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Americanas/Niani

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NIANI


(HISTORIA GUAYCURU)


Desde então cobriu-se Nanine de uma mortal melancolia, sendo seus olhos sempre chorosos. Assim se passaram trez mezes, quando um dia, estando deitada na sua rustica cama, lhe deram a noticia que seu desleal marido se tinha casado com uma rapariga de menor esphera. Senta-se então Nanine na rama, como arrebatada, chama para junto de si um pequeno indio que era seu captivo, e diz-lhe na presença de varios antecris: «És meu captivo; dou-te a liberdade, com a condição de que te chamarás todo a vida Panenioxe.» Então seus olhos deixaram correr dilúvios de lagrymas pelas suas tristes faces, que ella de envergonhada quiz occultar, mas o amor offendido não o permittia. Parece que esta violenta contenda de duas poderosas paixões lhe motivou uma febre ardente, com a qual ao outro dia perdeu a vida.


F. Rodrigues Prado, Hist. dos Indios Cavalleiros.


NIANI


.......que piagne
Vedova, sola.

     Dant. Purgat. vi



I


Contam-se historias antigas
Pelas terras de além-mar,
De moças e de princezas,
Que amor fazia matar.


Mas amor que entranha n′alma
        E a vida soe acabar,
Amor é de todo o clima,
        Bem como a luz, como o ar.

Morrem delle nas florestas
        Aonde habita o jaguar,
Nas margens dos grandes rios
        Que levam troncos ao mar.

Agora direi um caso
        De muito penalisar,
Tão triste como os que contam
        Pelas terras de além-mar.



II


Cabana que esteira cobre
De junco trançado a mão,
Que agitação vae por ella!
Que ledas horas lhe vão!
Panenioxe é guerreiro
Da velha, dura nação,[1]
Cayavabá ha ja sentido
A sua lança e facão.[2]


Vem de longe, chega á porta
        Do afamado capitão;
Deixa a lança e o cavallo,
        Entra com seu coração.

A noiva que elle lhe guarda
        Moça é de nobre feição,
Airosa como agil corça
        Que corre pelo sertão.

Amores eram nascidos
        Naquella tenra estação,
Em que a flor que hade ser flor
        Inda se fecha em botão.

Muitos agora lhe querem,
        E muitos que fortes são;
Niani ao melhor delles
        Não dera o seu coração.[3]

Casal-os agora, é tempo;
        Casal-os, nobre ancião!
Limpo sangue tem o noivo,
        Que é filho de capitão.[4]



III


« — Traze a minha lança, escravo,
    Que tanto peito abateu;
Traze aqui o meu cavallo
    Que largos campos correu.»

« — Lança tens e tens cavallo
    Que meu velho pae te deu;
Mas aonde te vas agora,
    Onde vas, espôso meu?

« — Vou-me á caça, junto á cova
    Onde a onça se metteu...»
« — Montada no meu cavallo,
    Vou comtigo, espôso meu.v»

« — Vou-me ás ribas do Escopil,
    Que a minha lança varreu...:
« — Irei pelejar na guerra,
    A teu lado, espôso meu.»

« — Fica-te ahi na cabana
    Onde o meu amor nasceu.»
« — Melhor não haver nascido
    Se ja de todo morreu.»

E uma lagryma, — a primeira
    De muitas que ella verteu, —
Pela face cobreada
    Lenta, lenta lhe correu.

Enxugai a, não a enxuga
    O espôso que ja perdeu,
Que elle no chão fita os olhos,
    Como que a voz lhe morreu.


Traz o escravo o seu cavallo
    Que o velho sogro lhe deu;
Traz-lhe mais a sua lança
    Que tanto peito abateu.

Então, recobrando a alma,
    Que o remorso esmoreceu,
Com esta dura palavra
    Á espôsa lhe respondeu:

« — A bocayuva trez vezes
    No tronco amadureceu,[5]
Desde o dia em que o guerreiro
    Sua espôsa recebeu.

«Trez vezes! Amor sobejo
    Nossa vida toda encheu.
Fastio me entrou no seio,
    Fastio que me perdeu.»

E pulando no cavallo,
    Sumiu-se.....despareceu..,
Pobre moça sem marido,
    Chora o amor que lhe morreu



IV


Leva o Paraguay as aguas,
    Leva-as no mesmo correr,
E as aves descem ao campo
    Como usavam de descer.

Tenras flores, que outro tempo
    Costumavam de nascer,
Nascem; vivem de egual vida;
    Morrem do mesmo morrer.


Niani, pobre vima,
    Viuva sem bem o ser,
Tanta lagryma chorada
    Ja te não póde valer.

Olhos que amor desmaiára
    De um desmaiar que é viver,
O chôro empana-os agora,
    Como que vão fenecer.

Corpo que fôra robusto
    No seu cavallo a correr,
De contínua dor quebrado
    Mal se póde ja suster.

Collar de prata não usa,
    Como usava de trazer;
Pulseiras de finas contas
    Todas as veiu a romper.[6]

Que ella, se nada ha mudado
    Daquelle eterno viver,
Com que a natureza sabe
    Renascer, permanecer,


Toda é outra; a alma lhe morre,
    Mas de um contínuo morrer,
E não ha magua mais triste
    De quantas podem doer.

Os que out′rora a desejavam,
    Antes delia mal haver,
Vendo que chora e padece,
    Rindo, se põem a dizer:

«— Remador vae na canoa,
    Canoa vae a descer...
Piranha espiou do fundo
    Piranha, que o vae comer.

«Ninguem se fie da braza
    Que os olhos veem arder
Sereno que cae de noite
    Ha de fazel-a morrer.

Panenioxe, Panenioxe,
    Não lhe sabias querer.
Quem te pagara esse golpe
    Que lhe vieste fazer!»



V


Um dia, — era sôbre larde,
    Ia-se o sol a afundar;
Calumby cerrava as folhas
    Para melhor as guardar.

Vem cavalleiro de longe
    E á porta vae apear.
Traz o rosto carregado,
    Como noite sem luar.


Chega-se á pobre da moça
    E assim começa a fallar:
«— Guaycurú doe-lhe no peito
    Tristeza de envergonhar.

«Espôso que te ha fugido
    Hoje se vae a casar;
Noiva não é de alto sangue,
    Porém de sangue vulgar.»

Ergue-se a moça de um pulo,
    Arrebatada, e no olhar
Rebenta-lhe uma faisca
    Como de luz a expirar.

Menino escravo que tinha
    Acerta de ali passar;
Niani attentando nelle
    Chama-o para o seu logar.

«— Captivo es tu: seras livre,
    Mas vaes o nome trocar;
Nome avesso te pozeram...
    Panenioxe has de ficar.»


Pela face cobreada
    Desce, desce com vagar
Uma lagryma: era a última
    Que lhe restava chorar.

Longo tempo alli ficara,
    Sem se mover nem fallar;
Os que a veem naquella magua
    Nem ousam de a consolar.

Depois um longo suspiro,
    E ia a moça a expirar...
O sol de todo morria
    E ennegrecia-se o ar.

Pintam-n′a de vivas cores,
    E lhe lançam um collar;[7]
Em fina esteira de junco
    Logo a vão amortalhar.

O triste pae suspirando
    Nos braços a vae tomar,
Deita-a sôbre o seu cavallo
    E a leva para enterrar.


Na terra em que dorme agora
    Justo lhe era descançar,
Que pagou foro da vida
    Com muito e muito penar.

Que assim se morre de amores
    Aonde habita o jaguar,
Como as princezas morriam
    Pelas terras de além-mar.



Notas

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  1.     Tratando de descobrira significação de Panenioxe, conforme escreve Rodrigues Prado, apenas achei no escasso vocabulario guaycurú, que vem em Ayres do Casal, a palavra nioxe traduzidapor jacaré. Não pude accertar com a significação do primeiro membro da palavra, pane; ha talvez relação entre elle e o nome do rio Yppané.
  2.     «Estas duas armas (lança e facão) tem sido tomadas aos portuguezes e hespanhóes, e algumas compradas a estes eme inadvertidamente lh'as tem vendido» (Rodr. Prado, Hist. dos Ind. Cav).
  3.     Nanine é o nome transcripto na Hist. dos Ind. Cav. Na lingua geral temos niaani, que Martius traduz por infans. Ésta fórma pareceu mais graciosa; e não duvidei adoptal-a, desde que o meu distincto amigo, Dr. Escragnolle Taunay, me asseverou que, no dialecto guaycurú, de que elle ha feito estudos, niani exprime a ideia de moça frantina, delicada, não lhe parecendo que exista a forma empregada na monographia de Rodrigues Prado.
  4.     Os Guaycurús dividem-se em nobres, plebeus ou soldados, e captivos. Do proprio texto que me serviu para ésta composição se ve até que ponto repugna, aos nobres toda a alliança com pessoas de condição inferior.
        A este propósito direi a anedocta que me foi referida por um distincto official da nossa armada", o capitão de fragata Sr. Henrique Baptista, que em 1857 esteve no Paraguay commandando o Japorá, entre o forte Coimbra e o estabelecimento Sebastopol. Ia muita vez a bordo do Japorá um chefe guaycurú, Capitãosinho, muito amigo da nossa officialidáde. Tinha elle uma irmã, que outro chefe guaycurú, Lapagata, cortejava e desejava receber por espôsa. Lapagata recebera o titulo de capitão das mãos do presidente de Matto-Grosso. Oppunha-se com .todas as fôrças ao. enlace o Capitãosinho. Um dia, perguntando-lhe o Sr. H. Baptista porque niotivo não consentia no casamento da irmã com Lapagata, respondeu o altivo Guaycurú:
        — Opponho-me, porque eu sou capitão por herança de meu pae, que ja o era por herança do pae delle. Lapagata é capitão de papel.
  5.     As bocayuvas servem de alimento aos Guaycurús; nas proximidades de sazonarem os cocos fazem elles grandes festas. (Veja Casal e Prado).
  6.     Taes eram os adornos das mulheres guaycurús. (Veja Prado, Casal e D′Azara).
  7.     «As moças ricas vão enfeitadas, como se ornariam para o proprio noivado.» (Ayres do Casal, Corog., 280).