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Espelho contra espelho (grafia de 2008)

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(Redirecionado de Espelho contra espelho)

Tu, alma efeita, que trazes essa sede de Espaço, essa ansiedade de Infinito, essa doença do Desconhecido que te fascina os nervos, que vieste ao mundo para falar pelas outras bocas, para ser a voz viva de todas as vozes mortas; tu, que andas em busca de uma dor que venha ao encontro da tua; tu, que interpretas tanta queixa, tanta queixa, tanta queixa dos Corações, tanta queixa dos Espíritos, tanta queixa das Almas, tudo porque não há resposta a esta pergunta horrível: por que nos deram a Vida?! Tu, que legaste toda a delicadeza virginal do Sentimento a este Apostolado doce e amargo da Arte, bela e triste; tu, que sentes chamejar e cantar a inefável poesia que te alimenta como o óleo alimenta as lâmpadas; tu, cujo espírito é uma fonte de dons maravilhosos onde os sedentos se debruçam e bebem à farta a água mais cristalina, mais clara; tu, que tão sagradamente te revoltas, na majestade ideal das águias e dos leões, e que na candidez, na ingenuidade casta e santa da tua alta nobreza de Arte atinges com a ponta das asas espirituais a ponta das asas dos Anjos! Tu, ó alma aureolada de deslumbramentos brancos, Lírio estético que um luar de sonhos sensibilizou, ouve este verbo veemente, vivo, de quem procura sentir os altos segredos da Existência, perscrutar-lhe as íntimas origens fugidias.

Ouve este verbo vulcanizado, convulso, cheio das grandes tempestades ideais que abalam o Sentimento do mundo. Ouve este verbo aceso, inflamado na chama do Absoluto, para ele subindo e para ele palpitando sempre. Ouve este verbo indomável — vento que sopra pelas trompas do mar e que soluça pelas harpas do céu toda a grandeza de uma Ilusão, toda a majestade de uma Fé.

Eu falo a ti, Alma eleita e desolada nos crepúsculos da Cisma; não falo às almas antipáticas, cruamente ardentes, acres, como terrenos crestados, muito flagrantes de sol, sem sombras consoladoras... Falo a ti, que sentes e sabes o frio que vai pelo mundo, como as almas tiritam sem agasalho, desabrigadas, como as consciências enregelam sem amor e sem bondade na ferocidade dos brutos instintos, como a doce e nobre Humildade se encolhe e protege nos obscuros vãos de uma porta para não morrer esmagada pelo bárbaro tacão da Prepotência, como a filáucia triunfa e como a Grande Virtude de todos os tempos está cega e pede esmola envolta em duros frangalhos! Tu, Genial, que tens suspiros, que tens ânsias, que tens lágrimas para esta Comédia fúnebre, mas dolorosa, em que vai o mundo; tu, singular e lívido demônio que te fizeste monge, que tens a tua ironia santa que diviniza e nirvaniza, o teu rebelado sarcasmo em brasas, toda tua mordacidade inclemente para essas tristes cousas terrenas, não podes ver sem abalo, sem comoção profunda, almas de mocidade já sem dedicação intensa, sem energias claras, sem entusiasmo absoluto. Não desse entusiasmo oficial, coletivo, das massas — mas esse entusiasmo propulsor das células, esse entusiasmo dúctil, voluptuoso, nervoso, que vem da extrema sensibilidade; esse entusiasmo que é tônico, que é éter puro, que é oxigênio matinal, que é essência criadora, que é chama fecunda e asa branca no genuíno espírito; esse entusiasmo que é força altiva, que é dignidade serena, que é emoção original e casta, que infiltra azul e sol nas veias, acende aurora e vibra cânticos no sangue.

Há de doer-te fundo esse desolamento, essa morte das almas, essa aridez, essa petrificação de sentimentos em tudo. Há de doer-te muito que os impotentes se liguem aos impotentes, os nulos aos nulos, os frouxos aos frouxos, os esgotados aos esgotados. Que nada os separe, nada os afaste. Que quanto mais se reconheçam tartufos mais se unam no intuito e no instinto de se conservarem inatacáveis, embora, mesmo, no fundo, e fatalmente, se destruam, se odeiem, achando um incômodo a existência dos outros. Há de doer-te muito que uma envenenada relação secreta os una, os congregue, os irmane, para juntos darem batalha subterrânea, cavilosa e vilã, aos que trazem a clara força tranqüila de um alto Desígnio, como armadura de astros, no peito.

Há de afligir-te muito que na hora da mais profunda, da infinita Desolação, até os mais íntimos te abandonem, desapareçam, como que tocados pela idéia de que os teus extremos fatalismos são inconvenientes e contagiosos!

Há de fazer brotar em ti a luminosa flor da ironia, o aspecto ousado do Asinino, que quer a todo o transe medir-se contigo, pôr-se no mesmo paralelo, porque vê tanto como tu, sente tanto como tu, sonha e é tão legítimo ser como tu!! Se tu lhe dizes versos ele diz-te versos, se tu lhe dizes prosa ele diz-te prosa, opondo a natureza dele a tudo, atropelando as cousas, atrabiliariamente, acertando, às vezes, por acaso, por assimilação fácil, por percepção de simples arguto, mas não trazendo os fundamentos de sangue e de sonho, esse longínquo infinito de origem, essa harmonia interior e essa beleza heróica tão pouco perceptível e penetrável.

Sentirás no Asinino a pressa de comunicar primeiro que ninguém idéias que já Alguém pôs em circulação no tempo, nas correntes do ar; idéias que já foram acariciadas por outro com delicadeza mais particular, com veemência mais extrema, com intuição mais clara, com amor mais eloqüente, com entendimento mais recôndito. Sentirás no Asinino a natureza essencialmente auditiva, que ouve e torna-se o eco fácil, ingênuo, irresponsável, mas errado, mas corrompido, impuro já, da Grande Voz poderosa, honesta e pura que ouviu, porém que ouviu mal, sem a plasticidade necessária para receber, no seu primitivo apuramento imaculado, todas as complexas e infinitas vibrações, nuances e modalidades dessa Grande Voz.

Sentirás no Asinino a intenção capciosa de ser o teu refletor, de cruzar nos teus os seus raios, de produzir os mesmos reflexos, de apresentar as mesmas faces iluminantes, as mesmas irradiações e golpes de luz, as facetas do mesmo cristal e o fundo do mesmo aço.

Sentirás no Asinino a revelação da tua revelação, o despertar do teu despertar, a sugestão da tua sugestão — mas isso truncado, hipertrofiado, inteiramente desviado dos eixos centrais do teu Objetivo, sem a unidade inicial dos órgãos ingênitos que propulsionaram e deram a integração final às linhas gerais da sensibilidade do teu ser, à zona compacta e luminosa do foco supremo das tuas Intuições.

Sentirás no Asinino a imitação do teu Silêncio, a imitação da tua Sombra — sombra e silêncio d'espelho, sombra e silêncio refletidos do teu silêncio e da tua sombra, sombra e silêncio reproduzidos d'espelho contra espelho.

Não poderás projetar o teu vulto num lago que o Asinino não projete também o seu vulto no mesmo lago; não poderás aquarelar o teu perfil num luar que o Asinino não aquarele também o seu perfil no mesmo luar.

Se a tua Imaginação é virgem, reverdece agora nos luminosos pomares da Fantasia, a Imaginação do Asinino também é virgem e reverdece agora nos mesmos luminosos pomares. Não podes vir da raiz viva e violenta de uma sensação, da agudeza de uma Causa, da livre enunciação de um fenômeno porque o Asinino também vem de lá, também de lá procede, também de lá se origina. Não há originalidades subjetivas, clama o Asinino, não há o puro sentir, o novo sentir, o excepcional sentir! Tudo já passou depurado pelo meu organismo, que é o crisol das purificações, clama o Asinino.

Vida do eu visual, do eu olfativo, do eu mental, do eu sensível, faz vida original, faz vida de temperamento, portanto, vida ingenitamente particular e nova, dirás tu na perfectibilidade da tua visão.

Mas o Asinino, que é a Rotina secular, que é a Regra universal, argumenta com pedras em vez de argumentar com sentimentos, com emotividades, com dutilidades e mistérios de alma.

Nuances novas de alma, caminhos não explorados no mundo do Pensamento, certos segredos e transfigurações, rumos inéditos, paragens de uma inaudita melancolia, tudo é paralelamente julgado pelo Asinino, que logo estabelece para as relações de cada caso especial a mesma esfera de ação de múltiplos casos diversos.

Sempre sol contra sol, sempre sombra contra sombra, sempre espelho contra espelho.

Sempre este espelho — Homero, contra este espelho — Virgílio. Sempre este espelho — Shakespeare, contra este espelho — Balzac, ou contra este espelho — Dante, ou contra este espelho — Hugo. Sempre este espelho — Flaubert, contra este espelho — Zola, ou contra este espelho — Goncourt. Sempre este espelho — Baudelaire, contra este espelho — Poe, contra este espelho — Villiers e contra este espelho — Verlaine. Sempre este espelho — Ibsen, contra este espelho — Maeterlinck.

Sempre, eternamente estes espelhos impolutos e astrais que reproduzem a perfectibilidade de sentimentos nas gerações, paralelamente igualados, medidos e pesados pelo Asinino, que os equipara, confundindo-lhes a delicadeza e fulguração dos cristais.

Sempre um Sentimento contra outro Sentimento, como se pudesse haver uma alma com a cor e a sonoridade de outra alma!

E tu, na impaciência, na inquietação do teu vôo astral para as serenas Esferas, buscarás libertar-te, desacorrentar-te dos grilhões a que essa Rotina te prendeu, a que ela te sujeitou com a responsabilidade das primitivas camadas da Inteligência, para poderes afirmar que, como os Eleitos guiados a sós pelo seu Destino, tu também vieste só, representando um fenômeno desprendido no Espaço, sem leis de correlação no sentimento da tua Dor — uno e indivisível fenômeno no obscuro e perpétuo germinal da Natureza.

Na solidão do teu Ideal ficarás como um astro singular vivendo na luz nostálgica de uma órbita imaginária, sem que a confusão dos tempos possa jamais quebrar a intensidade do teu brilho e a serenidade da tua força.

O Asinino continuará lá embaixo, na turba, na multidão, no rodar das épocas, estreitamente e empiricamente a comparar, a comparar, a medir o teu Infinito pelo infinito da sua miopia secular, lá embaixo, na turba, na multidão. Tu, além, lá em cima, superpondo-te aos mundos rolarás, transbordarás, na augusta perpetuidade do Sentimento.