Nirvanismos (grafia de 2008)
Há loucuras que, como as noites polares, se transformam em verdadeiras auroras boreais reveladoras da mais perfeita lucidez e são a ponte mágica de cristal e azul sobre a qual emigramos do gólfão infernal da Terra para as alvoradas de ouro de um Ideal.
Madrugada verde, madrugada de esmeraldas liquefeitas que cintilavam na folhagem tenra, foi essa em que Araldo se fez de marcha, florestas densas a dentro, através da frescura e da virgindade lirial da luz que ondulava...
Já todo o extremo limite do mar, no horizonte longe, acendia, rebrilhava, num polimento de cristal sonoro e a última estrela tardia, terna e doce, vagava, peregrinalmente vagava na Boêmia celeste, extinta já no esplendor verde da madrugada subindo, a intensidade viva da sua chama branca das cândidas vigílias esponsalícias dos astros.
Pairava no ar um anseio voluptuoso de despertar, um espreguiçamento, de braços lânguidos, uma revelação genésica, o nebuloso sentimento da renascença da terra, sempre casta e fecundadora, sonhando e gerando as perpetuidades da Vida.
A hora da transição, da ansiedade do claro-escuro surdinava no ar, bandolinava no céu as derradeiras e saudosas serenatas...
Um calafrio luminoso alvoroçava tudo. Começavam delicadamente, harmoniosamente a vibrar leves baladas de auras que vinham picadas do sargaçoso mar salgado, dos bafejos aromados das plantas e das resinas.
Pelo horizonte subia o êxtase claro da luz difundida aos poucos e gorjeios e cânticos e rumores e alacridades e murmúrios de águas que acordavam cantando, e alaridos e zumbir de insetos, e estrépitos e palpitações, e vozes estranhas e vôos e cicios e ecos e clamores longínquos, e frêmitos e beijos e risos e canções e formas confusas, e vertigens e movimentos, tudo acordava em ondas, burburinhantemente, turbilhonantemente.
Clareava, clareava; e a claridade meiga, suave, que aveludava tudo, parecia cheirar a magnólias desabrochadas ao luar.
Através das florestas, por onde Araldo errava foragido, a alma jungida aos remorsos, fugindo à condenação dos homens, levantavam-se, tremendas e tumultuosas, grandes árvores seculares, sombras e espectros verdes ramalhando as largas copas agitadas de sonhos.
Eram florestas imensas, desconhecidas e imensas, por onde nunca o olhar humano vagara, inacessíveis a outros seres, mas onde Araldo sonhou, ansioso, achar de repente um abrigo eterno, profundo, que ninguém poderia devassar jamais!
E tinham suntuosidades e orquestrações de órgãos monstruosos de catedrais festivas, gemendo e murmurando, plangendo, suspirando graves litanias, cânticos aclamatórios de grande unção coral magnificente, suprema.
Troncos senis e formidandos, como Prometeus petrificados, expunham as suas corpulências primitivas, lembrando aspirações antigas, velhos desejos fatigados que ali houvessem para sempre tomado a compostura indiferente das múmias.
Quem teria guiado Araldo por esses ínvios caminhos? Quem lhe teria, Desespero, Tédio ou Saudade, ensinado o abrigo, a solidão, o obscuro repouso dessas florestas invioladas?!
Ele queria fugir à Vida, fugir, fugir sempre, esconder-se da face do mundo, habitar numa furna como selvagem, viver nas florestas como os lobos, errar nos desertos como os párias.
Fugir para longe dos execrandos contactos dos homens, da medonha estagnação dos seus sentimentos, da descarnada nudez dos seus egoísmos ferozes.
Errar sozinho, sozinho, sombrio visionário peregrino de suprema Aspiração nova, vulto messiânico, talvez um desses graves missionários cujas vidas sacrificadas por uma idéia rasgam-se nos espinhos dos ermos, despedaçam-se nas hostilidades ambientes, martirizam-se crucificadas nas monstruosas cruzes negras dos calvários tantálicos do Tédio...
Ah! a solidão, o deserto, o deserto!
Que belo e que majestoso o deserto, frio e só, só com a lua, só com o sol, só com as estrelas, caminhando sobre as infinitas areias desoladoras, sentindo chorar no peito, como negra água presa e triste, melancolicamente cismadora, a que despedaçaram as asas sem piedade, o grande sentimento de uma esperança para sempre extinta.
Esconder, esconder a chaga da Vida para bem longe, fugir para além deste mundo, para o imponderável Ideal, errar nos sonambulismos da treva e nos sonambulismos da luz — sombra informe batida das rebeliões da terra, arrastada pelas tebaidas de uma enorme saudade e enchendo dela todo o tempo, todo o vácuo desse existir peregrino, desse existir lacerado de impaciências, de febres, de ansiedades, de desejos embrionários cuja primeira flor vermelha e de ouro outras mãos sacrilegamente colheram.
Invadido pela força poderosa de urna paixão aterradora, talvez de uma sensibilidade extra-humana, Araldo queria esconder em seios inteiramente intactos de florestas desconhecidas, em regiões nunca vistas, o horror da sua culpa em muito ter amado e em muito ter iludido o coração e os olhos. Verdadeiramente açoitado pela peste, pela lepra sinistra do ódio e do desprezo humano, como um animal acuado, ele espiritualizara mais e mais a sua natureza, requintara o seu sentir, quint'essenciara os seus nervos e, no sensibilizante misticismo de um Santo, mergulhou no mistério, pairou no maravilhoso, vagueou no Sonho, eterificando-se, diluindo-se em lágrimas, em gemidos abafados, quase perdendo todas as qualidades ingênitas que o prendiam fatalmente à Matéria.
E Araldo é agora o Espectro, a Sombra, o Fantasma de si mesmo, que vê rodar, eternamente rodar diante dos olhos, num espasmo de alucinado, o tropel de Visões da alma gemente, das suas desesperadas Saudades. Vê rodar, eternamente rodar os inquisidores círculos múltiplos, trágicos, onde as suas excelsas Esperanças lentamente, monotonamente nasceram e morreram.
Já, clara e quente nos horizontes, a luz subira de todo, intensa, larga — mar de ouro, mar de ouro e pedrarias prodigiosas, auréolas de íris, sangue, azul e leite derramado abundantemente, vinhos preciosos de astros escorrendo das dornas celestes.
E Araldo, na sua peregrinação constante pelas florestas, caminhava...
Lívido, a cabeça num bamboleio de fadiga, com os cabelos em patético desalinho, como a cabeça de um enforcado, os olhos transpassados de um tormento mudo, a boca seca, áspera, retorcida por um momo lúgubre, o seu perfil dolorosamente esquecido tinha uma doçura triste, uma carícia dolente, uma taciturnidade tão funda, uma angústia tão cruel, uma aflição tão desamparada, que parecia álgido cadáver que procurava para único descanso o túmulo que até mesmo na morte lhe era vedado; ou então um louco que por alguma sugestão hipnótica, por algum pressentimento estranho que os altos Signos assinalam, corresse a ver, despenhado e incerto, os funerais de sua mãe...
E Araldo, nessa peregrinação pelas florestas, caminhava, caminhava.
O sol leonino e guerreiro fazia fuzilar d'alto as suas couraças d'aço, de cristal e prata e desses coruscantes troféus d'armas facetadas viva marchetaria de raios e de centelhas cravejava as florestas por onde Araldo seguia vestido do manto miraculoso das pompas consteladas.
Ah! que transitório, que efêmero nababo ia ele, e que mendigo, que miserando eterno!
Mas, que florestas eram essas que Araldo rompia sempre e a quanto tempo ele as rompia?
Moço, forte, a cabeça ainda chamejante das Quimeras, todos, com pasmo, o viram partir um dia, desaparecer bruscamente de todos, ocultar-se num esquisito Segredo de viver, cujos fabulosos perigos e originais deslumbramentos ninguém perscrutou jamais!
Ele era da eterna Raça maldita dos gloriosos Tristes, dos gloriosos Grandes e vinha de um fundo muito carregado de Meditações e de Cismas, de sede de Sonho, como do centro misterioso e flamejante de um Sistema planetário.
A terra parecera-lhe sempre um formidável buraco onde os homens se arrastavam com as cabeças vazias, mas com os ventres cheios.
A mulher parecera-lhe sempre a perfídia, a traição mordente, verminal de lago, com negras asas sutis de tentação fatal e com carícias de fel.
Assim, sem objetivo entre os homens, sem laços terrestres e sem amor, como que ia deixando finar-se, apodrecer a matéria, para só ressurgir e vitalizar a flor melindrosa e virgem das quint'essências da Espiritualidade.
Lembrava um ser que quisesse absurdamente transpor as barreiras inevitáveis da Vida sem estar sob as diretas influências e as correntes impulsionastes e fatais da matéria.
Perdido, emaranhado por obscuras e confusas psicologias, de síntese em síntese, de generalização em generalização, operando-se em todas as suas faculdades criadoras, imaginativas, em todas as complexidades do seu ser mental, uma profunda, radical Transformação, como esses abaladores terremotos que agitam e convulsionam o frágil organismo do mundo, Araldo foi pouco a pouco rasgando horizontes desconhecidos, atingindo pólos raros e mágicos, subindo a Transcendentalismos invisíveis, imperceptíveis, desprendendo-se cada vez mais da velha Causa tangível, despindo-se do Real, fugindo do seu raio biológico de ação comum, entregando-se completamente ao Isolamento, à Abstração absoluta, até que afinal, um dia, em virtude das próprias Regiões quase extra-humanas a que ascendera, penetrou, transfigurado, em outras delirantes e nebulosas Regiões!
Tempos passaram, muito anos, talvez um século e ei-lo que aí segue ainda, velho já, as pernas bambas, bambas, trôpego velhinho que o Silêncio e o Passado santificam e envolvem com o seus longos véus noturnos...
Que florestas eram essas, com animais piores que os lobos, piores que os tigres, piores que as serpentes, piores que os homens? Não eram, decerto, em região nenhuma da terra, nem do céu, nem do inferno. Onde eram, então, essas florestas? Onde eram?
Mas Araldo, na sua peregrinação constante, caminhava, caminhava, caminhava, como que arrebatado por um vento acre de Imaginação.
O sol, que se tornara intenso, flamejava cada vez mais, ardia-lhe cruamente na face em chicotadas de fogo, fervia, chiava-lhe na pele, abria-lhe a pele em equimoses vermelhas, chagava-o com as suas tenazes em brasa e ele rasgava-o com os pés nos cardos bravos, ensangüentava nos tentáculos hostis das ramagens intrincadas, da multiplicidade maravilhosa de vegetações extravagantes, multiformes, confusas, de exuberâncias fenomenais de folhagens inauditas, dentre as apoteoses viridentes de todas aquelas seivas, das possanças de todos aqueles germens, das impolutas manifestações de todas aquelas vidas vegetativas, sentindo uivar, bramir, rugir feras terríveis que lhe parecia virem de dentro de si próprio, sempre caminhando, caminhando pelas florestas como um deus singular ou um índio magnetizador e feiticeiro que, sob a ação de filtros mágicos, anulasse todo o poder dos animais selvagens, que se abatiam tímidos ante o horror doloroso do seu Espectro peregrinante e como que sobre-humano.
E as florestas se reproduziam infindavelmente, cheias de um pavor majestoso, de fenômenos que as fecundavam e circulavam por todas elas como estupendas criações feéricas.
E ele rompia florestas, florestas, florestas, caminhando como um pesadelo, numa onda surda de ansiedades que não lhe arrancavam, no entanto, nem um grito, nem um ai agoniado, nem um soluço abafado — mas que o transfiguravam, que o tornavam lívido, mais lívido, muito lívido e as pernas mais bambas e os braços mais desolados e o olhar mais perdido, mais errante, mais perdido...
E a hora desse dia era infinita, uma hora que não acabava mais, por um sol que abrasava cada vez mais, incendiava as florestas e parecia não findar nunca! Um dia cruel, interminável, de um sol duro e bruto, pregado impassível no firmamento, que parecia não ter jamais o oásis repousante de um ocaso. Um dia de hora acesa no espaço, como num relógio imutável. Um dia de século, um dia que ele sentia penetrar, abrange eternidade, à proporção que ia envelhecendo mais, que lhe cresciam barbas mais longas, rugas mais imponderáveis, tremuras mais senis, mais pavorosos arrepios, apesar da cáustica flamejação do sol.
Envelhecia mais, gradualmente, com as árvores, com as florestas, que se cobriam também surpreendentemente de um nevoeiro branco como de cabeleiras de velhice...
Envelhecia, envelhecia e as florestas envelheciam juntas com ele, numa fraternidade piedosa de acompanhá-lo na mesma suprema e insana desolação, na mesma alucinação da Vida.
E ele caminhava, caminhava, tão velho como as Idades, no seu constante peregrinar....
Para que novo e intacto Inferno caminhava então ele assim?!
Mas, de repente, eis que as florestas recuam, se apagam, vão desaparecendo aos poucos como por encanto; o assombroso esplendor verde das árvores some-se no longínquo horizonte, como névoas que se desfazem, começam, então, de repente, a surgir areais, areais de desertos inóspitos, areais infindáveis, areais que sucessivamente se reproduzem, longos, muito longos e alvejantes, lá, para além das distâncias que a retina não pode abranger nem descortinar...
E Araldo começa de novo a mergulhar noutra ansiedade, a engolfar os pés nos fofos areais fugidios que como que recuam a cada passo que ele vai dando.
E os areais se prolongam, numa intraduzível tristeza de vastidão, surdos e estéreis, com as suas ondas brancas de pó acumuladas solitariamente.
Vencido pelo tempo, vilipendiado, Araldo vai mergulhando nas surdas areias torvas. Mas, a cada passo que ele dá para adiante, a onda de areia, fofa, frouxa, o arrasta mais para trás; cada investida que ele dá para a frente parece uma investida falsa, vã, inútil, porque os seus pés, pesados e adormentados pela marcha perpétua paralisam completamente quando em mais fofa, mole vaga de areia ansiosamente mergulham.
Em certas zonas, em certas regiões, a vastidão plana dos areais se modifica, dá-se uma transmutação súbita; e elevações de colinas, cômoros altos, de protuberâncias piramidais de catafalcos, ostentam-se ameaçadores diante do escarnecido pária, que galga por eles acima, vai subindo, subindo, lá enterrando inquietamente os pés nos lassos areais, descendo após às ampliações planas, galgando novamente os catafalcos de pó, subindo, descendo, descendo, subindo, às vezes abalado pela impressão de ir suspenso no ar, com as mãos, trêmulas e tísicas, lesmadas por um frio tumular de medo, tateando, oscilando no espaço como duas asas hirtas e a envelhecida e espectral cabeça martirizantemente nimbada pelo sol.
E, à proporção que ele caminha mais para a frente, os horizontes se ampliam e afastam para longe como se obedecessem a um movimento gradual e curioso da elasticidade nos corpos...
E Araldo segue, assombroso, sinistro, através da amplidão e da solidão dos areais mortos, como a Epopéia simbólica das sensações!
Súbito uma legião de fantásticas aves colossais, formidáveis, de corpulência humana abateu-se sobre ele, precipitou-se, num vôo incisivo, como se acaso ali mesmo o fossem devorar inclementemente.
Mas, talvez por tê-lo reconhecido, por senti-lo irmão naquelas agonias supremas, como eram também elas, aves simbolizantes do Sentimento e do Vago, da Piedade e do Consolo, deslizaram suavemente sobre Araldo em carícias de asas, em grasnos compassivos, quase gemidos, cobrindo-o, envolvendo-o com as suas plumagens errantes do Azul e da Treva, na infinita misericórdia das Esferas!
E Araldo assim ficou por alguns momentos, subjugado por esse terror sagrado e ao mesmo tempo pacificante, de olhos fechados aos vultos negros e sepulcrais das aves, atordoado, sonâmbulo, dir-se-ia gozando morbidamente, inconscientemente, o espanto dessas incognoscíveis e emplumadas Aparições.
Depois, quando abriu lentamente os olhos, tinham desaparecido todas as aves, reentrado no Mistério, remergulhado no Vácuo, levando na fímbria das asas olvidadas e poderosas os últimos raios ouro-violáceos do crepúsculo que essas aves ignotas pareciam ter trazido nas imensas sombras das asas e que descera então afinal sobre aquele pasmoso e interminável dia tão duramente impassível como as pedras.
As sombras, amplas, largas, pesadas, circunvolveram logo os sáfaros areais desertos.
Por entre brumas espessas, vagorosa e taciturna, na lenta gênese da sua luz, apareceu a lua, vagamente lembrando a nebulosa de um Espírito...
Uma claridade diluída, fina, frouxa, ia ungindo tudo...
Ondas e ondas nervosas de brancuras lívidas se derramavam como resinas iluminantes; evaporações subiam, se exalavam como de ânforas ardentes, envolvendo a vastidão entre diáfanas auréolas fantasiosas.
Certas tonalidades azuladas, roxas, sulfúreas, languesciam, quebravam-se...
E aqueles aspectos deslumbradores, magos, dos desertos que se repetiam e que o luar martirizava de uma grande mágoa muda, pareciam os aspectos quietos, calados, lacerantemente, silenciosamente dolorosos, das paragens mortas do Esquecimento...
E agora, no luar, outra original ansiedade se difundia — profunda, mais profunda do que nunca, para o Desventurado eterno.
Harmonias violinadas e doloridas alanceavam-lhe os nervos; finas e sutilíssimas melodias afinadas pela mais intraduzível amargura fluíam dos raios do luar, das neblinas, dos Angelus do luar...
E jamais, jamais Araldo parecera tanto um Espectro como agora, com o selo impenetrável das Desilusões augustas, os olhos, a boca, o peito e os pés já letárgica, sonolentamente tocados por fluidos gélidos e magnéticos de morte, como que revestido do sambenito para os Autos-de-fé, caminhando dentro do Sonho, do espasmo branco do luar soturno e cirial...
E todos os sentidos de Araldo se requintavam, atilados na sonoridadade acústica da alva claridade noturna; uma percuciência maior, mais intensa, os vibrava; ele sentia a acuidade penetrante de tal modo expressiva e flagrante como se o seu ser fosse parte esparsa, diluída no grande todo que a lua liriava, agindo com o agir dos inorgânicos, do alado, do evaporável, na mesma sensibilidade intangível da natureza circundante.
Ele sentia difundir-se-lhe diante dos olhos esse indefinido perpetuar de visões e sensações, essas ondulações de mundos fascinadores e novos, o flutuante, o vaporoso estado principal de orbes, de esferas flamantes em condensação; sentia a sugestão original de gênesis que se revelam, e todo esse torpor, esse adormecido quebranto de corpos que se fecundam e geram, todo o caprichoso caos germinativo e alucinante que deve singularmente afetar, com o mais intenso e profundo nevropsiquismo, impressionar curiosamente a retina interior dos cegos no seu sonambulismo tátil.
Fogos-fátuos, prismas cambiantes, eclípticos, giravam-lhe, fosforeavam-lhe dormentemente diante dos olhos, no enebriamento entorpecedor do luar...
Os ouvidos, a cada instante mais dúcteis, mais rítmicos, mais afinados, tinham a pouco e pouco mais aguda suscetibilidade.
O terror do deserto, o sigilo amedrontador do luar, a amplidão, o vago, o incoercível da Noite, punha-lhe em todo o organismo essa excessiva vibração, essa extrema sensibilidade, essa extraordinária superestesia nervosa.
Então, através dos finos cristais musicais do luar, com o ouvido de uma delicadeza quase mórbida de percepção, que atuava no seu sistema nervoso pela ansiedade flagelante, pelo excesso atordoador do sofrimento, pelo refinamento da angústia, parecia a Araldo escutar, vibrado longe na limpidez glacial da lua, o seu nome desventurado: — Araldo! Araldo! Araldo!
E essa voz compungida, num brado claro, como timbrada em aço, chamava alto: — Araldo! Araldo! Onde estás? Onde estás, Araldo?! E como que essa voz se reproduzia, se multiplicava, cada vez se aproximando mais dele — era um marulhar de vozes que estalavam, cantavam de todos os lados, subiam dos areais mortos, desciam dos infinitos céus, do esplendor fabuloso da lua, bradando: Araldo! Araldo! — vibração deslocada na cristalização luminosa; Araldo! Araldo!; osculando os areais desertos, Araldo! Araldo!; vozes castas, carinhosas, abençoadoras e ternas, aladas fantasticamente através do luar tão cheio de miragens, de ilusionismos, tão velado de sugestões e germens miraculosos.
De toda a parte ele ouvia o mesmo clamor, chamando-o, procurando-o, buscando-o por toda a parte. E todo esse clamor formava como que um Réquiem triste de impaciência, de inquietudes, de ansiedades, crescendo em mar atroante de vozes, sombriamente: Araldo! Araldo! Araldo!
A sua velha e atormentada cabeça como que acordava então daquela peregrinante alucinação, agitada pelas saudades que essas erradias vozes lhe traziam, saudades que se transfiguraram outrora nas lendas do luar, saudades que foram para sempre se asilar nos estrelados santuários da Via-Láctea e que vagueavam por lá, sonhando, Virgens e Santas de regiões inacessíveis vestidas do linho imaculado tecido nas refulgências e lactescências dos astros, alanceadas por todas as grandes dores do Mundo, aureoladas de cintilantes diademas feitos de todas as puras lágrimas transfundidas, serenas na graça langue dos seus corpos venusinos e com os seios intactos dos beijos tentadores sagradamente nus, aflorados da pubescência inicial.
Agora, as vozes vinham-lhe em gradações de sonoridade — vozes graves, soturnizadas e proféticas de cantochão e vozes angélicas e frescas de corais gloriosos nas Dulias matutinas e floreadas de maio.
Eram os seus bizarros instintos de Mocidade que acordavam gritando; os aviários de ouro das suas alegrias magoadamente irônicas, que gorjeavam; os seus desejos adormecidos, procurando-o, seduzindo-o, tentando-o; as vibrantes fanfarras, já emudecidas, dos seus vagos triunfos, atordoando-o de ecos dolentes; todo o seu gozo chamejante de outrora e as suas amarguras, desalentos, desesperanças, que o buscavam enternecidamente, com carinho, com profundos estremecimentos.
A requintada magia, as deliqüescências do luar, davam velada, quase apagada reminiscência de um luar muito vago, muito remoto, muito triste, já visto, já sentido e já contemplado outrora nalgum país tumular d'além dos tempos, um luar velho, em diluências de giestas amarelas, de margaridas roxas, de pálidos monsenhores...
Longo, largo disco azulado circundava prognosticamente agora a face imóvel da lua, que parecia penetrada de um letargo morno... Imensas, imensas e incomparáveis tristezas se difundiam no mistério daqueles desertos infinitos, cujo sentimento tremendo da desolação e do nada dilacerava.
Toda a vastidão era como um solitário sarcófago monstruoso, onde — visão dos imprescritíveis Destinos — errasse, cego e só, esse ser desconhecido, única palpitação, única chama nervosa, única alma em ânsias, único suspiro vivo desprendido na mudez absoluta do mágico luar...
Dentre o peso aflitivo da grande noite ritmada de magoadas surdinas, o céu, o impassível céu estava agora brumosamente velado de um fino nevoeiro d'estrelas, como uns olhos de lágrimas...
E Araldo seguia, esquecido Arcanjo primitivo, levado pelas asas sulfúreas dos corcéis árdegos daquele fantástico sonambulismo, tatuado pelos gilvazes do luar; lá ia aquela tormenta viva de nervos, aquela alta psicose, nas transfigurações e nas auréolas da Dor; lá ia o nirvanismo do nirvanismo, o infinito do infinito...
Súbito, porém, um vendaval terrível, o atordoante simoun convulsivo, epiléptico, abrasador e medonho, tão espesso, tão denso que encobriu totalmente o luar, bramiu em rodomoinhos, em vórtices tenebrosos, revolvendo, levantando em montanhas no espaço toda a torva poeira das areais.
Um simoun estranho, mais horrível que nos desertos da Núbia, enovelado, torcicoloso, em grossas espirais de serpentes gigantescas, ciclópicas, com as caudas e as cabeças titânicas vertiginosamente alvoroçadas nos delírios sanguissedentos dos letíficos e monstruosos venenos.
Nas cordas tempestuosas desse vento tremendo choravam por vezes sinfonias tannhäuserianas, loucuras reileareanas. Era como se turbilhões de demônios soltos, arrancando os cabelos com desespero, bufassem e ululassem. Um pavor trágico enchia o deserto, assombrava o deserto. Indefinidas angústias gemiam, e soluçavam no vento, velhas queixas encantadas, velhas tristezas milenárias e fundas; primitivas línguas bárbaras violenta e confusamente se dilaceravam, se atropelavam; uivos felinos, ganidos, urros formidáveis de monstros cruzavam-se no ar...
A brancura tenra, de anho branco, de cordeiro imaculado, da lua, aparecia, por vezes, de uma tonalidade sombria, apagada, de um eterismo mórbido de eclipse, dando um diluente sentimento de remotividade amarga, como se a lua assim desse modo vista trouxesse a impressão longínqua de ser ela própria a saudade da lua...
No meio desse tétrico deserto nunca imaginado, desse luar inquisitorial, mortal, esse vento sinistro tinha uma ressonância subterrânea, funesta e cruel de clamor niilista, evocava as florescências e as quint'essências doentias das sensibilidades do Budismo.
E Araldo, cada vez mais Espectro em meio à Natureza toda, cada vez mais silhuético, mais perdido, mais apagado, mais vago no vácuo tremendo daquelas vastidões dolorosas, o vulto cada vez mais diminuído, sumindo-se, sumindo-se, sumindo-se na distância, na absorção da Imensidade circunvolvente, absurda e insensivelmente mergulhou nos turbilhões do vendaval terrível, foi arrebatado nas malhas atrozes e negras do simoun, envolto na lúgubre mortalha dos areais — louco, no auge da sua loucura, na crise formidável dos acordados e alucinados pesadelos que lhe abalavam assim, sempre, fundamente, o cérebro e eram, no entanto, através da grande alucinação da Vida, do abismo eterno da Vida, as únicas horas mais felizes e puras em que ele se enclausurava nos tabernáculos fechados da sua Paixão, os únicos instantes sagrados, os únicos momentos lúcidos para os sóis febricitantes, esquisitos e majestosos da sua fabulosa e sobre-humana Imaginação de louco...