força.

Ah! Por todos os seculos vindouros
Ha de travar-se essa batalha vã
Do dia de hoje contra o de amanhã,
Igual á lucta dos christãos e mouros!

Sobre historias de amor o interrogar-me
E’ vão, é inutil, é improficuo, em summa;
Não sou capaz de amar mulher alguma
Nem ha mulher talvez capaz de amar-me.

O amor tem favos e tem caldos quentes
E ao mesmo tempo que faz bem, faz mal;
O coração do Poeta é um hospital
Onde morreram todos os doentes.

Hoje é amargo tudo quanto eu gosto:
A benção matutina que recebo...
E é tudo: o pão que como, a agua que bebo,
O velho tamarindo a que me encosto!

Vou enterrar agora a harpa bohemia
Na atra e assombrosa solidão feroz
Onde não cheguem o echo duma voz
E o grito desvairado da blasphemia!

Que dentro de minh’alma americana
Não mais palpite o coração — esta arca,
Este relogio tragico que marca
Todos os actos da tragedia humana! —

Seja esta minha queixa derradeira
Cantada sobre o tumulo de Orpheu;
Seja este, emfim, o ultimo canto meu
Por esta grande noite brazileira!

Melancholia! Estende-me a tu’aza!
E’s a arvore em que devo reclinar-me...
Si algum dia o Prazer vier procurar-me
Dize a este monstro que eu fugi de casa!

Pau d’Arco — 1906