Mister Slang e o Brasil/Capítulo 1

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Mr. Slang e o Brasil


COLLOQUIOS COM O INGLEZ DA TIJUCA


I

DA BALBURDIA DE IDÉAS


O arvoredo sempre enfolhado dum dos bellos sitios da Tijuca esconde a deliciosa vivenda de Mr. Slang, rubicundo britannico que ha mais de oito lustros reside entre nós. Quem sóbe de bonde não avista a sua casa, nem siquer a suspeita. Esse inglez, além de philosopho, revela uma certa misanthropia, muito consentanea num "gentleman" que o destino lançou para longe do "fog" londrino. Prefere o contacto das coisas ao contacto dos homens, embora possua meia duzia de amigos, com os quaes conversa entre goles de whisky e interminaveis partidas de xadrez.

Quiz o acaso que eu viesse a figurar entre taes amigos. Frequento amiude o delicioso “bungalow”, bebo do excellente whisky importado directamente e ainda dou, de vez em quando, meus cheques mates no dono.

Nada disto tem que ver com o publico; mas acho que tem, e muito, a velha experiencia e a longa observação de Mr. Slang a respeito das coisas nacionaes, objecto constante dos nossos debates. Eis por que me vi no dever de reduzil-os a escripto e estampal-os num orgão de variada expressão mental como este[1]. “Wisdom” é riqueza. A de Mr. Slang contribuirá, talvez, para o enriquecimento de algum espirito amigo da verdade, embora eu esteja convencido da absoluta tolice que é em nossa terra dar attenção á pobre dama que mora no poço.

Mr. Slang tambem escreve, de longe em longe, para o “Scribner´s Magazine”. Nenhum dos seus amigos sabe disto, a não ser eu e por obra do acaso, ainda. O acaso em minhas relações com Mr. Slang vem representando papel curiosissimo. Não direi como descobri um ensaio seu no magazine americano, mas direi que versava sobre o humorismo inconsciente.

— Ha disso, Mr. Slang? perguntei-lhe, folheando o trabalho.

O inglez sorriu com malicia e apontou para um numero do “Jornal do Commercio”, recem-percorrido pelos seus olhos.

— Ha, e foi a leitura constante deste orgâo que me suggeriu a idéa. Não ficou no Monsieur Jourdain, de Molière, o privilegio de fazer prosa sem o saber...

Mr. Slang lê muito Bernard Shaw e não esquece os velhos humoristas, de Sterne a Wendell Holmes. Talvez lhe venha d'ahi certo “turn” de espirito, amigo de replicar por “tabellas” e ricochetes. Esta mordacidade, entretanto, perde-a elle depois do terceiro “drink”, donde concluo que não passa de simples attitude mental. In whisky veritas...

Da ultima vez que lá estive versou o debate sobre o thema do dia, a estabilização da moeda, e confesso que só aclarei as minhas idéas depois que elle m'as varreu com a vassoura do seu bom senso raciocinante.

— Que acha, Mr. Slang, da estabilização? perguntei-lhe. Tenho lido as folhas e, mais leio opiniões, mais me obscureço.

— Muito natural, foi a sua resposta. A opinião dos nossos jornaes é excessivamente instavel. Não será no instavel que o meu amigo se firmará a respeito de estabilidades.

— Entretanto, não existe outro recurso para quem deseje assenhorear-se do problema. Temos que acompanhar os debates do plenario.

— Talvez não. Acho que temos simplesmente de reflectir sobre elle. Meu methodo de trabalho mental consiste em reflectir, concluir de mim para mim, chegar a idéas que sejam productos logicos de todas as observações e conclusões anteriores da minha vida. Depois, a titulo sportivo, tratarei de conhecer as idéas dos outros. Meu methodo é rude no começo, porque bem pensar corresponde a trabalho rijo; mas delicioso ao cabo, quando vejo abrolhar da arvore lindos frutos. Methodo inglez. O methodo brasileiro parece-me muito mais commodo: comprar por 200 réis taes frutos Já elaborados.

— Commodo e pratico, aventurei; em vez de criarmos rugas na testa e moermos os miolos, adquirimos logo uma idéa feita, já bem elaborada pelos technicos. Poderia eu, pensando por mim, por exemplo, chegar com a mesmo pressa ás conclusões de um ex-ministro da Fazenda ? Acho mais intelligente tomar feitas as idéas deste homem. Além disso, possuem maior autoridade.

Mr. Slang sorriu e disse:

— Certas preferencias são de resultados muito sérios na vida dos povos. O habito de ter idéas proprias fez da Inglaterra o que a Inglaterra é. O habito brasileiro de acceitar, por commodismo, idéas alheias, não me parece que esteja fazendo grande coisa deste paiz...

A leve ironia fez-me enrubescer e, para disfarce, emborcar o copo de whisky. Emquanto isso, Mr. Slang continuava :

— Os jornaes do Rio nunca esclarecem uma questão. Estudam-na sempre deslembrados do objectivo de esclarecel-a. O negocio parece-me até que é baralhar. Só o embaralhaamento renderá qualquer. Jornal, no Brasil, é synonimo de machina de desenrolar linha. Lel-os é ver desenrolar linha. O bom senso manda fazer o contrario : tel-a em carreteis, numerados conforme a grossura do fio e bem arrumadinhos nas prateleiras. Fóra dos carreteis linha deixa de ser linha. Passa a macaróca, só util como esfregão.

— Vejo que Mr. Slang faz muito pouco em nossa mentalidade, murmurei resentido.

— Não direi que faça pouco. Nem ainda que faça muito. Vejo-a como vejo a goiaba no pé, admittindo que seria absurdo virem maçãs de uma goiabeira. A mentalidade por aqui é o fruto logico de um hybridismo triplice. Grão de bico, pacova e quimbombô só pódem pensar os frutos que pensam...

— Perdão! exclamei, um tanto vexado nas minhas susceptibilidades patrioticas. Cito Ruy Barbosa e com esta simples citação esmago a sua theoria.

— Citará o Corcovado para provar que a lagôa Rodrigo de Freitas não é lagôa? Ruy Barbosa constitue tamanha anomalia neste paiz... que está inedito. O governo adquiriu-lhe a propriedade das obras e não as publica. Acha, e acha muito bem, que esse Macaulay meridional nasceu nestas paragens por atrapalhação da natureza, nada tendo de commum com o paiz.

— Engano seu, Mr. Slang. Ruy foi um idolo nosso — o maior!

— O que não impediu que entre elle e o Marechal Hermes, o paiz escolhesse o Marechal...

— Escolheram os politicos, não o povo.

— Parece-me que esses politicos não se sustentam na sociedade com o apoio das pedras, das arvores, do ar, das coisas, em summa, e sim das pessoas — cujo conjunto tem nome povo. Não negue evidencias. Este negar evidencias tem sido a causa real de não conseguirem vocês uma só solução acertada para todos os problemas nacionaes. Tudo emergencia, isto é, solução pessoal, occasional, momentanea, provisoria. Sempre o horror á marcha de frente, ao leal estudo da situação de facto. Aponte-me uma solução definitiva, uma só, acertada e justa, de quantas o paiz vem tentando, e eu não comerei este bispo que imprudentemente acaba de collocar-se sob o meu cavallo.

Tinhamos iniciado uma partida de xadrez e de facto eu movera ás tontas o bispo do rei.

Na vida nacional occorre muito disto. Movem-se pedras imprudentemente. Depois é preciso recuar, com deslise das regras do jogo — ou temos de vel-as comidas por um cavallo qualquer.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.
  1. “O Jornal”, onde em Janeiro de 1927 sahiram publicadas estas opiniões.