Iaiá Garcia/III

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Luís Garcia pouco trabalho teve no ânimo de Jorge. A resolução deste, uma vez declarada, não recuou mais. Não desconhecia o moço que a empresa a que metia ombros era crespa de dificuldades. A guerra, sobretudo depois do desastre de Curupaiti, prometia durar muito; não havia desânimo, e o governo era auxiliado eficazmente pela população. Jorge obteve uma patente de capitão de voluntários.

Vinte dias depois da conversa no terraço da rua dos Inválidos, apresentou-se Jorge em Santa Teresa, fardado e pronto, de tal modo porém que era ainda difícil separar o casquilho do militar. A mesma tesoura que lhe cortava os fraques, talhara a farda de capitão. Trazia à cintura uma banda vermelha, cujas pontas caíam graciosamente ao lado. Calçava um botim reluzente, sobre o qual assentava a calça de fino pano. Inclinado levemente à direita, o boné não lhe desconcertava o cabelo, penteado ao estilo de todos os dias; o bigode tinha as mesmas guias longas, agudas e lustrosas.

Luís Garcia não pôde furtar-se a um sentimento de pena, ao vê-lo entrar fardado e prestes a seguir para o sul. Pareceu-lhe descobrir por trás dele o perfil da morte, com o eterno sorriso sem lábios. Mas esse sentimento de comiseração passou; lembrou-lhe logo a última palavra da viúva, e não pôde deixar de condená-lo. Viu até, com certa repulsa, esse coração de vinte e quatro anos, que ia arriscar a vida própria, e talvez a de sua mãe, para não rejeitar um sentimento mau.

— Estou a seu gosto? perguntou Jorge com um ar de benévola ironia.

— Há de estar melhor no fim da guerra, Sr. general, respondeu o outro.

— General? Pode ser.

Dizendo isto, Jorge entrou a falar de suas esperanças e futuros. A imaginação começava a dissipar a melancolia Ele via já naquilo uma aventura romanesca e misteriosa; sentia-se uma ressurreição de cavaleiro medievo, saindo a combater por amor de sua dama, castelã opulenta e formosa que o esperava na varanda gótica. A idéia da morte ou da mutilação não vinha agitar-lhe ao rosto suas asas pálidas e sangrentas. O que ele tinha diante de si eram os campos infinitos da esperança. Contudo, o momento era grave, e dificilmente podia o espírito esquivar-se à reflexão intermitente. Alem disso, Jorge subira a Santa Teresa com a resolução de contar tudo a Luís Garcia, a fim de deixar um confidente austero e único de seus amores; mas a palavra não se atrevia a sair do coração. Ou a idade do outro ou a índole de suas relações tolhia essa confidência íntima; ainda mais do que uma e outra razão, havia naquele momento o gesto singularmente preocupado e duro de Luís Garcia. Jorge deu de mão ao projeto.

— Dê-me o abraço de despedida, disse ele; embarco amanhã.

— Já amanhã?

— Vim despedir-me do senhor.

Luís Garcia considerou-o silenciosamente durante dois ou três minutos; depois apertou-lhe as mãos.

— Vá, disse; trabalhe pela terra; não se poupe a trabalhos, nem se exponha sem utilidade; em todo o caso, obedeça à disciplina, e não se esqueça um só dia de sua mãe.

Jorge saiu e desceu a passo largo e trêmulo na direção da rua de D. Luísa. A meio caminho parou, como se quisesse tomar outra direção; ergueu os ombros e prosseguiu. Ia mergulhado em si mesmo, e só deu acordo ao parar diante de uma casa daquela rua.

Antes de lá entrar, vejamos quem eram os moradores.

O defunto marido de Valéria, no tempo em que advogava, tinha um escrevente, que, mais ainda do que escrevente, era seu homem de confiança. Chamava-se o Sr. Antunes. Foram serviços de certa ordem que os ligaram mais intimamente. A fortuna troca às vezes os cálculos da natureza; uma e outra iam de acordo na pessoa daquele homem, nado e criado para as funções subalternas. Familiar com todas as formas de adulação, o Sr. Antunes ia do elogio hiperbólico até o silêncio oportuno. Tornou-se, dentro de pouco não só um escrevente laborioso e pontual, mas também, e sobretudo, um fac-totum do desembargador, seu braço direito, desde os recados eleitorais até às compras domésticas, vasta escala em que entrava o papel de confidente das entrepresas amorosas. Assim que, nunca lhe fez míngua a proteção do desembargador. Viu crescer-lhe o ordenado, multiplicaram-se-lhe as gratificações; foi admitido a comer algumas vezes em casa, nos dias comuns, quando não havia visitas de cerimônia. Nas ocasiões mais solenes era ele o primeiro que se esquivava. Ao cabo de três anos de convivência tinha consolidado a situação.

Justamente nesse tempo sucedeu morrer-lhe a mulher, de quem lhe ficou uma filha de dez anos, menina interessante, que algumas vezes visitara a casa do desembargador. Este fez o enterro da mãe e pagou o luto da filha e do pai. O Sr. Antunes, que não era de extremas filosofias, tinha a convicção de que debaixo do sol, nem tudo são vaidades, como quer o Eclesiastes, nem tudo perfeições, como opina o doutor Pangloss; entendia que há larga ponderação de males e bens, e que a arte de viver consiste em tirar o maior bem do maior mal. Morta a mulher, alcançou do desembargador um enxoval completo para fazer entrar a filha num colégio, visto que até então nada aprendera, e já agora não podia deixá-la sozinha em casa. O desembargador dera o enxoval; algumas vezes pagou o ensino; as visitas amiudaram-se; a criança, que era bonita e boa, entrou manso e manso no coração de Valéria, que a recebeu em casa, no dia em que a pequena concluiu os estudos.

Estela — era o seu nome, — tinha então dezesseis anos. Pouco antes falecera o desembargador. O Sr. Antunes recebeu dois golpes em vez de um: o de o ver morrer, e o de o não ver testar. As aneurismas têm dessas perfídias inopináveis. A fim de emendar a mão à fortuna, o pai de Estela concentrou na viúva a atenção que até então repartira entre ela e o marido, fato que aliás decorria da própria obrigação moral em que se achava com a família do desembargador. Estela devia a essa família educação e carinho; podia talvez vir a dever-lhe um dote, um marido e consideração. Quem sabe? Talvez o coração de Jorge vinculasse as duas famílias. Esta ambição afagava-a o Sr. Antunes no mais profundo de sua alma.

Jorge estava prestes a concluir os estudos em São Paulo; ia na metade do quarto ano. Vindo à Capital durante as férias, achou-se diante de uma situação inesperada; a mãe esboçara um projeto de casamento para ele. A noiva escolhida era ainda parenta remota de Jorge. Chamava-se Eulália. Tinha dezenove anos na certidão de batismo e trinta no cérebro. Era uma moça sem ilusões nem vaidades, talvez sem paixões, dotada de juízo reto e coração simples, e sobre tudo isso uma beleza sem mácula e uma elegância sem espavento. — Uma pérola! dizia Valéria quando insinuou ao filho a conveniência de casar com Eulália. A pérola, entretanto, não parecia ansiosa de ornar a fronte de ninguém. Quando Valéria fez as primeiras sondagens no coração da jovem parenta, achou ali uma água tranqüila, sem curso nem recurso de marés. Tratou de saber se alguma brisa lhe roçara a asa, e descobriu que não; então chamou em seu auxílio o siroco e o pampeiro. Não foi difícil perceber os desejos da viúva, nem resistiu quando chegou a entendê-la. A razão disse-lhe que o casamento era aceitável; esperou. Valéria ficou satisfeita com o resultado, e deu-se pressa em sondar as disposições de Jorge, quando ele voltou no fim do ano.

Graças à sua arte de assediar as vontades alheias, Valéria alcançou do filho uma resposta condicional. Era já alguma coisa. O motivo da insistência da viúva era complexo; eram as qualidades da parenta, a afeição grande que lhe votava, o receio de morrer subitamente e a confiança que tinha em si mesma para conhecer e eleger caracteres. Durante o último ano da Faculdade, Jorge pensou algumas vezes no casamento como se pensa num projeto remoto; mas, à proporção que o tempo corria, o coração ia-se-lhe tornando retraído e medroso. Uma vez formado, deu de mão à idéia; não teve a franqueza de o declarar à mãe, e Valéria esperou confiadamente que o coração do filho dissesse noutra língua aquilo que ela já lhe havia dito na sua.

Para conhecer exatamente o motivo da repulsa de Jorge em relação a uma moça, cujas qualidades deviam tentar qualquer outro, convém não esquecer que essas qualidades eram justamente as mais avessas à índole do filho de Valéria. Não bastava ser elegante e bonita, discreta e mansa; era preciso alguma coisa mais, que exatamente correspondesse à imaginação dele; faltava-lhe um grão de romanesco.

A isto acrescia um sentimento novo, que se apossou dele, ao cabo de três semanas depois da chegada ao Rio de Janeiro. A vista quotidiana de Estela produziu em Jorge uma impressão forte. Posto vivessem na mesma casa, era difícil acharem-se nunca a sós, porque a filha do escrevente passava todo o tempo ao pé da viúva; circunstância que não teve a virtude de mudar o curso aos acontecimentos. Não podendo passar de palavras gerais e estranhas ao que lhe quisera confiar, Jorge falava-lhe com os olhos, — linguagem que a moça não entendia, ou fingia não entender. A imperturbável seriedade de Estela foi um agulhão mais, não menos cruel que a gentileza de suas formas, e certo ar de resolução que lhe transparecia do rosto quieto e pálido.

Pálida era, mas sem nenhum tom de melancolia ascética. Tinda os olhos grandes, escuros, com uma, expressão de virilidade moral, que dava à beleza de Estela o principal característico. Uma por uma, as feições da moça eram graciosas e delicadas, mas a impressão que deixava o todo estava longe da meiguice natural do sexo. Usualmente, trazia roupas pretas, cor que preferia a todas as outras. Nu de enfeites; o vestido punha-lhe em relevo o talhe esbelto, elevado e flexível. Nem usava nunca trazê-lo de outro modo, sem embargo de algum dixe ou renda com que a viúva a presenteava de quando em quando; rejeitava de si toda a sorte de ornatos; nem folhos, nem brincos, nem anéis. Ao primeiro aspecto dissera-se um Diógenes feminino, cuja capa, através das roturas, deixava entrever a vaidade da beleza que quer afirmar-se tal qual é, sem nenhum outro artifício. Mas, conhecido o caráter da moça, eram dois os motivos — um sentimento natural de simplicidade, e, mais ainda, a consideração de que os meios do pai não davam para custosos atavios, e assim não lhe convinha afeiçoar-se ao luxo.

— Por que não põe os brincos que mamãe lhe deu a semana passada? perguntou Jorge a Estela, um dia, em que havia gente de fora a jantar.

— Os presentes mais queridos guardam-se, respondeu ela olhando para a viúva.

Valéria apertou-lhe a ponta do queixo entre o polegar e o indicador: — Poeta! exclamou sorrindo. Você não precisa de brincos para ser bonita, mas vá pô-los, que lhe ficam bem.

Foi a primeira e última vez que Estela os pôs. A intenção era patente demais para não ser notada, e Jorge não esqueceu nem a resposta da moça nem o constrangimento com que obedeceu. Não podia supor-lhe ingratidão, porque via a afeição com que Estela tratava a mãe. Em relação a ele não parecia haver afeição igual, mas havia certamente respeito e consideração, rara vez familiaridade, e ainda assim, uma familiaridade enluvada, um ar de visita de pouco tempo.

Jorge começou a achar mais agradável a casa do que a rua; e as noites, quando não havia pessoas de fora, passava-as à volta de uma mesa, lendo ou jogando com as duas, ou vendo-as trabalhar, enquanto contava anedotas da academia, lia as correspondências do Paraguai e de Buenos Aires, ou simplesmente alguma página de romance. Nessa vida, meio patriarcal, as horas corriam depressa, tão depressa, que ele não as sentia. Ao caso de cinco ou seis semanas, fez-se ele seu próprio confessor, examinou a consciência, descobriu lá dentro alguma coisa que não era a fantasia sensual do primeiro instante, e, longe de absolver-se, condenou-se à crua penitência de abstenção. Voltou aos antigos hábitos e deixou os serões domésticos. Mas a aplicação do remédio, por mais sincera que fosse, já não podia muito contra a ação do mal. Estela freqüentava-lhe tenazmente a memória; e na rua, no teatro, nas assembléias a que ia, o perfil severo da moça vinha meterse entre ele e a realidade. Se pudesse deixar de a ver, a convalescença não era ainda difícil; mas como fugir à lembrança de uma mulher, cuja figura lhe aparecia durante algumas horas de cada dia? Demais, a sonâmbula que ele tinha no cérebro vinha auxiliar a fatalidade das circunstâncias. No fim de um mês, a índole do sentimento havia mudado: era mais pura; mas o sentimento não parecia disposto a esvair-se: era mais violento.

Como o Sr. Antunes levasse a filha, uma noite, a visitar pessoa de sua amizade, Jorge aproveitou a circunstância para insinuar a Valéria a conveniência de restituir Estela a seu pai.

— Por que? perguntou a viúva.

— Sempre é um tropeço, uma pessoa estranha metida entre nós, — replicou Jorge. Não lhe nego que tem boas qualidades; mas ... é uma pessoa estranha.

— Que importa, se me dou bem com ela? Conheço-a desde pequena; é uma companhia melhor que qualquer outra. Mas por que te lembras disso agora?

— Estive pensando na responsabilidade que pesa sobre nós. Se fosse nossa parenta, vá, não se podia dispensar a obrigação; mas não sendo, creio que era melhor libertarmo-nos.

— Descansa; quando for tempo, caso-a. O que não admito é algum marido de pouco mais ou menos. Há de ser pessoa que a mereça. Não sabes o que vale aquela menina. Não é só boa, tem certa elevação de sentimentos; nunca me desatendeu e nunca me adulou.

Jorge confirmou com a cabeça e não disse mais nada. O que acabava de fazer não passava de uma tentativa sincera, mas frouxa, para arredar Estela da casa; era o imposto pago à consciência. Quite com ela, entregou-se aos acontecimentos, confessando a si mesmo que o perigo não era tão grave, nem o remédio tão urgente; finalmente, que ele era homem.

No meio de semelhante situação, que sentia ou que pensava Estela? Estela amava-o. No instante em que descobriu esse sentimento em si mesma, pareceu-lhe que o futuro se lhe rasgava largo e luminoso; mas foi só nesse instante. Tão depressa descobriu o sentimento, como tratou de o estrangular ou dissimular, — trancá-lo ao menos no mais escuso do coração, com se fora uma vergonha ou um pecado.

— Nunca! jurou ela a si mesma.

Estela era o vivo contraste do pai, tinha a alma acima do destino. Era orgulhosa, tão orgulhosa que chegava a fazer da inferioridade uma auréola; mas o orgulho não lhe derivava de inveja impotente ou de estéril ambição; era uma força, não um vício, — era o seu broquel de diamante, — o que a preservava do mal, como o do anjo de Tasso defendia as cidades castas e santas. Foi esse sentimento que lhe fechou os ouvidos às sugestões do outro. Simples agregada ou protegida, não se julgava com direito a sonhar outra posição superior e independente; e dado que fosse possível obtê-la, é lícito afirmar que recusara, porque a seus olhos seria um favor, e a sua taça de gratidão estava cheia. Valéria, que também era orgulhosa, descobrira-lhe essa qualidade, e não lhe ficou querendo mal; ao contrário, veio a apreciá-la melhor.

Pois o orgulho de Estela não lhe fez somente calar o coração, infundiu-lhe a confiança moral necessária para viver tranqüila no centro mesmo do perigo. Jorge não percebera nunca os sentimentos que inspirara; e, por outro lado, nunca viu a possibilidade de os inspirar um dia. Estela só lhe manifestava o frio respeito e a fria dignidade.

Um dia, vagando uma casa de Valéria no caminho da Tijuca, determinou-se a viúva a ir examiná-la, antes de a alugar outra vez. Foi acompanhada do filho e de Estela. Saíram cedo, e a viagem foi alegre para a moça, que pela primeira vez ia àquele arrabalde. Quando a carruagem parou, supunha Estela que mal tivera tempo de sair da rua dos Inválidos.

A casa precisava de alguns reparos; um mestre-de-obras, que já ali estava, acompanhou a família de sala em sala e de alcova em alcova. Só ele e Valéria falavam; Estela não tinha voto consultivo e Jorge parecia indiferente. Que lhe importava a ele o reboco de uma parede ou o conserto de uma soalho? Ele gracejava, ria ou sussurrava ao ouvido de Estela um epigrama a respeito do mestre-de-obras, cuja prosódia era execrável. Estela, que sorria com ele, cerrava entretanto o gesto aos epigramas.

De sala em sala chegaram a uma pequena varanda, onde uma circunstância nova os deteve algum tempo. Numa das extremidades da varanda havia um pombal velho, onde eles foram achar, esquecido ou abandonado, um casal de pombos. As duas aves, após vinte e quatro horas de solidão, pareciam saudar as pessoas que ali apareciam repentinamente.

— Coitadinhos! disse Estela logo que entrou na varanda.

Valéria prestou um minuto de atenção, talvez meio, e seguiu a ver a casa. Estela ficara a olhar para os dois pombos, e não a viu sair.

— Quer levá-los? disse a voz de Jorge.

A moça voltou-se e respondeu que não.

— Contudo, continuou ela, era bom dá-los a alguém para não morrerem à fome. São tão bonitos!

— Mas por que não os há de levar a senhora mesma?

— Vou pedir ao mestre que os tire dali, disse ela dando um passo para dentro.

— Não é preciso: eu vou tirá-los.

Estela recusou, mas o bacharel resolvera e ia satisfazer ele próprio o desejo da moça. O pombal não ficava ao alcance da mão; era preciso trepar ao parapeito da varanda, crescer na ponta dos pés e estender o braço. Ainda assim, precisaria contar com a boa vontade dos pombos. Jorge trepou ao parapeito. Se perdesse o equilíbrio poderia cair ao chão da chácara; para evitá-lo, Jorge lançou a mão esquerda a um ferro que havia na coluna do canto, e que o amparou; depois esticou o corpo e alcançou com a mão o pombal. Um dos pombos ficou logo seguro; o outro, a princípio arisco, foi colhido depois de algum esforço. Estela recebeu-os; Jorge saltou ao chão.

— A Sra. D. Valéria, se visse isto, havia de ralhar, disse Estela.

— Grande façanha! respondeu Jorge sacudindo com o lenço as mãos e a aba do fraque.

— Podia cair.

— Mas não caí; foi um risco que passou. São bonitinhos, não são? continuou ele apontando para os pombos que Estela tinha entre as mãos.

A moça respondeu com um gesto e deu alguns passos, a fim de ir ter com a viúva. Jorge deteve-a, metendo-se entre ela e a porta.

— Não se vá embora, disse ele.

— Que é? perguntou Estela erguendo tranqüilamente os grandes olhos límpidos.

— Disfarçada!

Estela baixou silenciosamente a cabeça e buscou dar outra volta para entrar na sala ao pé; Jorge, porém, interceptou-lhe de novo o caminho.

— Deixe-me passar, disse ela sem cólera nem súplica.

Jorge recuara até a porta, única das três que estava aberta. Era arriscado o que fazia; mas, além de que Valéria e o mestre estavam no pavimento superior, — ele ouvia-lhes os passos, — perdera naquela ocasião toda a lucidez de espírito. Era deserto o lugar, e naturalmente seria longo o tempo de que poderia dispor para lhe dizer tudo. Mas os lábios ficaram cerrados alguns instantes, enquanto os olhos diziam a eloqüência da paixão mal contida e prestes a irromper.

Não insistiu Estela, mas ficou diante dele, quieta e sem arrogância, como esperando ser obedecida. Jorge quisera-a suplicante ou desvairada; a tranqüilidade feria-lhe o amor-próprio, fazendo-lhe ver que o perigo era nenhum, e revelando, em todo caso, a mais dura indiferença. Quem era ela para afrontar assim? Era a segunda vez que formulava essa pergunta; tinha-a feito nas primeiras auroras da paixão. Desta vez a resposta foi deplorável. Cravando os olhos em Estela, disse com voz trêmula, mas imperiosa:

— Não há de sair daqui, sem me dizer se gosta de min. Vamos; responda! Não sabe o que lhe pode custar esse silêncio?

Não obtendo resposta, continuou depois de alguma pausa:

— É animosa! Saiba que posso vir a odiá-la e que talvez a odeio; saiba também que posso tirar vingança de seus desprezos, e chegarei a ser cruel, se for necessário.

Estela suspirou apenas, e foi encostar-se ao parapeito, a olhar para a chácara. Era sua intenção não irritá-lo, com a resposta seca e má que lhe ditava o coração, e esperar que Valéria descesse. Entretanto, na posição em que ficara tinha as costas voltadas para Jorge, circunstância que não era intencional, mas que pareceu a este um simples meio de lhe significar o seu desdém. A irritação de Jorge foi grande. Após uns dois ou três minutos de silêncio, Jorge caminhou na direção do parapeito, onde estava Estela, com a cabeça inclinada a beijar a cabeça dos pombos, que tinha encostados ao seio. Deteve-se, sem que a moça mudasse de posição. Contemplou-a ainda um instante, e se Estela olhasse para ele veria que a expressão dos olhos era de respeitosa ternura e nada mais.

Esse instante, porém, voou depressa, e com ele a consideração. Inclinando-se para a moça, Jorge falou de um modo que nem a educação nem a índole, mas só o despeito explicava:

— Por que há de gastar, com esses animais, uns beijos que podem ter melhor emprego?

Estela estremeceu toda e ergueu para o moço uns olhos que fuzilavam de indignação. Já não estava pálida, mas lívida. Estupefata, não sabia que dissesse ou fizesse, e infelizmente não sabia também que a pergunta de Jorge, por mais ofensiva que lhe parecesse, não era ainda a máxima injúria. Não era, Jorge tinha uma nuvem diante de si, através da qual não podia ver nem o seu decoro pessoal nem a dignidade da mulher amada; via só a mulher indiferente. Lançou-lhe as mãos na cabeça, puxou-a até si e antes que ela pudesse fugir ou gritar, encheu-lhe a boca de beijos.

Soltos com o movimento, os pombos esvoaçaram sobre a cabeça de ambos, e foram pousar outra vez na casinha de pau, onde nenhuma fatalidade moral os condenava àquele amor sem esperança, àquela cólera sem dignidade.

Estela sufocara um gemido e cobrira o rosto com as mãos. Ouviam-se as vozes de Valéria e do mestre, que se aproximavam; Jorge teve um instante de incerteza e hesitação; mas a reação operara-se, e além disso, urgia apagar os vestígios daquela cena, de maneira que os não visse a viúva.

— Aí vem mamãe, — disse ele baixinho a Estela; não tive culpa no que fiz, porque gosto muito da senhora.

Estela voltou-se para fora e enxugou o rosto; daí a pouco entraram Valéria e o mestre. Este saiu logo depois, tendo ajustado as obras que era indispensável fazer na casa. Valéria irritada com a vista dos estragos que encontrou, criticava o desleixo dos inquilinos. Só depois dos primeiros instantes reparou que nenhum dos dois lhe respondia nada. Jorge parecia acanhado e Estela triste. Posto houvesse enxugado as lágrimas, Estela tinha o rosto desfeito e murchos os belos olhos. Jorge não ousava olhar para a mãe nem para Estela; olhava para a ponta dos botins, onde ficara um pouco de caliça do parapeito; tinha as mãos nas costas e estava arrimado a um portal. Valéria reparou na atitude dos dois; mas como possuía a qualidade de dissimular as impressões, não alterou nem o gesto nem a voz. Os olhos é que nunca mais os deixaram.

Daí a nada meteram-se no carro. Era tarde. A viagem foi quase inteiramente silenciosa; pelo menos, só Valéria disse algumas palavras. Chegando à rua dos Inválidos, a viúva suspeitava que alguma coisa havia entre os dois e grave. Todo aquele dia meditou nos meios de conhecer a natureza e os pormenores da situação, e nada achou melhor do que interrogar diretamente um deles. Jorge saíra de casa logo depois e não voltou para jantar; Estela não sorriu em todo esse dia e quase não falou.

Não foi preciso interrogá-la. Logo na seguinte manhã, acabando de levantar-se, entrou-lhe Estela na alcova, e pediu alguns minutos de atenção. Expôs-lhe a necessidade de voltar para casa; estava moça, devia ir prestar ao pai os serviços que ele precisaria de alguém e tinha o direito de exigir da filha. Não era ingratidão, acrescentava; levaria dali saudades eternas; voltaria muitas vezes; seria sempre obediente e grata. Cedia somente à necessidade de acompanhar o pai. Este pedido confirmava a suspeita de Valéria, mas só esclarecia metade da situação. A retirada de Estela era um meio de fugir de Jorge ou de lhe falar mais livremente? Valéria tratou de perscrutar o coração da moça, dizendo-lhe que a razão dada era insuficiente e que alguma causa oculta a movia; depois, recordou-lhe a amizade que lhe tinha e a confiança a que Estela não devia faltar.

— Vamos lá, disse ela; confessa tudo.

Estela afirmou que nada mais havia; mas, insistindo a viúva, respondeu curvando a cabeça, — o que importava meia confissão. Valéria lutou ainda muito tempo; empregou a brandura e a intimação, mas a moça não cedeu mais nada.

— Bem, disse a viúva; faça-se a tua vontade.

Foi assim que Estela, ao cabo de algum tempo de residência na casa de Valéria, regressou à casa do pai, na rua de D. Luísa. O Sr. Antunes ficou desorientado com a notícia; disse que vivia perfeitamente só; achou pouco decoroso e menos justo o procedimento de Estela, em relação à viúva do desembargador; gastou largos conceitos, que lhe não aproveitariam, porque Estela não recuou da resolução, nem a viúva tentou dissuadi-la.

E separação não valia nada ou valia coisa pior; fez recrudescer o amor de Jorge, por isso mesmo que entre um e outro rasgava espaço à imaginação. Duas forças reagiram no coração do rapaz; o obstáculo, que tornava mais intenso o amor, e o remorso que o fazia mais respeitoso. Nenhum ressentimento lhe ficara da resolução da Estela; sentia-se culpado, e mais ainda, sentia-se vítima da fuga da moça. Nem tudo isso seria efeito somente da paixão; cabia uma parte de influência à severidade do caráter de Estela, que acabou por incutir no espírito de Jorge idéia diferente da que ele a seu respeito fazia. Valéria descobriu a pouco e pouco a ineficácia do remédio que aceitara; estava certa da paixão do filho, e via que, longe de expirar, entrava pela vida adiante, menos estouvada talvez, mas não menos sincera e profunda; soube que Jorge freqüentava a casa da rua de D. Luísa; estremeceu pelo futuro e cogitou no modo de estrangular as esperanças em flor.

— Ou ela já o ama ou pode vir a amá-lo, dizia consigo.

Valéria encarava os dois desenlaces possíveis da situação, se a moça lhe amasse o filho; ou seria a queda de Estela, que a viúva estimava muito, ou o consórcio dos dois, solução que lhe repugnava aos sentimentos, idéias e projetos. Jamais consentiria em semelhante aliança. Urgia pronto remédio.

Voltou energicamente ao projeto de casar o filho com Eulália, e o intimou a obedecer-lhe. Jorge começou resistindo e acabou dissimulando; mas o artifício não iludiu a mãe. Valéria chamou logo em seu auxílio a jovem parenta. Eulália, que tivera tempo de refletir, francamente lhe disse que não estava disposta a ser sua nora, porque Jorge não a amaria nunca; e, conquanto não visse no casamento uma página de romance, entendia que a antipatia ou total indiferença era o mais frouxo dos vínculos conjugais.

Desamparada desse lado, a viúva cogitou então a viagem à Europa; e, quando ele lha recusou, recorreu à guerra do Paraguai. Não sem custo lançou mão desse meio, violento para ambos; mas, uma vez adotado, luziu-lhe mais a vantagem do que lhe negrejou o perigo. Assim foi que de um incidente, comparativamente mínimo, resultara aquele desfecho grave, e de um caso doméstico saía uma ação patriótica.