Os Maias/Livro II/V
V
Maria Eduarda e Carlos, que ficára essa noite nos Olivaes na sua casinhola, acabavam de almoçar. O Domingos servira o café, e antes de sahir deixára ao lado de Carlos a caixa de cigarettes e o Figaro. As duas janellas estavam abertas. Nem uma folha se movia no ar pesado da manhã encoberta, entristecida ainda por um dobre lento de sinos que morria ao longe nos campos. No banco de cortiça, sob as arvores, miss Sarah costurava preguiçosamente; Rosa ao lado brincava na relva. E Carlos, que viera n’uma intimidade conjugal, com uma simples camisa de sêda e um jaquetão de flanella, chegou então a cadeira para junto de Maria, tomou-lhe a mão, brincando-lhe com os anneis, n’uma lenta caricia:
— Vamos a saber, meu amor... Decidiste, por fim? Quando queres partir?
N’essa noite, entre os seus primeiros beijos de noiva, ella mostrára o desejo enternecido de não alterar o plano da Italia e d’um ninho romantico entre as flôres d’Isola-bella: sómente agora não iam esconder a inquietação d’uma felicidade culpada, mas gozar o repouso d’uma felicidade legitima. E, depois de todas as incertezas e tormentos que o tinham agitado desde o dia em que cruzára Maria Eduarda no Aterro, Carlos anhelava tambem pelo momento de se installar emfim no conforto d’um amor sem duvidas e sem sobresaltos:
— Eu por mim abalava ámanhã. Estou sôfrego de paz. Estou até sôfrego de preguiça... Mas tu, dize, quando queres?
Maria não respondeu; apenas o seu olhar sorriu, reconhecido e apaixonado. Depois, sem retirar a mão que a longa caricia de Carlos ainda prendia, chamou Rosa através da janella.
— Mamã, espera, já vou! Passa-me umas migalhas... Andam aqui uns pardaes que ainda não almoçaram...
— Não, vem cá.
Quando ella appareceu á porta, toda de branco, córada, com uma das ultimas rosas de verão mettida no cinto — Maria quil-a mais perto, entre elles, encostada aos seus joelhos. E, arranjando-lhe a fita solta do cabello, perguntou, muito séria, muito commovida, se ella gostaria que Carlos viesse viver com ellas de todo e ficar alli na Toca... Os olhos da pequena encheram-se de surpreza e de riso:
— O quê! estar sempre, sempre aqui, mesmo de noite, toda a noite?... E ter aqui as suas malas, as suas coisas?...
Ambos murmuraram — «sim».
Rosa então pulou, bateu as palmas, radiante, querendo que Carlos fosse já, já, buscar as suas malas e as suas coisas...
— Escuta, disse-lhe ainda Maria gravemente, retendo-a sobre os joelhos. E gostavas que elle fosse como o papá, e que andasse sempre comnosco, e que lhe obedecessemos ambas, e que gostassemos muito d’elle?
Rosa ergueu para a mãe uma facesinha compenetrada, onde todo o sorriso se apagára.
— Mas eu não posso gostar mais d’elle do que gósto!...
Ambos a beijaram, n’um enternecimento que lhes humedecia os olhos. E Maria Eduarda, pela primeira vez diante de Rosa, debruçando-se sobre ella, beijou de leve a testa de Carlos. A pequena ficou pasmada para o seu amigo, depois para a mãi. E pareceu comprehender tudo; escorregou dos joelhos de Maria, veio encostar-se a Carlos com uma meiguice humilde:
— Queres que te chame papá, só a ti?
— Só a mim, disse elle, fechando-a toda nos braços.
E assim obtiveram o consentimento de Rosa — que fugiu, atirando a porta, com as mãos cheias de bolos para os pardaes.
Carlos levantou-se, tomou a cabeça de Maria entre as mãos, e contemplando-a profundamente, até á alma, murmurou n’um enlevo:
— És perfeita!
Ella desprendeu-se, com melancolia, d’aquella adoração que a perturbava.
— Escuta... Tenho ainda muito, muito que te dizer, infelizmente. Vamos para o nosso kiosque... Tu não tens nada que fazer, não? E que tenhas, hoje és meu... Vou já ter comtigo. Leva as tuas cigarettes.
Nos degraus do jardim, Carlos parou a olhar, a sentir a doçura velada do céo cinzento... E a vida pareceu-lhe adoravel, d’uma poesia fina e triste,assim envolta n’aquella nevoa macia onde nada resplandecia e nada cantava, e que tão favoravel era para que dois corações, desinteressados do mundo e em desharmonia com elle, se abandonassem juntos ao contínuo encanto de estremecerem juntos na mudez e na sombra.
— Vamos ter chuva, tio André, disse elle, passando junto do velho jardineiro que aparava o buxo.
O tio André, atarantado, arrancou o chapéo. Ah! uma gota d’agua era bem necessaria, depois da estiagem! O torrãosinho já estava com sêde! E em casa todos bons? A senhora? A menina?
— Tudo bom, tio André, obrigado.
E no seu desejo de vêr todos em torno de si felizes como elle e como a terra sequiosa que ia ser consolada — Carlos metteu uma libra na mão do tio André, que ficou deslumbrado, sem ousar fechar os dedos sobre aquelle ouro extraordinario que reluzia.
Quando Maria entrou no kiosque trazia um cofre de sandalo. Atirou-o para o divan: fez sentar Carlos ao lado, bem confortavel, entre almofadas: accendeu-lhe uma cigarrete. Depois agachou-se aos seus pés, sobre o tapete, como na humildade de uma confissão.
— Estás bem assim? Queres que o Domingos te traga agua e cognac?... Não? Então ouve agora, quero-te contar tudo...
Era toda a sua existencia que ella desejava contar. Pensára mesmo em lh’a escrever n’uma carta interminavel, como nos romances. Mas decidira antes tagarellar alli uma manhã inteira, aninhada aos seus pés.
— Estás bem, não estás?
Carlos esperava, commovido. Sabia que aquelles labios amados iam fazer revelações pungentes para o seu coração — e amargas para o seu orgulho. Mas a confidencia da sua vida completava a posse da sua pessoa: quando a conhecesse toda no seu passado sentil-a-hia mais sua inteiramente. E no fundo tinha uma curiosidade insaciavel d’essas coisas que o deviam pungir e que o deviam humilhar.
— Sim, conta... Depois esquecemos tudo e para sempre. Mas agora dize, conta... Onde nasceste tu por fim?
Nascera em Vienna: mas pouco se recordava dos tempos de criança, quasi nada sabia do papá, a não ser a sua grande nobreza e a sua grande belleza. Tivera uma irmãsinha que morrera de dois annos e que se chamava Heloisa. A mamã, mais tarde, quando ella era já rapariga, não tolerava que lhe perguntassem pelo passado; e dizia sempre que remexer a memoria das coisas antigas prejudicava tanto como sacudir uma garrafa de vinho velho... De Vienna apenas recordava confusamente largos passeios d’arvores, militares vestidos de branco, e uma casa espelhada e dourada onde se dançava: ás vezes durante tempos ella ficava lá só com o avô, um velhinho triste e timido, mettido pelos cantos, que lhe contara historias de navios. Depois tinham ido a Inglaterra: mas lembrava-se sómente de ter atravessado um grande rumor de ruas, n’um dia de chuva, embrulhada em pelles, sobre os joelhos d’um escudeiro. As suas primeiras memorias mais nitidas datavam de Paris; a mamã, já viuva, andava de luto pelo avô; e ella tinha uma aia italiana que a levava todas as manhãs, com um arco e com uma pélla, brincar aos Campos Elyseos. Á noite costumava vêr a mamã decotada, n’um quarto cheio de setins e de luzes; e um homem louro, um pouco brusco, que fumava sempre estirado pelos sofás, trazia-lhe de vez em quando uma boneca, e chamava-lhe mademoiselle Triste-cœur por causa do seu arzinho sisudo. Emfim a mamã mettera-a n’um convento ao pé de Tours — porque n’essa idade, apesar de cantar já ao piano as walsas da Belle Helène, ainda não sabia soletrar. Fôra nos jardins do convento, onde havia lindos lilazes, que a mamã se separára d’ella n’uma paixão de lagrimas; e ao lado esperava, para a consolar decerto, um sujeito muito grave, de bigodes encerados, a quem a Madre Superiora fallara com veneração.
A mamã ao principio vinha vêl-a todos os mezes, demorando-se em Tours dois, tres dias; trazia-lhe uma profusão de presentes, bonecas, bonbons, lenços bordados, vestidos ricos, que lhe não permittia usar a regra severa do convento. Davam então passeios de carruagem pelos arredores de Tours: e havia sempre officiaes a cavallo, que escoltavam a caleche — e tratavam a mamã por tu. No convento as mestras, a Madre Superiora não gostavam d’estas sahidas — nem mesmo que a mamã viesse acordar os corredores devotos com as suas risadas e o ruido das suas sêdas; ao mesmo tempo pareciam temel-a; chamavam-lhe Madame la Comtesse. A mamã era muito amiga do general que commandava em Tours, e visitava o bispo. Monsenhor, quando vinha ao convento, fazia-lhe uma festinha especial na face e alludia risonhamente a son excellente mère. Depois a mamã começou a apparecer menos em Tours. Esteve um anno longe, quasi sem escrever, viajando na Allemanha; voltou um dia, magra e coberta de luto, e ficou toda a manhã abraçada a ella a chorar.
Mas na visita seguinte vinha mais moça, mais brilhante, mais ligeira, com dois grandes galgos brancos, annunciando uma romagem poetica á Terra Santa e a todo o remoto Oriente. Ella tinha então quasi dezeseis annos: pela sua applicação, os seus modos dôces e graves, ganhára a affeição da Madre Superiora — que ás vezes, olhando-a com tristeza, acariciando-lhe o cabello cahido em duas tranças segundo a regra, lhe mostrava o desejo de a conservar sempre ao seu lado. Le monde, dizia ella, ne vous sera bon à rien, mon enfant!... Um dia, porém, appareceu para a levar para Paris, para a mamã, uma Madame de Chavigny, fidalga pobre, de caracoes brancos, que era como uma estampa de severidade e de virtude.
O que ella chorára ao deixar o convento! Mais choraria se soubesse o que ia encontrar em Paris!
A casa da mamã, no Parc Monceaux, era na realidade uma casa de jogo — mas recoberta de um luxo sério e fino. Os escudeiros tinham meias de sêda; os convidados, com grandes nomes no Nobiliario de França, conversavam de corridas, das Tulherias, dos discursos do Senado; e as mesas de jogo armavam-se depois como uma distracção mais picante. Ella recolhia sempre ao seu quarto ás dez horas: Madame de Chavigny, que ficára como sua dama de companhia, ia com ella cedo ao Bois n’um coupé estufo de douairière. Pouco a pouco, porém, este grande verniz começou a estalar. A pobre mamã cahira sob o jugo d’um Mr. de Trevernnes, homem perigoso pela sua seducção pessoal e por uma desoladora falta de honra e de senso. A casa descahiu rapidamente n’uma bohemia mal dourada e ruidosa. Quando ella madrugava, com os seus habitos saudaveis do convento, encontrava paletots d’homens por cima dos sofás: no marmore das consoles restavam pontas de charuto entre nodoas de champagne; e n’algum quarto mais retirado ainda tinia o dinheiro d’um baccarat talhado á claridade do sol. Depois uma noite, estando deitada, sentira de repente gritos, uma debandada brusca na escada; veio encontrar a mamã estirada no tapete, desmaiada; ella dissera-lhe apenas mais tarde, alagada em lagrimas, «que tinha havido uma desgraça»...
Mudaram então para um terceiro andar da Chaussée-d’Antin. Ahi começou a apparecer uma gente desconhecida e suspeita. Eram Valachos de grandes bigodes, Peruanos com diamantes falsos, e condes romanos que escondiam para dentro das mangas os punhos enxovalhados... Por vezes entre esta malta vinha algum gentleman — que não tirava o paletot, como n’um café-concerto. Um d’esses foi um irlandez, muito moço, Mac-Gren... Madame de Champigny deixára-as desde que faltára o coupé severo, acolchoado de setim; e ella, só com a mãi, insensivelmente, fatalmente, fôra-se misturando a essa vida tresnoitada de grogs e de baccarat.
A mamã chamava a Mac-Gren o «bébé». Era com effeito uma criança estouvada e feliz. Namorára-se d’ella logo com o ardor, a effusão, o impeto d’um irlandez; e prometteu-lhe fazel-a sua esposa apenas se emancipasse — porque Mac-Gren, menor ainda, vivia sobretudo das liberalidades de uma avó excentrica e rica que o adorava, e que habitava a Provença n’uma vasta quinta onde tinha feras em jaulas... E no entanto induzia-a sem cessar a fugir com elle, desesperado de a vêr entre aquelles Valachos que cheiravam a genebra. O seu desejo era leval-a para Fontainebleau, para um cottage com trepadeiras de que fallava sempre, e esperar ahi tranquillamente a maioridade que lhe traria duas mil libras de renda. Decerto, era uma situação falsa: mas preferivel a permanecer n’aquelle meio depravado e brutal onde ella a cada instante córava... A esse tempo a mamã parecia ir perdendo todo o senso, desarranjada de nervos, quasi irresponsavel. As difficuldades crescentes estonteavam-n’a; brigava com as criadas; bebia champagne «pour s’étourdir». Para satisfazer as exigencias de Mr. de Trevernnes empenhára as suas joias, e quasi todos os dias chorava com ciumes d’elle. Por fim houve uma penhora: uma noite tiveram d’enfardelar á pressa roupa n’um sacco, e ir dormir a um hotel. E, peor, peor que tudo! Mr. de Trevernnes começava a olhar para ella d’um modo que a assustava...
— Minha pobre Maria! murmurou Carlos, pallido, agarrando-lhe as mãos.
Ella permaneceu um momento suffocada, com o rosto cahido nos joelhos d’elle. Depois limpando as lagrimas que a ennevoavam:
— Ahi estão as cartas de Mac-Gren, n’esse cofre... Tenho-as guardado sempre para me justificar a mim mesma, se me é possivel... Pede-me em todas que vá para Fontainebleau; chama-me sua esposa; jura que apenas juntos iremos ajoelhar-nos diante da avó, obter a sua indulgencia... Mil promessas! E era sincero... Que queres que te diga? A mamã uma manhã partiu com uma sucia para Baden. Fiquei em Paris só, n’um hotel... Tinha um palpite, um terror que Trevernnes apparecia... E eu só! Estava tão transtornada que pensei em comprar um rewolver... Mas quem veio foi Mac-Gren.
E partira com elle, sem precipitação, como sua esposa, levando todas as suas malas. A mamã de volta de Baden correu a Fontainebleau, desvairada e tragica, amaldiçoando Mac-Gren, ameaçando-o com a prisão de Mazas, querendo esbofeteal-o; depois rompeu a chorar. Mac-Gren, como um bébé, agarrou-se a ella aos beijos, chorando tambem. A mamã terminou por os apertar a ambos contra o coração, já rendida, perdoando tudo, chamando-lhes «filhos da sua alma». Passou o dia em Fontainebleau, radiante, contando «a patuscada de Baden», já com o plano de vir installar-se no cottage, viver junto d’elles n’uma felicidade calma e nobre de avósinha... Era em maio; Mac-Gren, á noite, deitou um «fogo preso» no jardim.
Começou um anno quieto e facil. O seu unico desejo era que a mamã vivesse com elles socegadamente. Diante das suas supplicas ella ficava pensativa, dizia: «Tens razão, veremos!» Depois remergulhava no torvelinho de Paris, d’onde resurgia uma manhã, n’um fiacre, estremunhada e afflicta, com uma rica pelliça sobre uma velha saia, a pedir-lhe cem francos... Por fim nascera Rosa. Toda a sua anciedade desde então fôra legitimar a sua união. Mas Mac-Gren adiava, levianamente, com um medo pueril da avó. Era um perfeito bébé! Entretinha as manhãs a caçar passaros com visco! E ao mesmo tempo terrivelmente teimoso: ella pouco a pouco perdera-lhe todo o respeito. No começo da primavera a mamã um dia appareceu em Fontainebleau com as suas malas, succumbida, enojada da vida. Rompera emfim com Trevernnes. Mas quasi immediatamente se consolou: e começou d’ahi a adorar Mac-Gren com uma tão larga effusão de caricias, e achando-o tão lindo, que era ás vezes embaraçadora. Os dois passavam o dia, com copinhos de cognac, jogando o bezigue.
De repente rebentou a guerra com a Prussia. Mac-Gren enthusiasmado, e apesar das supplicas d’ellas, corrêra a alistar-se no batalhão de Zuavos de Charette; a avó de resto approvára este rasgo d’amor pela França, e fizera-lhe n’uma carta em verso, em que celebrava Jeanne d’Arc, uma larga remessa de dinheiro. Por esse tempo Rosa teve o garrotilho. Ella, sem lhe largar o leito, mal attendia ás noticias da guerra. Sabia apenas confusamente das primeiras batalhas perdidas na fronteira. Uma manhã a mamã rompeu-lhe no quarto, estonteada, em camisa: o exercito capitulára em Sédan, o imperador estava prisioneiro! «É o fim de tudo, é o fim de tudo!» dizia a mamã espavorida. Ella veio a Paris procurar noticias de Mac-Gren: na rua Royale teve de se refugiar n’um portão, diante do tumulto d’um povo em delirio, acclamando, cantando a Marselheza, em torno de uma caleche onde ia um homem, pallido como cera, com um cache-nez escarlate ao pescoço. E um sujeito ao lado, aterrado, disse-lhe que o povo fôra buscar Rochefort á prisão e que estava, proclamada a Republica.
Nada soubera de Mac-Gren. Começaram então dias d’infinito sobresalto. Felizmente Rosa convalescia. Mas a pobre mamã causava dó, envelhecida de repente, sombria, prostrada n’uma cadeira, murmurando apenas: «É o fim de tudo, é o fim de tudo!» E parecia na verdade o fim da França. Cada dia uma batalha perdida; regimentos presos, apinhados em wagons de gado, internados a todo o vapor para os presidios d’Allemanha; os prussianos marchando sobre Paris... Não podiam permanecer em Fontainebleau; o duro inverno começava; e com o que venderam á pressa, com o dinheiro que Mac-Gren deixára, partiram para Londres.
Fôra uma exigencia da mamã. E em Londres ella, desorientada na enorme e estranha cidade, doente tambem, deixára-se levar pelas tontas idéas da mãe. Tomaram uma casa mobilada, muito cara, nos bairros de luxo, ao pé de Mayfair. A mamã fallava em organisar alli o centro de resistencia dos bonapartistas refugiados; no fundo, a desgraçada pensava em crear uma casa de jogo em Londres. Mas ai! eram outros tempos... Os imperialistas, sem imperio, não jogavam já o baccarat. E ellas em breve, sem rendimentos, gastando sempre, tinham-se achado com aquella dispendiosa casa, tres criados, contas colossaes e uma nota de cinco libras no fundo d’uma gaveta. E Mac-Gren mettido dentro de Paris, com meio milhão de prussianos em redor. Foi necessario vender todas as joias, vestidos, até as pelliças. Alugaram então, no bairro pobre de Soho, tres quartos mal mobilados. Era o lodging de Londres em toda a sua suja, solitaria tristeza; uma criadita unica, enfarruscada como um trapo; alguns carvões humidos fumegando mal na chaminé; e para jantar um pouco de carneiro frio e cerveja da esquina. Por fim faltára mesmo o escasso shilling para pagar o lodging. A mamã não sahia do catre, doente, succumbida, chorando. Ella ás vezes ao anoitecer, escondida n’um water-proof, levava ao prégo embrulhos de roupa (até roupa branca, até camisas!) para que ao menos não faltasse a Rosa a sua chicara de leite. As cartas que a mamã escrevia a alguns antigos companheiros de ceias na Maison d’Or ficavam sem resposta: outras traziam, embrulhada n’um bocado de papel, alguma meia-libra que tinha o pavoroso sabor d’uma esmola. Uma noite, um sabbado de grande nevoeiro, indo empenhar um chambre de rendas da mamã, perdera-se, errára na vasta Londres n’uma treva amarellada, a tiritar de frio, quasi com fome, perseguida por dois brutos que empestavam a alcool. Para lhes fugir atirou-se para dentro d’um cab que a levou a casa. Mas não tinha um penny para pagar ao cocheiro; e a patrôa roncava no seu cacifro, bebeda. O homem resmungou; ella, succumbida, alli mesmo na porta rompeu a chorar. Então o cocheiro desceu da almofada, commovido, offereceu-se para a levar de graça ao prégo, onde ajustariam as suas contas. Foi; o pobre homem só aceitou um schilling; até mesmo suppondo-a franceza grunhiu blasphemias contra os prussianos, e teimou em lhe offerecer uma bebida.
Ella no emtanto procurava uma occupação qualquer — costura, bordados, traducções, cópias de manuscriptos... Não achava nada. N’aquelle duro inverno o trabalho escasseava em Londres; surgira uma multidão de francezes, pobres como ella, luctando pelo pão... A mamã não cessava de chorar; e havia alguma coisa mais terrivel que as suas lagrimas — eram as suas allusões constantes á facilidade de se ter em Londres dinheiro, conforto e luxo, quando se é nova e se é bonita...
— Que te parece esta vida, meu amor? exclamou ella, apertando as mãos amargamente.
Carlos beijou-a em silencio, com os olhos humedecidos.
— Emfim tudo passou, continuou Maria Eduarda. Fez-se a paz, o cêrco acabou. Paris estava de novo aberto... Sómente a difficuldade era voltar.
— Como voltaste?
Um dia por acaso, em Regent-Street, encontrára um amigo de Mac-Gren, outro irlandez, que muitas vezes jantára com elles em Fontainebleau. Veio vêl-as a Soho; diante d’aquella miseria, do bule de chá aguado, dos ossos de carneiro requentando sobre tres brazas mortas, começou, como bom irlandez, por accusar o governo d’Inglaterra e jurar uma desforra de sangue. Depois offereceu, com os beiços já a tremer, toda a sua dedicação. O pobre rapaz batia tambem o lagedo n’uma lucta tormentosa pela vida. Mas era irlandez; e partiu logo generosamente, armado de todos os seus ardis, a conquistar através de Londres o pouco que ellas necessitavam para recolher a França. Com effeito appareceu n’essa mesma noite, derreado e triumphante, brandindo tres notas de banco e uma garrafa de champagne. A mamã ao vêr, depois de tantos mezes de chá preto, a garrafa de Clicquot encarapuçada de ouro — quasi desmaiou, de enternecimento. Enfardelaram os trapos. Ao partirem, na estação de Charing-Cross, o irlandez levou-a para um canto, e engasgado, torcendo os bigodes, disse-lhe que Mac-Gren tinha morrido na batalha de Saint-Privat...
— Para que te hei de eu contar o resto? Em Paris recomecei a procurar trabalho. Mas tudo estava ainda em confusão... Quasi immediatamente veio a Communa... Pódes acreditar que muitas vezes tivemos fome. Mas emfim já não era Londres, nem o inverno, nem o exilio. Estavamos em Paris, soffriamos de companhia com amigos d’outros tempos. Já não parecia tão terrivel... Com todas estas privações a pobre Rosa começava a definhar... Era um supplicio vêl-a perder as côres, tristinha, mal vestida, mettida n’uma trapeira... A mamã já se queixava da doença de coração que a matou... O trabalho que eu encontrava, mal pago, dava-nos apenas para a renda da casa, e para não morrer absolutamente de necessidade... Principiei a adoecer de anciedade, de desespero. Luctei ainda. A mamã fazia dó. E Rosa morria se não tivesse outro regimen, bom ar, algum conforto... Conheci então Castro Gomes em casa d’uma antiga amiga da mamã, que não perdera nada com a guerra, nem com os prussianos, e que me dava trabalhos de costura... E o resto sábel-o... Nem eu me lembro... Fui levada... Via ás vezes Rosa, coitadinha, embrulhada n’um chale, muito quietinha ao seu canto, depois de rapada a sua magra tigela de sopas, e ainda com fome...
Não pôde continuar; rompeu a chorar, cahida sobre os joelhos de Carlos. E elle na sua emoção só lhe podia dizer, passando-lhe as mãos tremulas pelos cabellos, que a havia de desforrar bem de todas as miserias passadas...
— Escuta ainda, murmurou ella, limpando as lagrimas. Ha só uma coisa mais que te quero dizer. E é a santa verdade, juro-te pela alma de Rosa! É que n’estas duas relações que tive o meu coração conservou-se adormecido... Dormiu sempre, sempre, sem sentir nada, sem desejar nada, até que te vi... E ainda te quero dizer outra coisa...
Um momento hesitou, coberta de rubor. Passára os braços em torno de Carlos, pendurada toda d’elle, com os olhos mergulhados nos seus. E foi mais baixo que balbuciou na derradeira, na absoluta confissão de todo o seu sêr:
— Além de ter o coração adormecido, o meu corpo permaneceu sempre frio, frio como um marmore...
Elle estreitou-a a si arrebatadamente: e os seus labios ficaram collados muito tempo, em silencio, completando, n’uma emoção nova e quasi virginal, a communhão perfeita das suas almas.
D’ahi a dias Carlos e Ega vinham n’uma victoria, pela estrada dos Olivaes, em caminho da Toca.
Toda essa manhã, no Ramalhete, Carlos estivera emfim contando ao Ega o impulso de paixão que o lançára de novo e para sempre, como esposo, nos braços de Maria; e, na confiança absoluta que o prendia ao Ega, revelára-lhe mesmo miudamente a historia d’ella, dolorosa e justificadora. Depois, ao acalmar o calor, propoz que fossem comer as sopas á Toca. Ega deu uma volta pelo quarto, hesitando. Por fim começou a passar devagar a escova pelo paletot, murmurando, como durante as longas confidencias de Carlos: «É prodigioso!... Que estranha coisa, a vida!»
E agora pela estrada, na aragem dôce do rio, Carlos fallava ainda de Maria, da vida na Toca, deixando escapar do coração muito cheio o interminavel cantico da sua felicidade.
— É facto, Egasinho, conheço quasi a felicidade perfeita!
— E cá na Toca ainda ninguem sabe nada?
Ninguem — a não ser Melanie, a confidente — suspeitava a profunda alteração que se fizera nas suas relações: e tinham assentado que miss Sarah e o Domingos, primeiras testemunhas da sua amizade, seriam régiamente recompensados e despedidos quando em fins de outubro elles partissem para Italia.
— E ides então casar a Roma?...
— Sim... Em qualquer logar onde haja um altar e uma estola. Isso não falta em Italia... E é então, Ega, que reapparece o espinho de toda esta felicidade. É por isso que eu disse «quasi.» O terrivel espinho, o avô!
— É verdade, o velho Affonso. Tu não tens idéa como lhe has de fazer conhecer esse caso?...
Carlos não tinha idéa nenhuma. Sentia só que lhe faltava absolutamente a coragem de dizer ao avô: «esta mulher, com quem vou casar, teve na sua vida estes erros»... E além d’isso, já reflectira, era inutil. O avô nunca comprehenderia os motivos complicados, fataes, inilludiveis que tinham arrastado Maria. Se lh’os contasse miudamente — o avô veria alli um romance confuso e fragil, antipathico á sua natureza forte e candida. A fealdade das culpas feril-o-hia, exclusivamente; e não lhe deixaria apreciar, com serenidade, a irresistibilidade das causas. Para perceber este caso d’um caracter nobre apanhado dentro d’uma implacavel rede de fatalidades, seria necessario um espirito mais ductil, mais mundano que o do avô... O velho Affonso era um bloco de granito: não se podiam esperar d’elle as subtis discriminações d’um casuista moderno. Da existencia de Maria só veria o facto tangivel: — cahira successivamente nos braços de dois homens. E d’ahi decorreria toda a sua attitude de chefe de familia. Para que havia elle pois de fazer ao velho uma confissão, que necessariamente originaria um conflicto de sentimentos e uma irreparavel separação domestica?...
— Pois não te parece, Ega?
— Falla mais baixo, olha o cocheiro.
— Não percebe bem o portuguez, sobretudo o nosso estylo... Pois não te parece?
Ega raspava phosphoros na sola para accender o charuto. E resmungava:
— Sim, o velho Affonso é granitico...
Por isso Carlos concebera outro plano, mais sagaz: consistia em esconder ao avô o passado de Maria — e fazer-lhe conhecer a pessoa de Maria. Casavam secretamente em Italia. Regressavam: ella para a rua de S. Francisco, elle filialmente para o Ramalhete. Depois Carlos levava o avô a casa da sua boa amiga, que conhecera em Italia, M.me de Mac-Gren. Para o prender logo lá estavam os encantos de Maria, todas as graças d’um interior delicado e sério, jantarinhos perfeitos, idéas justas, Chopin, Beethoven, etc. E, para completar a conquista de quem tão enternecidamente adorava crianças, lá estava Rosa... Emfim, quando o avô estivesse namorado de Maria, da pequena, de tudo — elle, uma manhã, dizia-lhe francamente: «Esta creatura superior e adoravel teve uma quéda no seu passado; mas eu casei com ella; e, sendo tal como é, não fiz bem, apesar de tudo, em a escolher para minha esposa?» E o avô, perante esta terrivel irremediabilidade do facto consummado, com toda a sua indulgencia de velho enternecido a defender Maria — seria o primeiro a pensar que, se esse casamento não era o melhor segundo as regras do mundo, era decerto o melhor segundo os interesses do coração...
— Pois não te parece, Ega?
Ega, absorvido, sacudia a cinza do charuto. E pensava que Carlos, em resumo, adoptára para com o avô a complicada combinação que Maria Eduarda tentára para com elle — e imitava sem o sentir os subtis raciocinios d’ella.
— E acabou-se, continuava Carlos. Se elle na sua indulgencia aceitar tudo, bravo! dá-se uma grande festa no Ramalhete... Senão, foi-se! passaremos a viver cada um para seu lado, fazendo ambos prevalecer a superioridade de duas coisas excellentes: o avô as tradições do sangue, eu os direitos do coração.
E, vendo o Ega ainda silencioso:
— Que te parece? Dize lá. Tu andas tão falto de idéas, homem!
O outro sacudiu a cabeça, como despertando.
— Queres que te diga o que me parece, com franqueza? Que diabo, nós somos dois homens fallando como homens!... Então aqui está: teu avô tem quasi oitenta annos, tu tens vinte e sete ou o quer que seja... É doloroso dizel-o, ninguem o diz com mais dôr que eu, mas teu avô ha de morrer... Pois bem, espera até lá. Não cases. Suppõe que ella tem um pae muito velho, teimoso e caturra, que detesta o snr. Carlos da Maia e a sua barba em bico. Espera; continúa a vir á Toca, na tipoia do Mulato; e deixa teu avô acabar a sua velhice calma, sem desillusões e sem desgostos...
Carlos torcia o bigode, mudo, enterrado no fundo da victoria. Nunca, n’esses dias de inquietação, lhe acudira idéa tão sensata, tão facil! Sim, era isso, esperar! Que melhor dever do que poupar ao pobre avô toda a dôr?... Maria de certo, como mulher, estava desejando anciosamente a conversão do amante no marido pelo laço d’estola que tudo purifica e nenhuma força desata. Mas ella mesma preferiria uma consagração legal — que não fosse assim precipitada, dissimulada... Depois, tão recta e generosa, comprehenderia bem a obrigação suprema de não mortificar aquelle santo velho. De resto, não conhecia ella a sua lealdade solida e pura como um diamante? Recebera a sua palavra: desde esse momento estavam casados, não diante do sacrario e nos registos da sacristia — mas diante da honra e na inabalavel communhão dos seus corações...
— Tens razão! gritou por fim, batendo no joelho do Ega. Tens immensamente razão! Essa idéa é genial! Devo esperar... E emquanto espero?...
— Como, emquanto esperas? acudiu Ega, rindo. Que diabo! Isso não é commigo!
E mais sério:
— Emquanto esperas tens esse metal vil que faz a existencia nobre. Installas tua mulher, porque desde hoje é tua mulher, aqui nos Olivaes ou n’outro sitio, com o gosto, o conforto e a dignidade que competem a tua mulher... E deixas-te ir! Nada impede que façaes essa viagem nupcial á Italia... Voltas, continúas a fumar a tua cigarette e a deixar-te ir. Este é o bom senso: é assim que pensaria o grande Sancho Pansa... Que diabo tens tu n’aquelle embrulho que cheira tão bem?
— Um ananaz... Pois é isso, querido: esperar, deixar-me ir. É uma idéa!
Uma idéa! e a mais grata ao temperamento de Carlos. Para que iria com effeito enredar-se n’uma meada de amarguras domesticas, por um excesso de cavalheirismo romantico? Maria confiava n’elle; era rico, era moço; o mundo abria-se ante elles facil e cheio de indulgencias. Não tinha senão a deixar-se ir.
— Tens razão, Ega! E Maria é a primeira a achar isto cheio de senso e d’opportunismo. Eu tenho uma certa pena em adiar a installação da minha vida e do meu home. Mas, acabou-se! Antes de tudo que o avô seja feliz... E para celebrar o advento d’esta idéa, Deus queira que Maria nos tenha um bom jantar!
Agora, ao aproximar-se da Toca, Ega ia receando o primeiro encontro com Maria Eduarda. Incommodava-o esse enleio, esse rubor que ella não poderia occultar — certa que, como confidente de Carlos, elle conhecia a sua vida, as suas miserias, as suas relações com Castro Gomes. Por isso hesitára em vir á Toca. Mas tambem, não apparecer mais a Maria Eduarda seria marcar com um relevo quasi offensivo o desejo caridoso de não molestar o seu pudor... Por isso decidira «dar o mergulho d’uma vez». Quem, senão elle, deveria ser o mais apressado em estender a mão á noiva de Carlos?... Além d’isso tinha uma infinita curiosidade de vêr no seu interior, á sua mesa, essa creatura tão bella, com a sua graça nobre de Deusa moderna! Mas saltou da victoria muito embaraçado.
Por fim tudo se passou com uma facilidade risonha. Maria bordava, sentada nos degraus do jardim. Teve um sobresalto, córou toda, com effeito, ao avistar o Ega que procurava atarantadamente o monoculo: o aperto de mão que trocaram foi mudo e timido: mas Carlos, alegremente, desembrulhára o ananaz — e na admiração d’elle todo o constrangimento se dissipou.
— Oh! é magnifico!
— Que côr, que luxo de tons!
— E que aroma! Veio perfumando toda a estrada.
Ega não voltára á Toca desde a noite fatal da soirée dos Cohens em que elle alli tanto bebera e delirára tanto. E lembrou logo a Carlos a jornada na velha traquitana, debaixo d’um temporal, o grog do Craft, a ceia de perú...
— Já aqui soffri muito, minha senhora, vestido de Mephistopheles!...
— Por causa de Margarida?
— Por quem se ha de soffrer n’este apaixonado mundo, minha senhora, senão por Margarida ou por Fausto?
Mas Carlos quiz que elle admirasse os esplendores novos da Toca. E foi já com familiaridade que Maria o levou pelas salas, lamentando que só viesse assim á Toca no fim do verão e no fim das flôres. Ega extasiou-se ruidosamente. Emfim, perdera a Toca o seu ar regelado e triste de museu! Já alli se podia palrar livremente!
— Isto é um barbaro, Maria! exclamava Carlos radiante. Tem horror á arte! É um Ibero, é um Semita...
Semita? Ega prezava-se de ser um luminoso Aryano! E por isso mesmo não podia viver n’uma casa, em que cada cadeira tinha a solemnidade sorumbatica de antepassados com cabelleira...
— Mas, dizia Maria rindo, rodas estas lindas coisas do seculo dezoito lembram antes a ligeireza, o espirito, a graça de maneiras...
— V. exc.ª acha? acudiu Ega. A mim todos esses dourados, esses enramalhetados, esses rococós lembram-me uma vivacidade estouvada e sirigaita... Nada! nós vivemos n’uma Democracia! E não ha para exprimir a alegria simples, sólida e bonacheirona da Democracia, como largas poltronas de marroquim, e o mogno envernizado!...
Assim n’uma risonha, ligeira discussão sobre bric-à-brac, desceram ao jardim.
Miss Sarah passeava entre o buxo, de olhos baixos, com um livro fechado na mão. Ega, que conhecia já os seus ardores nocturnos, cravou-lhe sôfregamente o monoculo; e emquanto Maria se abaixára a cortar um geranio, exprimiu a Carlos n’um gesto mudo a sua admiração por aquelle beicinho escarlate, aquelle seiosinho redondo de rola farta... Depois, ao fundo, junto do caramanchão, encontraram Rosa que se balouçava. Ega pareceu deslumbrado com a sua belleza, a sua frescura mate de camelia branca. Pediu-lhe um beijo. Ella exigiu primeiro, muito séria, que elle tirasse o vidro do olho.
— Mas é para te vêr melhor! é para te vêr melhor!...
— Então porque não trazes um em cada olho? Assim só me vês metade...
Encantadora! encantadora! murmurava Ega. No fundo achava a pequena espevitada e impudente. Maria resplandecia.
E o jantar alargou mais esta intimidade risonha. Carlos, logo á sopa, fallando-se de campo e d’um chalet que elle desejava construir em Cintra, nos Capuchos, dissera — «quando nos casarmos». E Ega alludiu a esse futuro do modo mais grato ao coração de Maria. Agora que Carlos se installava para sempre n’uma felicidade estavel (dizia elle) era necessario trabalhar! E relembrou então a sua velha idéa do Cenaculo, representado por uma Revista que dirigisse a litteratura, educasse o gosto, elevasse a politica, fizesse a civilisação, remoçasse o carunchoso Portugal... Carlos, pelo seu espirito, pela sua fortuna (até pela sua figura, ajuntava o Ega rindo) devia tomar a direcção d’este movimento. E que profunda alegria para o velho Affonso da Maia!
Maria escutava, presa e séria. Sentia bem quanto Carlos, com uma vida toda de intelligencia e de actividade, rehabilitaria supremamente aquella união mostrando-lhe a influencia fecunda e purificadora.
— Tem razão, tem bem razão! exclamava ella com ardor.
— Sem contar, acrescentava o Ega, que o paiz precisa de nós! Como muito bem diz o nosso querido e imbecilissimo Gouvarinho, o paiz não tem pessoal... Como ha de tel-o, se nós, que possuimos as aptidões, nos contentamos em governar os nossos dog-carts e escrever a vida intima dos atomos? Sou eu, minha senhora, sou eu que ando a escrever essa biographia d’um atomo!... No fim, este dilettantismo é absurdo. Clamamos por ahi, em botequins e livros, «que o paiz é uma choldra». Mas que diabo! Porque é que não trabalhamos para o refundir, o refazer ao nosso gosto e pelo molde perfeito das nossas idéas?... V. exc.ª não conhece este paiz, minha senhora. É admiravel! É uma pouca de cera inerte de primeira qualidade. A questão toda está em quem a trabalha. Até aqui a cera tem estado em mãos brutas, banaes, toscas, reles, rotineiras... É necessario pôl-a em mãos d’artistas, nas nossas. Vamos fazer d’isto um bijou!...
Carlos ria, preparando n’uma travessa o ananaz com sumo de laranja e vinho da Madeira. Mas Maria não queria que elle risse. A idéa do Ega parecia-lhe superior, inspirada n’um alto dever. Quasi tinha remorsos, dizia ella, d’aquella preguiça de Carlos. E agora, que ia ser cercado de affeição serena, queria-o vêr trabalhar, mostrar-se, dominar...
— Com effeito, disse o Ega recostado e sorrindo, a era do romance findou. E agora...
Mas o Domingos servia o ananaz. E o Ega provou e rompeu em clamores de enthusiasmo. Oh que maravilha! Oh que delicia!
— Como fazes tu isto? Com Madeira...
— E genio! exclamou Carlos. Delicioso, não é verdade? Ora digam-me se tudo o que eu pudesse fazer pela civilisação valeria este prato de ananaz! É para estas coisas que eu vivo! Eu não nasci para fazer civilisação...
— Nasceste, acudiu o Ega, para colher as flôres d’essa planta da civilisação que a multidão rega com o seu suor! No fundo tambem eu, menino!
Não, não! Maria não queria que fallassem assim!
— Esses ditos estragam tudo. E o snr. Ega, em logar de corromper Carlos, devia inspiral-o...
Ega protestou requebrando o olho, já languido. Se Carlos necessitava uma musa inspiradora e benefica — não podia ser elle, bicho com barbas e bacharel em leis... A musa estava toute trouvée!
— Ah, com effeito!... Quantas paginas bellas, quantas nobres idéas se não podem produzir n’um paraiso d’estes!...
E o seu gesto molle e acariciador indicava a Toca, a quietação dos arvoredos, a belleza de Maria. Depois na sala, emquanto Maria tocava um nocturno de Chopin e Carlos e elle acabavam os charutos á porta do jardim vendo nascer a lua — Ega declarou que, desde o começo do jantar, estava com idéas de casar!... Realmente não havia nada como o casamento, o interior, o ninho...
— Quando penso, menino, murmurou elle mordendo sombriamente o charuto, que quasi todo um anno da minha vida foi dado áquella israelita devassa que gosta de levar bordoada...
— Que faz ella em Cintra? perguntou Carlos.
— Ensopa-se na crapula. Não ha a menor duvida que dá todo o seu coração ao Damaso... Tu sabes o que n’estes casos significa o termo coração... Viste já immundicie igual? É simplesmente obscena!
— E tu adóral-a, disse Carlos.
O outro não respondeu. Depois, dentro, n’um odio repentino da bohemia e do romantismo, entoou louvores sonoros á familia, ao trabalho, aos altos deveres humanos — bebendo copinhos de cognac. Á meia noite, ao sahir, tropeçou duas vezes na rua d’acacias, já vago, citando Proudhon. E quando Carlos o ajudou a subir para a victoria, que elle quiz descoberta para ir communicando com a lua, Ega ainda lhe agarrou o braço para lhe fallar da Revista, d’um forte vento de espiritualidade e de virtude viril que se devia fazer soprar sobre o paiz... Por fim, já estirado no assento, tirando o chapéo á aragem da noite:
— E outra coisa, Carlinhos. Vê se me arranjas ingleza... Ha vicios deliciosos n’aquellas pestanas baixas... Vê se m’a arranjas... Vá lá, bate lá, cocheiro! Caramba, que belleza de noite!
Carlos ficára encantado com este primeiro jantar d’amizade na Toca. Elle tencionava não apresentar Maria aos seus intimos senão depois de casado e á volta de Italia. Mas agora a «união legal» estava já no seu pensamento adiada, remota, quasi dispersa no vago. Como dizia o Ega, devia esperar, deixar-se ir... E no emtanto, Maria e elle não poderiam isolar-se alli todo um longo inverno, sem o calor sociavel d’alguns amigos em redor. Por isso uma manhã, encontrando o Cruges, que fôra o visinho de Maria e outr’ora lhe dava noticias da «lady ingleza», pediu-lhe para vir jantar á Toca no domingo.
O maestro appareceu n’uma tipoia, á tardinha, de laço branco e de casaca: e os fatos claros de campo com que encontrou Carlos e Ega começaram logo a enchel-o de mal-estar. Toda a mulher, além das Lolas e Conchas, o atarantava, o emmudecia: Maria, «com o seu porte de grande-dame», como elle dizia, intimidou-o a tal ponto que ficou diante d’ella, sem uma palavra, escarlate, torcendo o forro das algibeiras. Antes de jantar, por lembrança de Carlos, foram-lhe mostrar a quinta. O pobre maestro, roçando a casaca mal feita pela folhagem dos arbustos, fazia esforços anciosos por murmurar algum elogio «á belleza do sitio»; mas escapavam-lhe então inexplicavelmente coisas reles, em calão: «vista catita»! «é pitada»! Depois ficava furioso, coberto de suor, sem comprehender como se lhe babavam dos labios esses ditos abominaveis, tão contrarios ao seu gosto fino d’artista. Quando se sentou á mesa soffria um negrissimo accesso de spleen e mudez! Nem uma controversia que Maria arranjára caridosamente para elle sobre Wagner e Verdi pôde descerrar-lhe os labios empedernidos. Carlos ainda tentou envolvel-o na alegria da mesa — contando a ida a Cintra, quando elle procurava Maria na Lawrence, e em vez d’ella achára uma matrona obesa, de bigode, de cãosinho ao collo, ralhando com o homem em hespanhol. Mas a cada exclamação de Carlos — «Lembras-te, Cruges?», «Não é verdade, Cruges?» — o maestro, rubro, grunhia apenas um sim avaro. Terminou por estar alli, ao lado de Maria, como um trambolho funebre. Estragou o jantar.
Combinára-se para depois do café um passeio pelos arredores, n’um break. E Carlos já tomára as guias, Maria na almofada acabava de abotoar as luvas — quando Ega, que receava a friagem da tarde, saltou do break, correu a buscar o paletot. N’esse mesmo momento sentiram um trote de cavallo na estrada — e appareceu o marquez.
Foi uma surpreza para Carlos, que o não vira durante esse verão. O marquez parou logo, tirando profundamente, ao vêr Maria, o seu largo chapéo desabado.
— Imaginava-o pela Gollegã! exclamou Carlos. Foi até o Cruges que me disse... Quando chegou vossê?
Chegára na vespera. Lá fôra ao Ramalhete; tudo deserto. Agora vinha aos Olivaes vêr um dos Vargas que tinha casado, se installára alli perto, a passar o noivado...
— Quem, o gordo, o das corridas?
— Não, o magro, o das regatas.
Carlos, debruçado da almofada, examinava a egoasita do marquez, pequena, bem estampada, d’um baio escuro e bonito.
— Isso é novo?
— Uma facasita do Darque... Quer-m’a vossê comprar? Sou já um pouco pesado para ella, e isto mette-se a um dog-cart...
— Dê lá uma volta.
O marquez deu a volta, bem posto na sella, avantajando a egoa. Carlos achou-lhe «boas acções». Maria murmurou — «Muito bonita, uma cabeça fina...» Então Carlos apresentou o marquez de Souzella a madame Mac-Gren. Elle chegou a egoa á roda, descoberto, para apertar a mão a Maria: e á espera do Ega que se eternisava lá dentro, ficaram fallando do verão, de Santa Olavia, dos Olivaes, da Toca... Ha que tempos o marquez alli não passava! A ultima vez fôra victima da excentricidade do Craft...
— Imagine v. exc.ª, disse elle a Maria Eduarda, que esse Craft me convida a almoçar. Venho, e o hortelão diz-me que o snr. Craft, criado e cozinheiro, tudo partira para o Porto; mas que o snr. Craft deixára um cartaz na sala... Vou á sala, e vejo dependurado ao pescoço d’um idolo japonez uma folha de papel com estas palavras pouco mais ou menos: «O deus Tchi tem a honra de convidar o snr. marquez, em nome de seu amo ausente, a passar á sala de jantar onde encontrará, n’um aparador, queijo e vinho, que é o almoço que basta ao homem forte.» E foi com effeito o meu almoço... Para não estar só, partilhei-o com o hortelão.
— Espero que se tivesse vingado! exclamou Maria rindo.
— Póde crêr, minha senhora... Convidei-o a jantar, e quando elle appareceu, vindo d’aqui da Toca, o meu guarda-portão disse-lhe que o snr. marquez fôra para longe, e que não havia nem pão nem queijo... Resultado: o Craft mandou-me uma duzia de magnificas garrafas de Chambertin. Esse deus Tchi nunca mais o tornei a vêr...
O deus Tchi lá estava, obeso e medonho. E, muito naturalmente, Carlos convidou o marquez a revisitar n’essa noite, á volta da casa do Vargas, o seu velho amigo Tchi.
O marquez veio, ás dez horas — e foi um serão encantador. Conseguiu sacudir logo a melancolia do Cruges, arrastando-o com mão de ferro para o piano; Maria cantou; palrou-se com graça; e aquelle escondrijo d’amor ficou alumiado até tarde, na sua primeira festa de amizade.
Estas reuniões alegres foram ao principio, como dizia o Ega, dominicaes: mas o outono arrefecia, bem depressa se despiriam as arvores da Toca, e Carlos accumulou-as duas vezes por semana, nos velhos dias feriados da Universidade, domingos e quintas. Tinha descoberto uma admiravel cozinheira alsaciana, educada nas grandes tradições, que servira o bispo de Strasburgo, e a quem as extravagancias d’um filho e outras desgraças tinham arrojado a Lisboa. Maria, de resto, punha na composição dos seus jantares uma sciencia delicada: o dia de vir á Toca era considerado pelo marquez «dia de civilisação».
A mesa resplandecia; e as tapeçarias representando massas d’arvoredos punham em redor como a sombra escura d’um retiro silvestre onde por um capricho se tivessem accendido candelabros de prata. Os vinhos sahiam da frasqueira preciosa do Ramalhete. De todas as coisas da terra e do céo se grulhava com phantasia — menos de «politica portugueza», considerada conversa indecorosa entre pessoas de gosto.
Rosa apparecia ao café, exhalando do seu sorriso, dos bracinhos nús, dos vestidos brancos tufados sobre as meias de sêda preta, um bom aroma de flôr. O marquez adorava-a, disputando-a ao Ega, que a pedira a Maria em casamento e lhe andava compondo havia tempo um soneto. Ella preferia o marquez: achava o Ega «muito...» — e completava o seu pensamento com um gestosinho do dedo ondeado no ar, como a exprimir que o Ega «era muito retorcido».
— Ahi está! exclamava elle. Porque eu sou mais civilisado que o outro! É a simplicidade não comprehendendo o requinte.
— Não, desgraçado! exclamavam do lado. É porque és impresso!... É a natureza repellindo a convenção!...
Bebia-se á saude de Maria: ella sorria, feliz entre os seus novos amigos, divinamente bella, quasi sempre de escuro, com um curto decote onde resplandecia o incomparavel esplendor do seu collo.
Depois organisaram-se solemnidades. N’um domingo, em que os sinos repicavam e a distancia foguetes esfuziavam no ar — Ega lamentou que os seus austeros principios philosophicos o impedissem de festejar tambem aquelle santo d’aldeia, que fôra decerto em vida um caturra encantador, cheio d’illusões e doçura... Mas de resto, acrescentou, não teria sido n’um dia assim, fino e secco, sob um grande céo cheio de sol, que se feriu a batalha das Thermopylas? Porque não se atiraria uma girandola de foguetes em honra de Leonidas e dos trezentos? E atirou-se a girandola pela eterna gloria de Sparta.
Depois celebraram-se outras datas historicas. O anniversario da descoberta da Venus de Milo foi commemorado com um balão que ardeu. N’outra occasião o marquez trouxe de Lisboa, apinhados n’uma tipoia, fadistas famosos, o Pintado, o Vira-vira e o Gago: e depois de jantar, até tarde, com o luar sobre o rio, cinco guitarras choraram os ais mais tristes dos fados de Portugal.
Quando estavam sós, Carlos e Maria passavam as suas manhãs no kiosque japonez — affeiçoados áquelle primeiro retiro dos seus amores, pequeno e apertado, onde os seus corações batiam mais perto um do outro. Em logar das esteiras de palha Carlos revestira-o com as suas formosas colchas da India, côr de palha e côr de perola. Um dos maiores cuidados d’elle, agora, era embellezar a Toca: nunca voltava de Lisboa sem trazer alguma figurinha de Saxe, um marfim, uma faiança, como noivo feliz que aperfeiçôa o seu ninho.
Maria no emtanto não cessava de lembrar os planos intellectuaes do Ega: queria que elle trabalhasse, ganhasse um nome: seria isso o orgulho intimo d’ella, e sobretudo a alegria suprema do avô. Para a contentar (mais que para satisfazer as suas necessidades de espirito) Carlos recomeçára a compôr alguns dos seus artigos de medicina litteraria para a Gazeta Medica. Trabalhava no kiosque, de manhã. Trouxera para lá rascunhos, livros, o seu famoso manuscripto da Medicina antiga e moderna. E por fim achára um grande encanto em estar alli, com um leve casaco de sêda, as suas cigarettes ao lado, um fresco murmurio de arvoredo em redor — cinzelando as suas phrases, emquanto ella ao lado bordava silenciosa. As suas idéas surgiam com mais originalidade, a sua fórma ganhava em colorido, n’aquelle estreito kiosque assetinado que ella perfumava com a sua presença. Maria respeitava este trabalho como coisa nobre e sagrada. De manhã, ella mesma espanejava os livros do leve pó que a aragem soprava pela janella; dispunha o papel branco, punha cuidadosamente pennas novas; e andava bordando uma almofada de pennas e setim para que o trabalhador estivesse mais confortavel na sua vasta cadeira de couro lavrado.
Um dia offerecera-se a passar a limpo um artigo. Carlos, enthusiasmado com a letra d’ella, quasi comparavel á lendaria letra do Damaso, occupava-a agora incessantemente como copista, sentindo mais amor por um trabalho a que ella se associava. Quantos cuidados se dava a dôce creatura! Tinha para isso um papel especial, d’um tom macio de marfim: e, com o dedinho no ar, ia desenrolando as pesadas considerações de Carlos sobre o Vitalismo e o Transformismo na graça delicada d’uma renda... Um beijo pagava-a de tudo.
Ás vezes Carlos dava lições a Rosa — ora de historia, contando-lh’a familiarmente como um conto de fadas; ora de geographia, interessando-a pelas terras onde vivem gentes negras, e pelos velhos rios que correm entre as ruinas dos santuarios. Isto era o prazer mais alto de Maria. Séria, muda, cheia de religião, escutava aquelle sêr bem-amado ensinando sua filha. Deixava escapar das mãos o trabalho — e o interesse de Carlos, a enlevada attenção de Rosa sentada aos pés d’elle, bebendo aquellas bellas historias de Joanna d’Arc ou das caravellas que foram á India, fazia resplandecer nos seus olhos uma nevoa de lagrimas felizes...
Desde o meado d’outubro Affonso da Maia fallava da sua partida de Santa Olavia, retardada apenas por algumas obras que começára na parte velha da casa e nas cocheiras: porque ultimamente invadira-o a paixão de edificar — sentindo-se remoçar, como elle dizia, no contacto das madeiras novas e no cheiro vivo das tintas. Carlos e Maria pensavam tambem em abandonar os Olivaes. Carlos não poderia por dever domestico permanecer alli installado desde que o avô recolhesse ao Ramalhete. Além d’isso aquelle fim d’outono ia escuro e agreste; e a Toca era agora pouco bucolica, com a quinta desfolhada e alagada, uma nevoa sobre o rio, e um fogão unico no gabinete de cretones — além da sumptuosa chaminé da sala de jantar, que, por entre os seus Nubios d’olhos de crystal, soltava uma fumaraça odiosa quando o Domingos a tentava accender.
N’uma d’essas manhãs, Carlos, que ficára até tarde com Maria, e depois no seu delgado casebre mal pudera dormir com um temporal de vento e agua desencadeado de madrugada — ergueu-se ás nove horas, veio á Toca. As janellas do quarto de Maria conservavam-se ainda cerradas; a manhã clareára; a quinta lavada, meio despida, no ar fino e azul, tinha uma linda e silenciosa graça d’inverno. Carlos passeava, olhando os vasos onde os chrysanthemos floriam, quando retiniu a sineta do portão. Era o toque do carteiro. Justamente elle escrevera dias antes ao Cruges, perguntando se estaria desoccupado para os primeiros frios de dezembro o andar da rua de S. Francisco: e, esperando carta do maestro, foi abrir, acompanhado por Niniche. Mas o correio, n’essa manhã, consistia apenas n’uma carta do Ega e dois numeros de jornal cintados — um para elle, outro para «Madame Castro Gomes, na quinta do snr. Craft, aos Olivaes».
Caminhando sob as acacias, Carlos abriu a carta do Ega. Era da vespera, com a data «á noite, á pressa». E dizia: « — Lê, n’esse trapo que te mando, esse superior pedaço de prosa que lembra Tacito. Mas não te assustes; eu supprimi, mediante pecunia, toda a tiragem, com excepção de dois numeros mais que foram, um para a Toca, outro (oh logica suprema dos habitos constitucionaes!) para o Paço, para o chefe do Estado!... Mas esse mesmo não chegará ao seu destino. Em todo o caso desconfio de que esgôto sahiu esse enxurro e precisamos providenciar! Vem já! Espero-te até ás duas. E, como Iago dizia a Cassio — mette dinheiro na bolsa.»
Inquieto, Carlos descintou o jornal. Chamava-se a Corneta do Diabo: e na impressão, no papel, na abundancia dos italicos, no typo gasto, todo elle revelava immundicie e malandrice. Logo na primeira pagina duas cruzes a lapis marcavam um artigo que Carlos, n’um relance, viu salpicado com o seu nome. E leu isto: « — Ora viva, sô Maia! Então já se não vai ao consultorio, nem se vêem os doentes do bairro, sô janota? — Esta piada era botada no Chiado, á porta da Havaneza, ao Maia, ao Maia dos cavallos inglezes, um tal Maia do Ramalhete, que abarrota por ahi de catita; e o pai Paulino que tem olho e que passava n’essa occasião ouviu a seguinte cornetada: — É que o sô Maia acha que é mais quente viver nas fraldas d’uma brazileira casada, que nem é brazileira nem é casada, e a quem o papalvo poz casa, ahi para o lado dos Olivaes, para estar ao fresco! Sempre os ha n’este mundo!... Pensa o homem que botou conquista; e cá a rapaziada de gosto ri-se, porque o que a gaja lhe quer não são os lindos olhos, são as lindas louras... O simplorio, que bate ahi pilecas bifes, que nem que fosse o marquez, o verdadeiro Marquez, imaginava que se estava abiscoitando com uma senhora do chic, e do boulevard de Paris, e casada, e titular!... E no fim (não, esta é para a gente deixar estoirar o bandulho a rir!) no fim descobre-se que a typa era uma cocotte safada, que trouxe para ahi um brazileiro já farto d’ella para a passar cá aos bellos lusitanos... E cahiu a espiga ao Maia! Pobre palerma! Ainda assim o sô Maia só apanhou os restos d’outro, porque a typa, já antes d’elle se enfeitar, tinha pandegado á larga, ahi para a rua de S. Francisco, com um rapaz da fina, que se safou tambem, porque cá como nós só aprecia a bella hespanhola. Mas não obsta a que o sô Maia seja traste! — Pois se assim é, dissemos nós, cautelinha, porque o diabo cá tem a sua Corneta preparada para cornetear por esse mundo as façanhas do Maia das conquistas. Ora viva, sô Maia!»
Carlos ficou immovel entre as acacias, com o jornal na mão, no espanto furioso e mudo d’um homem que subitamente recebe na face uma grossa chapada de lôdo! Não era a cólera de vêr o seu amor assim aviltado na publicidade chula d’um jornal sordido: era o horror de sentir aquellas phrases em calão, pandilhas, afadistadas, como só Lisboa as póde crear, pingando fetidamente, á maneira de sebo, sobre si, sobre Maria, sobre o esplendor da sua paixão... Sentia-se todo emporcalhado. E uma unica idéa surgia através da sua confusão — matar o bruto que escrevera aquillo.
Matal-o! Ega sustára a tiragem da folha, Ega pois conhecia o folliculario. Nada importava que aquelles numeros, que tinha na mão, fossem os unicos impressos. Recebera lama na face. Que a injuria fosse espalhada nas praças n’uma profusa publicidade ou lhe fosse atirada só a elle escondidamente n’um papel unico, era igual... Quem tanto ousára tinha de cahir, esmagado!
Decidiu ir logo ao Ramalhete. O Domingos á janella da cozinha areava pratas, assobiando. Mas quando Carlos lhe fallou de ir buscar um calhambeque aos Olivaes, o bom Domingos consultou o relogio:
— V. exc.ª tem ás onze horas a caleche do Torto que a senhora mandou cá estar para ir a Lisboa...
Carlos, com effeito, recordou-se que Maria na vespera planeára ir á Aline e aos livreiros. Uma contrariedade, justamente n’esse dia em que elle precisava ficar livre — elle e a sua bengala! Mas Melanie, passando então com um jarro d’agua quente, disse que a senhora ainda se não vestira, que talvez nem fosse a Lisboa... E Carlos recomeçou a passear, no tapete de relva, entre as nogueiras.
Sentou-se por fim no banco de cortiça, descintou a Corneta sobrescriptada para Maria, releu lentamente a prosa immunda: e, n’esse numero que lhe fôra destinado a ella, todo aquelle calão lhe pareceu mais ultrajante, intoleravel, punivel só com sangue. Era monstruoso, na verdade, que sobre uma mulher, quieta, innoffensiva no silencio da sua casa, alguem ousasse tão brutalmente arremessar esse lôdo ás mãos cheias! E a sua indignação alargava-se do folliculario que babára aquillo — até á sociedade que, na sua decomposição, produzira o folliculario. Decerto toda a cidade soffria a sua vermina... Mas só Lisboa, só a horrivel Lisboa, com o seu apodrecimento moral, o seu rebaixamento social, a perda inteira do bom-senso, o desvio profundo do bom gosto, a sua pulhice e o seu calão, podia produzir uma Corneta do Diabo.
E, no meio d’esta alta cólera de moralista, uma dôr perpassava, precisa e dilacerante. Sim, toda a sociedade de Lisboa fazia um monturo sordido n’este canto do mundo — mas, em summa, havia no artigo da Corneta uma calumnia? Não. Era o passado de Maria, que ella arrancára de si como um vestido rôto e sujo, que elle mesmo enterrára muito fundo, deitando-lhe por cima o seu amor e o seu nome — e que alguem desenterrava para o mostrar bem alto ao sol, com as suas manchas e os seus rasgões... E isto agora ameaçava para sempre a sua vida como um terror sobre ella suspenso. Debalde elle perdoára, debalde elle esquecera. O mundo em redor sabia. E a todo o tempo o interesse ou a perversidade poderiam refazer o artigo da Corneta.
Ergueu-se, abalado. E então alli, sob essas arvores desfolhadas, onde durante o verão, quando ellas se enchiam de sombra e de murmurio, elle passeára com Maria, esposa eleita da sua vida — Carlos perguntou pela vez primeira a si mesmo se a honra domestica, a honra social, a pureza dos homens de quem descendia, a dignidade dos homens que d’elle descendessem lhe permittiam em verdade casar com ella...
Dedicar-lhe toda a sua affeição, toda a sua fortuna, certamente! Mas casar... E se tivesse um filho? O seu filho, já homem, altivo e puro, poderia um dia lêr n’uma Corneta do Diabo que sua mãi fôra amante d’um brazileiro, depois de ser amante d’um irlandez. E se seu filho lhe viesse gritar, n’uma bella indignação, «é uma calumnia?» — elle teria de baixar a cabeça, murmurar — «é uma verdade!» E seu filho veria para sempre collada a si aquella mãi de quem o mundo ignorava os martyrios e os encantos — mas de quem conhecia cruelmente os erros.
E ella mesma! Se elle appellasse para a sua razão, alta e tão recta, mostrando-lhe as zombarias e as affrontas de que uma vil Corneta do Diabo poderia um dia trespassar o filho que d’elles nascesse — ella mesma o desligaria alegremente do seu voto, contente em entrar no Ramalhete pela escadinha secreta forrada de velludo côr de cereja, comtanto que em cima a esperasse um amor constante e forte... Nunca ella tornára, em todo o verão, a alludir a uma união differente d’essa em que os seus corações viviam tão lealmente, tão confortavelmente. Não, Maria não era uma devota, preoccupada «do peccado mortal»! Que lhe podia importar a estola banal do padre?...
Sim; mas elle que lhe pedira essa consagração na hora mais commovida do seu longo amor, iria dizer-lhe agora — «foi uma criancice, não pensemos mais n’isso, desculpa?» Não; nem o seu coração o desejava! Antes pendia todo para ella... Pendia todo para ella, n’um enternecimento mais generoso e mais quente — emquanto a sua razão assim arengava, cautelosa e austera. Elle tinha n’aquella alma o seu culto perfeito, n’aquelles braços a sua voluptuosidade magnifica; fóra d’alli não havia felicidade; a unica sabedoria era prender-se a ella pelo derradeiro elo, o mais forte, o seu nome, embora as Cornetas do Diabo atroassem todo o ar. E assim affrontaria o mundo n’uma soberba revolta, affirmando a omnipotencia, o reino unico da Paixão... Mas primeiro mataria o folliculario! — Passeava, esmagava a relva. E todos os seus pensamentos se resolviam por fim em furia contra o infame que babára sobre o seu amor, e durante um instante introduzia na sua vida tanta incerteza e tanto tormento!
Maria ao lado abriu a janella. Estava vestida d’escuro para sahir; e bastou o brilho terno do seu sorriso, aquelles hombros a que o estofo justo modelava a belleza cheia e quente — para que Carlos detestasse logo as duvidas desleaes e covardes, a que se abandonára um momento sob as arvores desfolhadas... Correu para ella. O beijo que lhe deu, lento e mudo, teve a humildade d’um perdão que se implora.
— Que tens tu, que estás tão sério?
Elle sorriu. Sério, no sentido de solemne, não estava. Talvez seccado. Recebera uma carta do Ega, uma das eternas complicações do Ega. E precisava ir a Lisboa, ficar lá naturalmente toda a noite...
— Toda a noite? exclamou ella com um desapontamento, pousando-lhe as mãos sobre os hombros.
— Sim, é bem possivel, um horror! Nos negocios do Ega ha fatalmente o inesperado... Tu com effeito vaes a Lisboa?
— Agora, com mais razão... Se me queres.
— O dia está bonito... Mas ha de fazer frio na estrada.
Maria justamente gostava d’esses dias d’inverno, cheios de sol, com um arzinho vivo e arripiado. Tornavam-n’a mais leve, mais esperta.
— Bem, bem, disse Carlos atirando o cigarro. Vamos ao almoço, minha filha... O pobre Ega deve estar a uivar de impaciencia.
Emquanto Maria correra a apressar o Domingos — Carlos, através da relva humida, foi ainda lentamente até ao renque baixo d’arbustos que d’aquelle lado fechava a Toca como uma sebe. Ahi a collina descia, com quintarolas, muros brancos, olivedos, uma grande chaminé de fabrica que fumegava: para além era o azul fino e frio do rio: depois os montes, d’um azul mais carregado, com a casaria branca da povoação aninhada á beira da agua, nitida e suave na transparencia do ar macio. Parou um momento, olhando. E aquella aldeia de que nunca soubera o nome, tão quieta e feliz na luz, deu a Carlos um desejo repentino de socego e de obscuridade, n’um canto assim do mundo, á beira d’agua, onde ninguem o conhecesse nem houvesse Cornetas do Diabo, e elle pudesse ter a paz d’um simples e d’um pobre debaixo de quatro telhas, no seio de quem amava...
Maria gritou por elle da janella da sala de jantar, onde se debruçára a apanhar uma das ultimas rosas trepadeiras que ainda floriam.
— Que lindo tempo para viajar, Maria! — disse Carlos chegando, através da relva.
— Lisboa é tambem muito linda, agora, havendo sol...
— Pois sim, mas o Chiado, a coscovilhice, os politiquetes, as gazetas, todos os horrores... A mim está-me positivamente a appetecer uma cubata na Africa!
O almoço, por fim, foi demorado. Ia bater uma hora quando a caleche do Torto começou a rolar na estrada, ainda encharcada da chuva da noite. Logo adiante da villa, na descida, cruzaram um coupé que trepava n’um trote esfalfado. Maria julgou avistar n’elle de relance o chapéo branco e o monoculo do Ega... Pararam. E era com effeito o Ega, que reconhecera tambem a caleche da Toca, vinha já saltitando as lamas com longas pernadas de cegonha, chamando por Carlos.
Ao vêr Maria ficou atrapalhado:
— Que bella surpreza! Eu ia para lá... Vi o dia tão bonito, disse commigo...
— Bem, paga a tua tipoia, vem comnosco! atalhou Carlos que trespassava o Ega, com os olhos inquietos, querendo adivinhar o motivo d’aquella brusca chegada aos Olivaes.
Quando entrou para a caleche, tendo pago o batedor, Ega, embaraçado, sem poder desabafar diante de Maria sobre o caso da Corneta, começou, sob os olhos de Carlos que o não deixavam, a fallar do inverno, das inundações do Riba-Tejo... Maria lêra. Uma desgraça, duas crianças afogadas nos berços, gados perdidos, uma grande miseria! Por fim Carlos não se conteve:
— Eu lá recebi a tua carta...
Ega acudiu:
— Arranja-se tudo! Está tudo combinado! E com effeito eu não vim senão por um sentimento bucolico...
Muito discretamente Maria olhára para o rio. Ega fez então um gesto rapido com os dedos significando «dinheiro, só questão de dinheiro». Carlos socegou: e Ega voltou a fallar dos inundados do Riba-Tejo e do sarau litterario e artistico que em beneficio d’elles se «ia commetter» no salão da Trindade... Era uma vasta solemnidade official. Tenores do parlamento, rouxinoes da litteratura, pianistas ornados com o habito de S. Thiago, todo o pessoal canoro e sentimental do constitucionalismo ia entrar em fogo. Os reis assistiam, já se teciam grinaldas de camelias para pendurar na sala. Elle, apesar de demagogo, fôra convidado para lêr um episodio das Memorias d’um Atomo: recusára-se, por modestia, por não encontrar nas Memorias nada tão sufficientemente palerma que agradasse á capital. Mas lembrára o Cruges; e o maestro ia ribombar ou arrulhar uma das suas Meditações. Além d’isso havia uma poesia social pelo Alencar. Emfim, tudo prenunciava uma immensa orgia...
— E a snr.ª D. Maria, acrescentou elle, devia ir!... É summamente pittoresco. Tinha v. exc.ª occasião de vêr todo o Portugal romantico e liberal, à la besogne, engravatado de branco, dando tudo que tem n’alma!
— Com effeito devias ir, disse Carlos, rindo. Demais a mais se o Cruges toca, se o Alencar recita, é uma festa nossa...
— Pois está claro! gritou Ega, procurando o monoculo, já excitado. Ha duas coisas que é necessario vêr em Lisboa... Uma procissão do Senhor dos Passos e um sarau poetico!
Rolavam então pelo largo do Pelourinho. Carlos gritou ao cocheiro que parasse no começo da rua do Alecrim: elles apeavam-se e tomavam de lá o americano para o Ramalhete.
Mas a tipoia estacou antes da calçada, rente ao passeio, em frente d’uma loja de alfaiate. E n’esse instante achava-se ahi parado, calçando as suas luvas pretas, um velho alto, de longas barbas d’apostolo, todo vestido de luto. Ao vêr Maria, que se inclinára á portinhola, o homem pareceu assombrado; depois, com uma leve côr na face larga e pallida, tirou gravemente o chapéo, um immenso chapéo de abas recurvas, á moda de 1830, carregado de crepe.
— Quem é? perguntou Carlos.
— É o tio do Damaso, o Guimarães, disse Maria, que córára tambem. É curioso, elle aqui!
Ah, sim! o famoso Mr. Guimarães, o do Rappel, o intimo de Gambetta! Carlos recordava-se de ter já encontrado aquelle patriarcha no Price com o Alencar. Comprimentou-o tambem; o outro ergueu de novo com uma gravidade maior o seu sombrio chapéo de carbonario. Ega entalára vivamente o monoculo para examinar esse lendario tio do Damaso, que ajudava a governar a França: e depois de se despedirem de Maria, quando a caleche já subia a rua do Alecrim e elles atravessavam para o Hotel Central, ainda se voltou seduzido por aquelles modos, aquellas barbas austeras de revolucionario...
— Bom typo! E que magnifico chapéo, hein! D’onde diabo o conhece a snr.ª D. Maria?
— De Paris... Este Mr. Guimarães era muito da mãi d’ella. A Maria já me tinha fallado n’elle. É um pobre diabo. Nem amigo de Gambetta, nem coisa nenhuma... Traduz noticias dos jornaes hespanhoes para o Rappel, e morre de fome...
— Mas então, o Damaso?
— O Damaso é um trapalhão. Vamos nós ao nosso caso... Essa immundicie que me mandaste, a Corneta? Dize lá.
Seguindo devagar pelo Aterro, Ega contou a historia da immundicie. Fôra na vespera á tarde que recebera no Ramalhete a Corneta. Elle já conhecia o papelucho, já privára mesmo com o proprietario e redactor — o Palma, chamado Palma Cavallão para se distinguir d’outro benemerito chamado Palma Cavallinho. Comprehendeu logo que se a prosa era do Palma a inspiração era alheia. O Palma nada sabia de Carlos, nem de Maria, nem da casa da rua de S. Francisco, nem da Toca... Não era natural que escrevesse por deleite intellectual um documento que só lhe podia render desgostos e bengaladas. O artigo, pois, fôra-lhe simplesmente encommendado e pago. No terreno do dinheiro vence sempre quem tem mais dinheiro. Por este solido principio correra a procurar o Palma Cavallão no seu antro.
— Tambem lhe conheces o antro? perguntou Carlos, com horror.
— Tanto não... Fui perguntar á secretaria da Justiça a um sujeito que esteve associado com elle n’um negocio de Almanachs religiosos...
Fôra pois ao antro. E encontrára as coisas dispostas pelas mãos habeis d’uma Providencia amiga. Primeiramente, depois de imprimir cinco ou seis numeros, a machina, esfalfada na pratica d’aquellas maroteiras, desmanchára-se. Além d’isso o bom Palma estava furioso com o cavalheiro que lhe encommendára o artigo, por divergencia na seriissima questão de pecunia. De sorte que apenas elle propôz comprar a tiragem do jornal — o jornalista estendeu logo a mão larga, d’unhas roídas, tremendo de reconhecimento e de esperança. Dera-lhe cinco libras que tinha, e a promessa de mais dez...
— É caro, mas que queres? continuou o Ega. Deixei-me atarantar, não regateei bastante... E emquanto a dizer quem é o cavalheiro que encommendou o artigo, o Palma, coitado, affirma que tem uma rapariga hespanhola a sustentar, que o senhorio lhe levantou o aluguer da casa, que Lisboa está carissima, que a litteratura n’este desgraçado paiz...
— Quanto quer elle?
— Cem mil reis. Mas, ameaçando-o com a policia, talvez desça a quarenta.
— Promette os cem, promette tudo, comtanto que eu tenha o nome... Quem te parece que seja?
Ega encolheu os hombros, deu um risco lento no chão com a bengala. E mais lentamente ainda foi considerando que o inspirador da Corneta devia ser alguem familiar com Castro Gomes; alguem frequentador da rua de S. Francisco; alguem conhecedor da Toca; alguem que tinha, por ciume ou vingança, um desejo ferrenho de magoar Carlos; alguem que sabia a historia de Maria; e emfim alguem que era um covarde...
— Estás a descrever o Damaso! exclamou Carlos, pallido e parando.
Ega encolheu de novo os hombros, tornou a riscar o chão:
— Talvez não... Quem sabe! Emfim, nós vamos averigual-o com certeza, porque, para terminar a negociação, fiquei de me ir encontrar com o Palma ás tres horas no Lisbonense... E o melhor é vires tambem. Trazes tu dinheiro?
— Se fôr o Damaso, mato-o! murmurou Carlos.
E não trazia sufficiente dinheiro. Tomaram uma tipoia para correr ao escriptorio do Villaça. O procurador fôra a Mafra, a um baptisado. Carlos teve de ir pedir cem mil reis ao velho Cortez, alfaiate do avô. Quando perto das quatro horas se apearam á entrada do Lisbonense, no largo de Santa Justa, o Palma no portal, com um jaquetão de velludo coçado e calça de casimira clara collada á côxa, accendia um cigarro. Estendeu logo rasgadamente a mão a Carlos — que lhe não tocou. E Palma Cavallão, sem se offender, com a mão abandonada no ar, declarou que ia justamente sahir, cançado já de esperar em cima diante d’um grog frio. De resto sentia que o snr. Maia se incommodasse em vir alli...
— Eu arranjava cá o negociosinho com o amigo Ega... Em todo o caso, se os senhores querem, vamos lá p’ra cima para um gabinete, que se está mais á vontade, e toma-se outra bebida.
Subindo a escada lobrega, Carlos recordava-se de ter já visto aquella luneta de vidros grossos, aquella cara balofa côr de cidra... Sim, fôra em Cintra, com o Eusebiosinho e duas hespanholas, n’esse dia em que elle farejára pelas estradas silenciosas, como um cão abandonado, procurando Maria!... Isto tornou-lhe mais odioso o snr. Palma. Em cima entraram n’um cubiculo, com uma janella gradeada por onde resvalava uma luz suja de saguão. Na toalha da mesa, salpicada de gordura e vinho, alguns pratos rodeavam um galheteiro que tinha moscas no azeite. O snr. Palma bateu as palmas, mandou vir genebra. Depois dando um grande puxão ás calças:
— Pois eu espero que me acho aqui entre cavalheiros. Como eu já disse cá ao amigo Ega, em todo este negocio...
Carlos atalhou-o, tocando muito significativamente com a ponteira da bengala na borda da mesa.
— Vamos ao ponto essencial... Quanto quer o snr. Palma por me dizer quem lhe encommendou o artigo da Corneta?
— Dizer quem o encommendou, e proval-o! acudiu o Ega, que examinava na parede uma gravura onde havia mulheres núas á beira d’agua. Não nos basta o nome... O amigo Palma, está claro, é de toda a confiança... Mas emfim, que diabo, não é natural que nós acreditassemos se o amigo nos dissesse que tinha sido o snr. D. Luiz de Bragança!
Palma encolheu os hombros. Está visto que havia de dar provas. Elle podia ter outros defeitos, trapalhão não! Em negocios era todo franqueza e lisura... E, se se entendessem, alli as entregava logo, essas provas que lhe estavam enchendo o bolsinho, pimponas e d’escachar! Tinha a carta do amigo que lhe encommendára a piada: a lista das pessoas a quem se devia mandar a Corneta: o rascunho do artigo a lapis...
— Quer cem mil reis por tudo isso? perguntou Carlos.
O Palma ficou um momento indeciso, ageitando as lunetas com os dedos molles. Mas o criado veio trazer a garrafa da genebra: e então o redactor da Corneta offereceu a «bebida» rasgadamente, puxou mesmo cadeiras para aquelles cavalheiros abancarem. Ambos recusaram — Carlos de pé junto da mesa onde terminára por pousar a bengala, Ega passando a outra gravura onde dois frades se emborrachavam. Depois, quando o criado sahiu, Ega acercou-se, tocou com bonhomia no hombro do jornalista:
— Cem mil reis são uma linda somma, Palma amigo! E olhe que se lhe offerecem por delicadeza comsigo. Porque artiguinhos como este da Corneta, apresentados na Boa-Hora, levam á grilheta!... Está claro, este caso é outro, vossê não teve intenção d’offender; mas levam á grilheta!... Foi assim que o Severino marchou para a Africa. Alli no porãosinho d’um navio, com ração de marujo e chibatadas. Desagradavel, muito desagradavel. Por isso eu quiz que tratassemos isto aqui, entre cavalheiros, e em amizade.
Palma, com a cabeça baixa, desfazia torrões de assucar dentro do copo de genebra. E suspirou, findou por dizer, um pouco murcho, que era por ser entre cavalheiros, e com amizade, que aceitava os cem mil reis...
Immediatamente Carlos tirou da algibeira das calças um punhado de libras, que começou a deixar cahir em silencio uma a uma dentro d’um prato. E Palma Cavallão, agitado com o tinir do ouro, desabotoou logo o jaquetão, sacou uma carteira onde reluzia um pesado monogramma de prata sob uma enorme corôa de visconde. Os dedos tremiam-lhe; por fim desdobrou, estendeu tres papeis sobre a mesa. Ega, que esperava, com o monoculo sôfrego, teve um brado de triumpho. Reconhecera a letra do Damaso!
Carlos examinou os papeis lentamente. Era uma carta do Damaso ao Palma, curta e em calão, remettendo o artigo, recommendando-lhe «que o apimentasse». Era o rascunho do artigo, laboriosamente trabalhado pelo Damaso, com entrelinhas. Era a lista, escripta pelo Damaso, das pessoas que deviam receber a Corneta: vinha lá a Gouvarinho, o ministro do Brazil, D. Maria da Cunha, El-Rei, todos os amigos do Ramalhete, o Cohen, varias authoridades, e a Fancelli prima-donna...
Palma no emtanto, nervoso, rufava com os dedos sobre a toalha, junto ao prato onde reluziam as libras. E foi o Ega que o animou, depois de relancear os olhos aos documentos por cima do hombro de Carlos:
— Recolha o bago, amigo Palma! Negocios são negocios, e o baguinho está ahi a arrefecer!
Então, ao palpar o ouro, Palma Cavallão commoveu-se. Palavra, caramba, se soubesse que se tratava d’um cavalheiro como o snr. Maia não tinha aceitado o artigo! Mas então!... Fôra o Eusebio Silveira, rapaz amigo, que lhe viera fallar. Depois o Salcede. E ambos com muitas lérias, e que era uma brincadeira, e que o Maia não se importava, e isto e aquillo, e muita promessa... Emfim deixára-se tentar. E tanto o Salcede como o Silveira se tinham portado pulhamente.
— Foi uma sorte que se escangalhasse a machina! Senão estava agora entalado, irra! E tinha desgosto, palavra, caramba, tinha desgosto! Mas acabou-se! O mal não foi grande, e sempre se fez alguma coisa pela porca da vida.
Vivamente, com um olhar, recontára o dinheiro na palma da mão: depois esvaziou a genebra, d’um trago consolado e ruidoso. Carlos guardára as cartas do Damaso, levantava já o fecho da porta. Mas voltou-se ainda, n’uma derradeira averiguação:
— Então esse meu amigo Eusebio Silveira tambem se metteu no negocio?...
O snr. Palma, muito lealmente, afiançou que o Eusebio lhe fallára apenas em nome do Damaso!
— O Eusebio, coitado, veio só como embaixador... Que o Damaso e eu não vamos muito na mesma bola. Ficámos exquisitos, desde uma péga em casa da Biscainha. Aqui p’ra nós, eu prometti-lhe dois estalos na cara, e elle embuchou. Passados tempos tornámos a fallar, quando eu fazia o High-life na Verdade. Elle veio-me pedir com bons modos, em nome do conde de Landim, para eu dar umas piadas catitas sobre um baile d’annos... Depois, quando o Damaso fez tambem annos, eu dei outra piadita. Elle pagou a ceia, ficámos mais calhados... Mas é traste... E lá o Eusebiosinho, coitado, veio só d’embaixador.
Sem uma palavra, sem um aceno ao Palma, Carlos virou as costas, deixou o cubiculo. O redactor da Corneta ainda baixou a cabeça para a porta; depois, sem se offender, voltou alegremente á genebra, dando outro puxão ás calças. Ega no emtanto accendia devagar o charuto.
— Vossê agora é que redige o jornal todo, Palma?
— O Silvestre, tambem...
— Que Silvestre?
— O que está com a Pingada. Vossê não conhece, creio eu. Um rapazola magro, que não é feio... Semsaborão, escreve uma palhada... Mas sabe coisas da sociedade. Esteve um tempo com a viscondessa de Cabellas, que elle chama a sua cabelluda... Que o Silvestre ás vezes tem graça! E sabe, sabe coisas da sociedade, assim maroteiras de fidalgos, amigações, pulhices... Vossê nunca leu nada d’elle? Chôcho. Tenho sempre de lhe arranjar o estylo... N’este numero é que havia um folhetimzito meu, catita, cá á moderna, como eu gósto, alli com a piadinha realista a bater... Emfim fica para outra vez. E outra coisa, Ega, olhe que lhe agradeço. Quando quizer, eu e a Corneta ás ordens!
Ega estendeu-lhe a mão:
— Obrigado, digno Palma! E adiós!
— Pues vaya usted con Dios, Don Juanito! exclamou logo o benemerito homem com infinito salero.
Em baixo Carlos esperava, dentro do coupé.
— E agora? perguntou Ega, á portinhola.
— Agora salta para dentro e vamos liquidar com o Damaso...
Carlos já esboçára summariamente o plano d’essa liquidação. Queria mandar desafiar o Damaso como author comprovado d’um artigo de jornal que o injuriava. O duello devia ser á espada ou ao florete, um d’esses ferros cujo lampejo, na sala d’armas do Ramalhete, fazia empallidecer o Damaso. Se contra toda a verosimilhança elle se batesse, Carlos fazia-lhe algures, entre a bochecha e o ventre, um furo que o cravasse mezes na cama. Senão a unica explicação que Carlos aceitaria do snr. Salcede seria um documento em que elle escrevesse esta coisa simples: «Eu abaixo assignado declaro que sou um infame.» E para estes serviços Carlos contava com o Ega.
— Agradeço! agradeço! Vamos a isso! exclamava o Ega esfregando as mãos, faiscando de jubilo.
No emtanto, dizia elle, a etiqueta funebre reclamava outro padrinho; e lembrou o Cruges, moço passivo e malleavel. Mas era impossivel encontrar o maestro, porque invariavelmente a criada affirmava que o menino Victorino não estava em casa... Decidiram ir ao Gremio, mandar de lá um bilhete chamando o Cruges — «para um caso urgente d’amizade e d’arte».
— Com quê, dizia o Ega continuando a esfregar as mãos emquanto a tipoia trotava para a rua de S. Francisco, com quê, demolir o nosso Damaso?
— Sim, é necessario acabar com esta perseguição. Chega a ser ridiculo... E com uma estocada, ou com a carta, temos esse biltre aniquilado por algum tempo. Eu preferia a estocada. Senão deixo-te a ti arranjar os termos d’uma carta forte...
— Has de ter uma boa carta! disse o Ega com um sorriso de ferocidade.
No Gremio, depois de redigirem o bilhete ao Cruges, vieram esperar por elle na sala das Illustrações. O conde de Gouvarinho e Steinbroken conversavam de pé, no vão d’uma janella. E foi uma surpreza. O ministro da Filandia abriu os braços para o cher Maia, que elle não vira desde a partida d’Affonso para Santa Olavia. Gouvarinho acolheu o Ega risonhamente, reatando uma certa camaradagem que entre elles se formára n’esse verão, em Cintra: mas o aperto de mão a Carlos foi sêcco e curto. Já dias antes, tendo-se encontrado no Loreto, o Gouvarinho murmurára de leve e de passagem «um como está, Maia?» em que se sentia arrefecimento. Ah! já não eram essas effusões, essas palmadas enternecidas pelos hombros, dos tempos em que Carlos e a condessa fumavam cigarettes na cama da titi em Santa Isabel. Agora que Carlos abandonára a snr.ª condessa de Gouvarinho, a rua de S. Marçal e o commodo sofá em que ella cahia com um rumor de saias amarrotadas — o marido amuava, como abandonado tambem.
— Tenho tido saudade das nossas bellas discussões em Cintra! disse elle, dando ao Ega a palmada carinhosa nas costas que outr’ora pertencia ao Maia. Tivemol-as de primeira ordem!
Eram realmente «pégas tremendas» no pateo do Victor sobre litteratura, sobre religião, sobre moral... Uma noite mesmo tinham-se zangado por causa da divindade de Jesus.
— É verdade! acudiu o Ega. Vossê n’essa noite parecia ter ás costas uma opa de irmão do Senhor dos Passos!
O conde sorriu. Irmão do Senhor dos Passos não, graças a Deus! Ninguem melhor do que elle sabia que n’esses sublimes episodios do Evangelho reinava bastante lenda... Mas emfim eram lendas que serviam para consolar a alma humana. É o que elle objectára n’essa noite ao amigo Ega... Sentiam-se a philosophia e o racionalismo capazes de consolar a mãi que chora? Não. Então...
— Em todo o caso, tivemol-as brilhantes! concluiu elle olhando o relogio. E, eu confesso, uma discussão elevada sobre religião, sobre metaphysica, encanta-me... Se a politica me deixasse vagares dedicava-me á philosophia... Nasci para isso, para aprofundar problemas.
Steinbroken no emtanto, esticado na sua sobrecasaca azul, com um raminho d’alecrim ao peito, tomára as mãos de Carlos:
— Mais vous êtes encore devenu plus fort!... Et Affonso da Maia, toujours dans ses terres?... Est-ce qu’on ne va pas le voir un peu cet hiver?
E immediatamente lamentou não ter visitado Santa Olavia. Mas quê! a familia real installára-se em Cintra; elle fôra forçado a acompanhal-a, fazer a sua côrte... Depois necessitára ir de fugida a Inglaterra d’onde acabava de chegar, havia dias.
Sim, Carlos sabia, vira na Gazeta Illustrada...
— Vous avez lu ça? Oh oui, on a été très aimable, très aimable pour moi à la Gazette...
Tinham-lhe annunciado a partida, depois a chegada, com palavras de amizade particularmente bem escolhidas. Nem podia deixar de ser, dada esta affeição sincera que liga Portugal e a Filandia... «Mais enfin on avait été charmant, charmant!...»
— Seulement — ajuntou elle, sorrindo com finura e voltando-se tambem para o Gouvarinho — on a fait une petite erreur... On a dit que j’étais venu de Southampton par le Royal Mail... Ce n’est pas vrai, non! Je me suis embarqué à Bordeaux dans les Messageries. J’ai même pensé à écrire à Mr. Pinto, redacteur de la Gazette, qui est un charmant garçon... Puis, j’ai reflechi, je me suis dit: «Mon Dieu, on va croire que je veux donner une leçon d’exactitude à la Gazette, c’est très grave...» Alors, voilà, très prudemment, j’ai gardé le silence... Mais enfin c’est une erreur: je me suis embarqué à Bordeaux.
Ega murmurou que a Historia se encarregaria um dia de rectificar esse facto. O ministro sorria modestamente, fazendo um gesto em que parecia desejar, por polidez, que a Historia se não incommodasse. E então o Gouvarinho, que accendêra o charuto, espreitára outra vez o relogio, perguntou se os amigos tinham ouvido alguma coisa do ministerio e da crise.
Foi uma surpreza para ambos, que não tinham lido os jornaes... Mas, exclamou logo o Ega, crise porquê, assim em pleno remanso, com as camaras fechadas, tudo contente, um tão lindo tempo d’outono?
O Gouvarinho encolheu os hombros com reserva. Houvera na vespera, á noitinha, uma reunião de ministros; n’essa manhã o presidente do conselho fôra ao paço, fardado, determinado a «largar o poder»... Não sabia mais. Não conferenciára com os seus amigos, nem mesmo fôra ao seu Centro. Como n’outras occasiões de crise, conservára-se retirado, calado, esperando... Alli estivera toda a manhã, com o seu charuto, e a Revista dos Dois Mundos.
Isto parecia a Carlos uma abstenção pouco patriotica...
— Porque emfim, Gouvarinho, se os seus amigos subirem...
— Exactamente por isso, acudiu o conde com uma côr viva na face, não desejo pôr-me em evidencia... Tenho o meu orgulho, talvez motivos para o ter... Se a minha experiencia, a minha palavra, o meu nome são necessarios, os meus correligionarios sabem onde eu estou, venham pedir-m’os...
Calou-se, trincando nervosamente o charuto. E Steinbroken, perante estas coisas politicas, começou logo a retrahir-se para o fundo da janella, limpando os vidros da luneta, recolhido, já impenetravel, no grande recato neutral que competia á Filandia. Ega no emtanto não sahia do seu espanto. Mas porque cahia, porque cahia assim um governo com maioria nas camaras, socego no paiz, o apoio do exercito, a benção da Igreja, a protecção do Comptoir d’Escompte?...
O Gouvarinho correu devagar os dedos pela pera, e murmurou esta razão:
— O ministerio estava gasto.
— Como uma vela de sebo? exclamou Ega, rindo.
O conde hesitou. Como uma vela de sebo não diria... Sebo subentendia obtusidade... Ora n’este ministerio sobrava o talento. Incontestavelmente havia lá talentos pujantes...
— Essa é outra! gritou Ega atirando os braços ao ar. É extraordinario! N’este abençoado paiz todos os politicos têm immenso talento. A opposição confessa sempre que os ministros, que ella cobre d’injurias, têm, á parte os disparates que fazem, um talento de primeira ordem! Por outro lado a maioria admitte que a opposição, a quem ella constantemente recrimina pelos disparates que fez, está cheia de robustissimos talentos! De resto todo o mundo concorda que o paiz é uma choldra. E resulta portanto este facto supra-comico: um paiz governado com immenso talento, que é de todos na Europa, segundo o consenso unanime, o mais estupidamente governado! Eu proponho isto, a vêr: que como os talentos sempre falham, se experimentem uma vez os imbecis!
O conde sorria com bonhomia e superioridade a estes exageros de phantasista. E Carlos, ancioso por ser amavel, atalhou, accendendo o charuto no d’elle:
— Que pasta preferiria você, Gouvarinho, se os seus amigos subissem? A dos Estrangeiros, está claro...
O conde fez um largo gesto d’abnegação. Era pouco natural que os seus amigos necessitassem da sua experiencia politica. Elle tornára-se sobretudo um homem d’estudo e de theoria. Além d’isso não sabia bem se as occupações da sua casa, a sua saude, os seus habitos lhe permittiriam tomar o fardo do governo. Em todo o caso, decerto, a pasta dos Estrangeiros não o tentava...
— Essa, nunca! proseguiu elle, muito compenetrado. Para se poder fallar d’alto na Europa, como ministro dos Estrangeiros, é necessario ter por traz um exercito de duzentos mil homens e uma esquadra com torpedos. Nós, infelizmente, somos fracos... E eu, para papeis subalternos, para que venha um Bismarck, um Gladstone, dizer-me «ha de ser assim», não estou!... Pois não acha, Steinbroken?
O ministro tossiu, balbuciou:
— Certainement... C’est très grave... C’est excessivement grave...
Ega então affirmou que o amigo Gouvarinho, com o seu interresse geographico pela Africa, faria um ministro da Marinha iniciador, original, rasgado...
Toda a face do conde reluzia, escarlate de prazer.
— Sim, talvez... Mas eu lhe digo, meu querido Ega, nas colonias todas as coisas bellas, todas as coisas grandes estão feitas. Libertaram-se já os escravos; deu-se-lhes já uma sufficiente noção da moral christã; organisaram-se já os serviços aduaneiros... Emfim o melhor está feito. Em todo o caso ha ainda detalhes interessantes a terminar... Por exemplo, em Loanda... Menciono isto apenas como um pormenor, um retoque mais de progresso a dar. Em Loanda precisava-se bem um theatro normal como elemento civilisador!
N’esse momento um criado veio annunciar a Carlos — que o snr. Cruges estava em baixo, no portal, á espera. Immediatamente os dois amigos desceram.
— Extraordinario, este Gouvarinho! dizia o Ega na escada.
— E este, observou Carlos com um immenso desdem de mundano, é um dos melhores que ha na politica. Pensando mesmo bem, e mettendo a roupa branca em linha de conta, este é talvez o melhor!
Acharam o Cruges á porta, de jaquetão claro, embrulhando um cigarro. E Carlos pediu-lhe logo que voltasse a casa vestir uma sobrecasaca preta. O maestro arregalava os olhos.
— É jantar?
— É enterro.
E rapidamente, sem alludir a Maria, contaram ao maestro que o Damaso publicára n’um jornal, a Corneta do Diabo (cuja tiragem elles tinham supprimido, não sendo possivel por isso mostrar o numero immundo) um artigo em que a coisa mais dôce que se chamava a Carlos era pulha. Portanto Ega e elle Cruges iam a casa do Damaso pedir-lhe a honra ou a vida.
— Bem, rosnou o maestro. Que tenho eu a fazer?... Que eu d’essas coisas não entendo.
— Tens, explicou Ega, d’ir vestir uma sobrecasaca preta e franzir o sobr’olho. Depois vir commigo; não dizer nada; tratar o Damaso por «v. exc.ª»; assentar em tudo o que eu propuzer; e nunca desfranzir o sobr’olho nem despir a sobrecasaca...
Sem outra observação, Cruges partiu a cobrir-se de ceremonia e de negro. Mas no meio da rua retrocedeu:
— Ó Carlos, olha que eu fallei lá em casa. Os quartos do primeiro andar estão livres, e forrados de papel novo...
— Obrigado. Vai-te fazer sombrio, depressa!...
O maestro abalára, quando diante do Gremio estacou a todo o trote uma caleche. De dentro saltou o Telles da Gama que, ainda com a mão no fecho da portinhola, gritou aos dois amigos:
— O Gouvarinho? está lá em cima?
— Está... Novidade fresca?
— Os homens cahiram. Foi chamado o Sá Nunes!
E enfiou pelo pateo, correndo. Carlos e Ega continuaram devagar até ao portão do Cruges. As janellas do primeiro andar estavam abertas, sem cortinas. Carlos, erguendo para lá os olhos, pensava n’essa tarde das corridas em que elle viera no phaeton, de Belem, para vêr aquellas janellas: ia então escurecendo, por traz dos stores fechados surgira uma luz, elle contemplára-a como uma estrella inaccessivel... Como tudo passa!
Retrocederam para o Gremio. Justamente o Gouvarinho e Telles atiravam-se á pressa para dentro da caleche que esperára. Ega parou, deixou cahir os braços:
— Lá vae o Gouvarinho batendo para o Poder, a mandar representar a Dama das Camelias no sertão! Deus se amerceie de nós!
Mas o Cruges appareceu emfim de chapéo alto, entalado n’uma sobrecasaca solemne, com botins novos de verniz. Apilharam-se logo na tipoia estreita e dura. Carlos ia leval-os a casa do Damaso. E como queria ainda jantar nos Olivaes, esperaria por elles, para saber o resultado «do chinfrin», no jardim da Estrella, junto ao coreto.
— Sêde rapidos e medonhos!
A casa do Damaso, velha e d’um andar só, tinha um enorme portão verde, com um arame pendente que fez resoar dentro uma sineta triste de convento: e os dois amigos esperaram muito antes que apparecesse, arrastando as chinelas, o gallego achavascado que o Damaso (agora livre de Carlos e das suas pompas) já não trazia torturado em botins crueis de verniz. A um canto do pateo uma portinha abria sobre a luz d’um quintal, que parecia ser um deposito de caixotes, de garrafas vazias e de lixo.
O gallego, que reconhecera o snr. Ega, conduziu-os logo, por uma escadinha esteirada, a um corredor largo, escuro, com cheiro a môfo. Depois, batendo o chinelo, correu ao fundo, onde alvejava a claridade d’uma porta entreaberta. Quasi immediatamente Damaso gritou de lá:
— Ó Ega, é você? Entre para aqui, homem! Que diabo!... Eu estou-me a vestir...
Embaraçado com estes brados de intimidade e tanta effusão, Ega ergueu a voz da sombra do corredor, gravemente:
— Não tem duvida, nós esperamos...
O Damaso insistia, á porta, em mangas de camisa, cruzando os suspensorios:
— Venha você, homem! Que diabo, eu não tenho vergonha, já estou de calças!
— Ha aqui uma pessoa de ceremonia, gritou o Ega para findar.
A porta ao fundo cerrou-se, o gallego veio abrir a sala. O tapete era exactamente igual aos dos quartos de Carlos no Ramalhete. E em redor abundavam os vestigios da antiga amizade com o Maia: o retrato de Carlos a cavallo, n’um vistoso caixilho de flôres em faiança: uma das colchas da India das senhoras Medeiros, branca e verde, enroupando o piano, arranjada por Carlos com alfinetes: e sobre um contador hespanhol, debaixo de redoma, um sapatinho de setim de mulher, novo, que o Damaso comprára no Serra, por ter ouvido um dia a Carlos que «em todo o quarto de rapaz deve apparecer, discretamente disposta, alguma reliquia d’amor...»
Sob estes retoques de chic, dados á pressa sob a influencia do Maia, impertigava-se a sólida mobilia do pai Salcede, de mogno e velludo azul; a console de marmore, com um relogio de bronze dourado, onde Diana acariciava um galgo; o grande e dispendioso espelho, tendo entalado no caixilho uma fila de bilhetes de visita, de retratos de cantoras, de convites para soirées. E Cruges ia examinar estes documentos, quando os passos alegres do Damaso soaram no corredor. O maestro correu logo a perfilar-se ao lado do Ega, diante do canapé de velludo, teso, commodo, com o seu chapéo alto na mão.
Ao vêl-o, o bom Damaso, que se abotoára todo n’uma sobrecasaca azul, florida por um botão de camelia, atirou risonhamente os braços ao ar:
— Então esta é que é a pessoa de ceremonia? Sempre vocês têm coisas! E eu a pôr sobrecasaca... Por pouco que não lhe afinfo com o habito de Christo!...
Ega atalhou, muito sério:
— O Cruges não é de ceremonia, mas o motivo que aqui nos traz é delicado e grave, Damaso.
Damaso arregalou os olhos, reparando emfim n’aquelle estranho modo dos seus amigos, ambos de negro, seccos, tão solemnes. E recuou, todo o sorriso se lhe apagou na face.
— Que diabo é isso? Sentem-se, sentem-se vocês...
A voz apagava-se-lhe tambem. Pousado á borda d’uma poltrona baixa, junto d’uma mesa coberta d’encadernações ricas, com as mãos nos joelhos, ficou esperando, n’uma anciedade.
— Nós vimos aqui, começou Ega, em nome do nosso amigo Carlos da Maia...
Uma brusca onda de sangue cobriu a face rechonchuda do Damaso até á risca do cabello encaracolado a ferro. E não achou uma palavra, attonito, suffocado, esfregando estupidamente os joelhos.
Ega proseguiu, lento, direito no canapé:
— O nosso amigo Carlos da Maia queixa-se de que o Damaso publicou, ou fez publicar, um artigo extremamente injurioso para elle e para uma senhora das relações d’elle na Corneta do Diabo...
— Na Corneta, eu? acudiu o Damaso, balbuciando. Que Corneta? Nunca escrevi em jornaes, graças a Deus! Ora essa, a Corneta!...
Ega, muito friamente, tirou do bolso um masso de papeis. E veio collocal-os um por um, ao lado do Damaso, na mesa, sobre um magnifico volume da Biblia de Doré.
— Aqui está a sua carta remettendo ao Palma Cavallão o rascunho do artigo... Aqui está, pela sua letra igualmente, a lista das pessoas a quem se devia mandar a Corneta, desde o Rei até á Fancelli... Além d’isso nós temos as declarações do Palma. O Damaso é não só o inspirador, mas materialmente o auctor do artigo... O nosso amigo Carlos da Maia exige, pois, como injuriado, uma reparação pelas armas...
Damaso deu um salto da poltrona, tão arrebatado — que involuntariamente Ega recuou, no receio d’uma brutalidade. Mas já o Damaso estava no meio da sala, esgazeado, com os braços tremulos no ar:
— Então o Carlos manda-me desafiar? A mim?... Que lhe fiz eu? Elle a mim é que me pregou uma partida!... Foi elle, vocês sabem perfeitamente que foi elle!...
E desabafou, n’um prodigioso fluxo de loquacidade, atirando palmadas ao peito, com os olhos marejados de lagrimas. Fôra Carlos, Carlos, que o desfeitiára a elle, mortalmente! Durante todo o inverno tinha-o perseguido para que elle o apresentasse a uma senhora brazileira muito chic, que vivia em Paris, e que lhe fazia olho... E elle, bondoso como era, promettia, dizia: «Deixa estar, eu te apresento!» Pois, senhores, que faz Carlos? Aproveita uma occasião sagrada, um momento de luto, quando elle Damaso fôra ao Norte por causa da morte do tio, e mette-se dentro da casa da brazileira... E tanto intriga, que leva a pobre senhora a fechar-lhe a sua porta, a elle, Damaso, que era intimo do marido, intimo de tu! Caramba, elle é que devia mandar desafiar Carlos! Mas não! fôra prudente, evitára o escandalo por causa do snr. Affonso da Maia... Queixára-se de Carlos, é verdade... Mas no Gremio, na Casa Havaneza, entre rapaziada amiga... E no fim Carlos préga-lhe uma d’estas!
— Mandar-me desafiar, a mim! A mim, que todo o mundo conhece!...
Calou-se, engasgado. E Ega, estendendo a mão, observou placidamente que se desviavam do ponto vivo da questão. O Damaso concebera, rascunhára, pagára o artigo da Corneta. Isso não o negava, nem o podia negar: as provas estavam alli, abertas sobre a mesa: elles tinham além d’isso a declaração do Palma...
— Esse desavergonhado! gritou o Damaso, levado n’outra rajada d’indignação que o fez redemoinhar, estonteado, tropeçando nos moveis. Esse descarado do Palma! Com esse é que eu me quero vêr!... Lá a questão com o Carlos não vale nada, arranja-se, somos todos rapazes finos... Com o Palma é que é! Esse traidor é que eu quero rachar! Um homem a quem eu tenho dado ás meias libras, aos sete mil reis! E ceias, e tipoias! Um ladrão que pediu o relogio ao Zeferino para figurar n’um baptisado, e pôl-o no prégo!... E faz-me uma d’estas!... Mas hei de escavacal-o! Onde é que você o viu, Ega? Diga lá, homem! Que quero ir procural-o, hoje mesmo, correl-o a chicotadas... Traições não, não admitto a ninguem!
Ega, com a tranquillidade paciente de quem sente a prêsa certa, lembrou de novo a inutilidade d’aquellas divagações:
— Assim nunca acabamos, Damaso... O nosso ponto é este: o Damaso injuriou Carlos da Maia: ou se retracta publicamente d’essa injuria, ou dá uma reparação pelas armas...
Mas o Damaso, sem escutar, appellava desesperadamente para o Cruges, que se não movera do sofá de velludo, esfregando, um contra o outro, com um ar arripiado e de dôr, os dois sapatos novos de verniz.
— Aquelle Carlos! Um homem que se dizia meu amigo intimo! Um homem que fazia de mim tudo! Até lhe copiava coisas... Você bem viu, Cruges. Diga! Falle, homem! Não sejam vocês todos contra mim!... Até ás vezes ia á alfandega despachar-lhe caixotes...
O maestro baixava os olhos, vermelho, n’um infinito mal-estar. E Ega, por fim, já farto, lançou uma intimação derradeira:
— Em resumo, Damaso, desdiz-se ou bate-se?
— Desdizer-me? tartamudeou o outro, impertigando-se, n’um penoso esforço de dignidade, a tremer todo. E de quê? Ora essa! É boa! Eu sou lá homem que me desdiga!
— Perfeitamente, então bate-se...
Damaso cambaleou para traz, desvairado:
— Qual bater-me! Eu sou lá homem que me bata! Eu cá é a sôcco. Que venha para cá, não tenho medo d’elle, arrombo-o...
Dava pulinhos curtos de gordo, através do tapete, com os punhos fechados e em riste. E queria Carlos alli para o escavacar! Não lhe faltava mais senão bater-se... E então duellos em Portugal, que acabavam sempre por troça!
Ega no emtanto, como se a sua missão estivesse finda, abotoára a sobrecasaca e recolhia os papeis espalhados sobre a Biblia. Depois, serenamente, fez a ultima declaração de que fôra incumbido. Como o snr. Damaso Salcede recusava retractar-se e rejeitava tambem uma reparação pelas armas, Carlos da Maia prevenia-o de que em qualquer parte que o encontrasse d’ahi por diante, fosse uma rua, fosse um theatro, lhe escarraria na face...
— Escarrar-me! berrou o outro, livido, recuando, como se o escarro já viesse no ar.
E de repente, espavorido, coberto de bagas de suor, precipitou-se sobre o Ega, agarrando-lhe as mãos, n’uma agonia:
— Ó João, ó João, tu, que és meu amigo, por quem és, livra-me d’esta entaladella!
Ega foi generoso. Desprendeu-se d’elle, empurrou-o brandamente para a poltrona, calmando-o com palmadinhas fraternaes pelo hombro. E declarou que, desde que Damaso appellava para a sua amizade, desapparecia o enviado de Carlos necessariamente exigente, ficava só o camarada, como no tempo dos Cohens e da villa Balzac. Queria pois o amigo Damaso um conselho? Era assignar uma carta affirmando que tudo o que fizera publicar na Corneta sobre o snr. Carlos da Maia e certa senhora fôra invenção falsa e gratuita. Só isto o salvava. D’outro modo, Carlos um dia, no Chiado, em S. Carlos, escarrava-lhe na cara. E, dado esse desastre, Damasosinho, a não querer ser apontado em Lisboa como um incomparavel cobarde, tinha de se bater á espada ou á pistola...
— Ora, em qualquer d’esses casos, você era um homem morto.
O outro escutava, esbarrondado no fundo do assento de velludo, com a face emparvecida para o Ega. Alargou mollemente os braços, murmurou da profundidade do seu terror:
— Pois sim, eu assigno, João, eu assigno...
— É o que lhe convém... Arranje então papel. Você está perturbado, eu mesmo redijo.
Damaso ergueu-se, com as pernas frouxas, atirando um olhar tonto e vago por sobre os moveis:
— Papel de carta? É para carta?
— Sim, está claro, uma carta ao Carlos!
Os passos do desgraçado perderam-se emfim no corredor, pesados e succumbidos.
— Coitado! suspirou o Cruges levando de novo, com um ar de arripio, a mão aos sapatos.
Ega lançou-lhe um chut severo. Damaso voltava com o seu sumptuoso papel de monogramma e corôa. Para envolver em silencio e segredo aquelle transe amargo, cerrou o reposteiro; e o vasto pano de velludo, desdobrando-se, mostrou o brazão de Salcede, onde havia um leão, uma torre, um braço armado, e por baixo, a letras d’ouro, a sua formidavel divisa: SOU FORTE! Immediatamente Ega afastou os livros na mesa, abancou, atirou largamente ao papel a data e a adresse do Damaso...
— Eu faço o rascunho, você depois copía...
— Pois sim! gemeu o outro, de novo, aluido na poltrona, passando o lenço pelo pescoço e pela face.
Ega no emtanto escrevia muito lentamente, com amor. E n’aquelle silencio, que o embaraçava, Cruges terminou por se erguer, foi coxeando até ao espelho onde se desenrolavam, entalados na frincha do caixilho, bilhetes e photographias. Eram as glorias sociaes do Damaso, os documentos do chic a valer que era a paixão da sua vida: bilhetes com titulos, retratos de cantoras, convites para bailes, cartas de entrada no Hippodromo, diplomas de membro do Club Naval, de membro do Jockey Club, de membro do Tiro aos Pombos: — até pedaços cortados de jornaes annunciando os annos, as partidas, as chegadas do snr. Salcede, «um dos nossos mais distinctos sportmen».
Desventuroso sportman! Aquella folha de papel, onde o Ega rascunhava, ia-o enchendo pouco a pouco d’um terror angustioso. Santo Deus! Para que eram tantos apuros n’uma carta ao Carlos, um rapaz intimo? Uma linha bastaria: — «Meu querido Carlos, não te zangues, desculpa, foi brincadeira.» Mas não! Toda uma pagina de letra miuda com entrelinhas! Já mesmo Ega voltava a folha, molhava a penna, como se d’ella devessem escorrer sem cessar coisas humilhadoras! Não se conteve, estendeu a face por sobre a mesa, até o papel:
— Ó Ega, isso não é para publicar, pois não é verdade?
Ega reflectiu, com a penna no ar:
— Talvez não... Estou certo que não. Naturalmente Carlos, vendo o seu arrependimento, deixa isto esquecido no fundo d’uma gaveta.
Damaso respirou com allivio. Ah, bem! Isso parecia-lhe mais decente entre amigos! Que lá isso, mostrar o seu arrependimento, até elle desejava! Com effeito o artigo fôra uma tolice... Mas então! Em questões de mulheres era assim, assomado, um leão...
Abanou-se com o lenço, desanuviado, recomeçando a achar sabôr á vida. Findou mesmo por accender um charuto, levantar-se sem rumor, acercar-se do Cruges — que, coxeando através das curiosidades da sala, encalhára sobre o piano e sobre os livros de musica, com o pé dorido no ar.
— Então tem-se feito alguma coisa de novo, Cruges?
Cruges, muito vermelho, resmungou que não tinha feito nada.
Damaso ficou alli um momento, a mascar o charuto. Depois, atirando um olhar inquieto á mesa onde o Ega rascunhava interminavelmente, murmurou, sobre o hombro do maestro:
— Uma entaladella assim! Eu é por causa da gente conhecida... Senão não me importava! Mas veja você tambem se arranja as coisas e se o Carlos deixa aquillo na gaveta...
Justamente Ega erguera-se com o papel na mão e caminhava para o piano, devagar, relendo baixo.
— Ficou optimo, salva tudo! exclamou por fim. Vai em fórma de carta ao Carlos, é mais correcto. Você depois copía e assigna. Ouça lá: «Exc.mo snr....» Está claro, você dá-lhe excellencia, porque é um documento d’honra... «Exc.mo snr. — Tendo-me v. exc.ª, por intermédio dos seus amigos João da Ega e Victorino Cruges, manifestado a indignação que lhe causára um certo artigo da Corneta do Diabo de que eu escrevi o rascunho e de que promovi a publicação, venho declarar francamente a v. exc.ª que esse artigo, como agora reconheço, não continha senão falsidades e incoherencias: e a minha desculpa unica está em que o compuz e enviei á redacção da Corneta no momento de me achar no mais completo estado d’embriaguez...»
Parou. E nem se voltou para o Damaso, que deixára pender os braços, rolar o charuto no tapete, varado. Foi ao Cruges que se dirigiu, entalando o monoculo:
— Achas talvez forte?... Pois eu redigi assim por ser justamente a unica maneira de resalvar a dignidade do nosso Damaso.
E desenvolveu a sua idéa, mostrando quanto era generosa e habil — emquanto o Damaso, aparvalhado, apanhava o charuto. Nem Carlos nem elle queriam que o Damaso n’uma carta (que se podia tornar publica) declarasse «que calumniára por ser calumniador». Era necessario, pois, dar á calumnia uma d’essas causas fortuitas e ingovernaveis que tiram a responsabilidade ás acções. E que melhor, tratando-se d’um rapaz mundano e femeeiro, do que estar bebedo?... Não era vergonha para ninguem embebedar-se... O proprio Carlos, todos elles alli, homens de gosto e de honra, se tinham embebedado. Sem remontar aos romanos, onde isso era uma hygiene e um luxo, muitos grandes homens na Historia bebiam de mais. Em Inglaterra era tão chic, que Pitt, Fox e outros nunca fallavam na Camara dos communs senão aos bordos. Musset, por exemplo, que bebedo! Emfim a Historia, a Litteratura, a Politica, tudo fervilhava de piteiras... Ora, desde que o Damaso se declarava borracho, a sua honra ficava salva. Era um homem de bem que apanhára uma carraspana e que commettera uma indiscrição... Nada mais!
— Pois não te parece, Cruges?
— Sim, talvez, que estava bebedo, murmurou o maestro timidamente.
— Pois não lhe parece a você, francamente, Damaso?
— Sim, que estava bebedo, balbuciou o desgraçado.
Immediatamente Ega retomou a leitura: «Agora que voltei a mim reconheço, como sempre reconheci e proclamei, que é v. exc.ª um caracter absolutamente nobre; e as outras pessoas, que n’esse momento d’embriaguez ousei salpicar de lama, são-me só merecedoras de veneração e louvor. Mais declaro que se por acaso tornasse a succeder soltar eu alguma palavra offensiva para v. exc.ª, não lhe devia dar v. exc.ª, ou aquelles que a escutassem, mais importancia do que a que se dá a uma involuntaria baforada d’alcool — pois que, por um habito hereditario que reapparece frequentemente na minha familia, me acho repetidas vezes em estado de embriaguez... De v. exc.ª, com toda a estima etc....» Rodou sobre os tacões, pousou o rascunho na mesa — e accendendo o charuto ao lume do Damaso, explicou com amizade, com bonhomia, o que o determinára áquella confissão de bebedeira incorrigivel e palreira. Fôra ainda o desejo de garantir a tranquillidade do «nosso Damaso». Attribuindo todas as imprudencias em que pudesse cahir a um habito d’intemperança hereditaria, de que tinha tão pouca culpa como de ser baixo e gordo, o Damaso punha-se para sempre ao abrigo das provocações de Carlos...
— Você, Damaso, tem genio, tem lingua... Um dia esquece-se, e no Gremio, sem querer, na cavaqueira depois do theatro, lá lhe escapa uma palavra contra Carlos... Sem esta precaução, ahi recomeça a questão, o escarro, o duello... Assim já Carlos não se póde queixar. Lá tem a explicação que tudo cobre, uma gotta de mais, a gotta tomada por impulso de borrachice hereditaria... Você alcança d’este modo a coisa que mais se appetece n’este nosso seculo XIX — a irresponsabilidade!... E depois para a sua familia não é vergonha, porque você não tem familia. Em resumo, convem-lhe?
O pobre Damaso escutava-o, esmagado, enervado, sem comprehender aquellas roncantes phrases sobre «a hereditariedade», sobre «o seculo XIX». E um unico sentimento vivo o dominava, acabar, reentrar na sua paz pachorrenta, livre de floretes e de escarros. Encolheu os hombros, sem força:
— Que lhe hei de eu fazer?... Para evitar fallatorios.
E abancou, metteu um bico novo na penna, escolheu uma folha de papel em que o monogramma luzia mais largo, começou a copiar a carta na sua maravilhosa letra, com finos e grossos, d’uma nitidez de gravura em aço.
Ega no emtanto, de sobrecasaca desabotoada e charuto fumegante, rondava em torno da mesa, seguindo sôfregamente as linhas que traçava a mão applicada do Damaso, ornada d’um grosso annel d’armas. E durante um momento atravessou-o um susto... Damaso parára, com a penna indecisa. Diabo! Acordaria emfim, no fundo de toda aquella gordura balofa, um resto escondido de dignidade, de revolta?... Damaso alçou para elle os olhos embaciados:
— Embriaguez é com n ou com m?
— Com um m, um m só, Damaso! acudiu Ega affectuosamente. Vai muito bem... Que linda letra você tem, caramba!
E o infeliz sorriu á sua propria letra — pondo a cabeça de lado, no orgulho sincero d’aquella soberba prenda.
Quando findou a cópia foi Ega que conferiu, pôz a pontuação. Era necessario que o documento fosse chic e perfeito.
— Quem é o seu tabellião, Damaso?
— O Nunes, na rua do Ouro... Porque?
— Oh! nada. É um detalhe que n’estes casos se pergunta sempre. Mera ceremonia... Pois amigos, como papel, como letra, como estylo, está d’appetite a cartinha!
Metteu-a logo n’um enveloppe onde rebrilhava a divisa «Sou Forte», sepultou-a preciosamente no interior da sobrecasaca. Depois, agarrando o chapéo, batendo no hombro do Damaso com uma familiaridade folgazã e leve:
— Pois, Damaso, felicitemo-nos todos! Isto podia acabar fóra de portas, n’uma poça de sangue! Assim é uma delicia. E adeus... Não se incommode você. Então o grande sarau sempre é na segunda-feira? Vai lá tudo, hein! Não venha cá, homem... Adeus!
Mas o Damaso acompanhou-os pelo corredor, mudo, murcho, cabisbaixo. E no patamar reteve o Ega, desafogou outra inquietação que o assaltára:
— Isso não se mostra a ninguem, não é verdade, Ega?
Ega encolheu os hombros. O documento pertencia a Carlos... Mas emfim Carlos era tão bom rapaz, tão generoso!
Esta incerteza, que o ficava minando, arrancou um suspiro ao Damaso:
— E chamei eu áquelle homem meu amigo!
— Tudo na vida são desapontamentos, meu Damaso! foi a observação do Ega, saltando alegremente os degraus.
Quando o calhambeque parou no Jardim da Estrella, Carlos já esperava ao portão de ferro, n’uma impaciencia, por causa do jantar na Toca. Enfiou logo para dentro atropellando o maestro, bradou ao cocheiro que voasse ao Loreto.
— E então, meus senhores, temos sangue?
— Temos melhor! exclamou Ega no barulho das rodas, floreando o enveloppe.
Carlos leu a carta do Damaso. E foi um immenso assombro:
— Isto é incrivel!... Chega a ser humilhante para a natureza humana!
— O Damaso não é o genero humano, acudiu Ega. Que diabo esperavas tu? Que elle se batesse?
— Não sei, corta o coração... Que se ha de fazer a isto?
Segundo o Ega não se devia publicar; seria crear curiosidade e escandalo em torno do artigo da Corneta que custára trinta libras a suffocar. Mas convinha conservar aquillo como uma ameaça pairando sobre o Damaso, tornando-o para longos annos nullo e inoffensivo.
— Eu estou mais que vingado, concluiu Carlos. Guarda o papel: é obra tua, usa-o como quizeres...
Ega guardou-o com prazer, emquanto Carlos, batendo no joelho do maestro, queria saber como elle se portára n’aquelle lance d’honra...
— Pessimamente! gritou Ega. Com expressões de compaixão; sem linha nenhuma; estendido por cima do piano; agarrando com a mão no sapato...
— Pudera! exclamou Cruges desafogando emfim. Vocês dizem-me que me ponha de ceremonia, calço uns sapatos novos de verniz, estive toda a tarde n’um tormento!
E não se conteve mais, arrancou o sapato, pallido, com um medonho suspiro de consolação.
No dia seguinte, depois do almoço, emquanto uma chuva grossa alagava os vidros sob as lufadas de sudoeste, Ega, no fumoir, enterrado n’uma poltrona, com os pés para o lume, relia a carta do Damaso: e pouco a pouco subia n’elle a mágoa de que esse colossal documento de cobardia humana, tão interessante para a physiologia e para a arte, ficasse para sempre inaproveitado no escuro d’uma gaveta!... Que effeito, que soberbo effeito se aquella confissão do «nosso distincto sportman» surgisse um dia na Gazeta Illustrada ou no novo jornal A Tarde, nas columnas do High-life, sob este titulo — Pendencia d’honra! E que lição, que meritorio acto de justiça social!
Todo esse verão, Ega detestára o Damaso, certo, desde Cintra, de que elle era o amante da Cohen — e de que, por esse imbecil de grossas nadegas, esquecera ella para sempre a villa Balzac, as manhãs na colcha de setim preto, os seus beijos delicados, os versos de Musset que lhe lia, os lunchesinhos de perdiz, tantos encantos poeticos. Mas o que lhe tornára o Damaso intoleravel — fôra a sua farofia radiante de homem preferido; o ar de posse com que passeava ao lado de Rachel pelas estradas de Cintra, vestido de flanella branca; os segredinhos que tinha sempre a cochichar-lhe sobre o hombro; e o acênosinho desdenhoso, com um dedo, que lhe atirava de lado, ao passar, a elle proprio, Ega... Era odioso! Odiava-o: e através d’esse odio ruminára sempre o desejo d’uma vingança — pancada, deshonra ou ridiculo que tornasse o snr. Salcede, aos olhos de Rachel, desprezivel, grutesco, chato como um balão furado...
E agora alli tinha essa carta providencial, em que o homem solemnemente se declarava bebedo. «Sou um bebedo, estou sempre bebedo»! Assim o dizia, no seu papel de monogramma d’ouro, o snr. Salcede, n’um medo vil de cão gôso, rastejando com o rabo entre as pernas diante de qualquer pau!... Nenhuma mulher resistiria a isto... E havia d’encafuar tão decisivo documento no fundo d’um gavetão?
Publical-o na Gazeta Illustrada ou na Tarde não podia, infelizmente, por interesse de Carlos. Mas porque o não mostraria «em segredo», como uma curiosidade psychologica, ao Craft, ao marquez, ao Telles, ao Gouvarinho, ao primo do Cohen? Podia mesmo confiar uma cópia ao Taveira que, resentido eternamente da questão com o Damaso em casa da Lola Gorda, correria a lêl-a em segredo na Casa Havaneza, no bilhar do Gremio, no Silva, nos camarins de cantoras... E ao fim de uma semana a snr.ª D. Rachel saberia inevitavelmente que o escolhido do seu coração era por confissão propria um calumniador e um bebedo!... Delicioso!
Tão delicioso que não hesitou mais, subiu ao quarto para copiar a carta do Damaso. Mas quasi immediatamente um criado trouxe-lhe um telegramma de Affonso da Maia annunciando que chegava no dia seguinte ao Ramalhete. Ega teve de sahir, telegraphar para os Olivaes, avisar Carlos.
Carlos appareceu n’essa noite, já tarde, transido de frio, com um monte de bagagens — porque abandonára definitivamente os Olivaes. Maria Eduarda regressava tambem a Lisboa, para o primeiro andar da rua de S. Francisco, tomado agora por seis mezes, tapetado de novo pela mãi Cruges. E Carlos vinha muito impressionado, com profundas saudades da Toca. Depois de cear, ao fogão, acabando o charuto, relembrou infindavelmente esses dias alegres, a sua casinhola, o banho da manhã tomado dentro d’uma dorna, a festa do deus Tchi, as guitarradas do marquez, as longas cavaqueiras ao café com as janellas abertas e as borboletas voando em torno aos candieiros... Fóra as cordas d’agua, sob o vento d’inverno, batiam os vidros na mudez da noite negra. Ambos terminaram por ficar calados, pensativos, com os olhos no lume.
— Quando esta tarde dei pela ultima vez uma volta na quinta, disse por fim Carlos, já não havia uma unica folha nas arvores... Tu não sentes sempre uma grande melancolia n’estes fins de outono?...
— Immensa! murmurou Ega lugubremente.
Ao outro dia a manhã clareava, limpa e branca, quando Ega e Carlos, ainda estremunhados e tiritando, se apearam em Santa Apolonia. O comboio acabava justamente de chegar; e viram logo, entre o rumor de gente que se escoava das portinholas abertas, Affonso, com o seu velho capote de gola de velludo, apegado a uma bengala, debatendo-se entre homens de boné agaloado que lhe offereciam o Hotel Terreirense e a Pomba d’Ouro. Atraz Mr. Antoine, o chefe francez, grave, de chapéo alto, trazia o cesto em que viajára o reverendo Bonifacio.
Carlos e Ega acharam Affonso mais acabado, mais pesado. Todavia gabaram-lhe muito, entre os primeiros abraços, a sua robustez de patriarcha. Elle encolheu os hombros, queixando-se de ter sentido desde o fim do verão vertigens, um cansaço vago...
— Vocês é que estão excellentes, acrescentou abraçando outra vez Carlos e sorrindo ao Ega. E que ingratidão foi essa tua, John, mettido aqui todo um verão sem me ir visitar?... Que tens tu feito? Que têm vocês feito?
— Mil coisas! acudiu Ega alegremente. Planos, ideias, titulos... Temos sobretudo o projecto d’uma Revista, um apparelho d’educação superior que vamos montar com uma força de mil cavallos!... Emfim logo se lhe conta tudo ao almoço.
E ao almoço, com effeito, para justificarem as suas occupações em Lisboa, fallaram da Revista como se ella já estivesse organisada e os artigos a imprimir na officina — tanta foi a precisão com que lhe descreveram as tendencias, a feição critica, as linhas de pensamento sobre que ella devia rolar... Ega já preparára um trabalho para o primeiro numero — A capital dos portuguezes. Carlos meditava uma série d’ensaios á ingleza, sob este titulo — Porque falhou entre nós o systema constitucional. E Affonso escutava, encantado com aquellas bellas ambições de lucta, querendo partilhar da grande obra como socio capitalista... Mas Ega entendia que o snr. Affonso da Maia devia descer á arena, lançar tambem a palavra do seu saber e da sua experiencia. Então o velho riu. O quê! compôr prosa, elle, que hesitava para traçar uma carta ao feitor? De resto o que teria a dizer ao seu paiz, como fructo da sua experiencia, reduzia-se pobremente a tres conselhos em tres phrases: aos politicos — «menos liberalismo e mais caracter»; aos homens de letras — «menos eloquencia e mais ideia»; aos cidadãos em geral — «menos progresso e mais moral».
Isto enthusiasmou o Ega! Justamente, ahi estavam as verdadeiras feições da reforma espiritual que a Revista devia prégar! Era necessario tomal-as como moto symbolico, inscrevel-as em letras gothicas no frontispicio — porque Ega queria que a Revista fosse original logo na capa. E então a conversação desviou para o exterior da Revista — Carlos pretendendo que fosse azul-claro com typo Renascença, Ega exigindo uma cópia exacta da Revista dos Dois Mundos, n’uma nuance mais côr de canario. E, levados pela sua imaginação de meridionaes, já não era só para agradar a Affonso da Maia que iam levantando e dando fórma áquelle confuso plano.
Carlos exclamava para o Ega, com os olhos já apaixonados:
— Isto agora é sério. Precisamos arranjar immediatamente a casa para a redacção!
Ega bracejava:
— Pudera! E moveis! E machinas!
Toda a manhã, no escriptorio d’Affonso, azafamados, com papel e lapis, se occuparam em fixar uma lista de collaboradores. Mas já as difficuldades surgiam. Quasi todos os escriptores suggeridos desagradavam ao Ega, por lhes faltar no estylo aquelle requinte plastico e parnasiano de que elle desejava que a Revista fosse o impeccavel modelo. E a Carlos alguns homens de letras pareciam impossiveis — sem querer confessar que n’elles lhe repugnava exclusivamente a falta de linha e o fato mal feito...
Uma coisa porém ficou decidida: a casa da redacção. Devia ser mobilada luxuosamente, com sofás do consultorio de Carlos e algum bric-à-brac da Toca: e sobre a porta (ornada d’um guarda-portão de libré) a taboleta de verniz preto, com Revista de Portugal em altas letras a ouro. Carlos sorria, esfregava as mãos, pensando na alegria de Maria ao saber esta decisão que o lançava, como era o desejo d’ella, na actividade, n’uma lucta interessante d’ideias. Ega, esse, via já a brochura côr de canario aos montões nas vitrines dos livreiros, discutida nas soirées do Gouvarinho, folheada na camara com espanto pelos politicos...
— Vai-se remexer Lisboa este inverno, snr. Affonso da Maia! gritou elle atirando um gesto immenso até ao tecto.
E o mais contente era o velho.
Depois de jantar, Carlos pediu ao Ega para ir com elle á rua de S. Francisco (onde Maria se installára n’essa manhã) levarem a nova da grande obra. Mas encontraram á porta uma carroça descarregando malas; e a senhora, contou o Domingos que ajudava os carroceiros, estava ainda jantando a um canto da mesa e sem toalha. Com tanta confusão na casa, Ega não quiz subir.
— Até logo, disse elle. Vou talvez procurar o Simão Craveiro e fallar-lhe da Revista.
Subiu lentamente o Chiado, leu os telegrammas na Casa Havaneza. Depois á esquina da rua Nova da Trindade, um homem rouco, sumido n’um paletot, offereceu-lhe uma «senhasinha». Outros, em volta, gritavam na sombra do Hotel Alliança:
— Bilhete para o Gymnasio! Mais barato... Bilhete para o Gymnasio! Quem vende?...
Havia um cruzar animado de carruagens com librés. Os bicos de gaz do Gymnasio tinham um fulgor de festa. E Ega deu de rosto com o Craft que atravessava do lado do Loreto, de gravata branca e flôr no paletot.
— Que é isto?
— Festa de beneficencia, não sei, disse o Craft. Uma coisa promovida por senhoras, a baroneza d’Alvim mandou-me um bilhete... Venha você d’ahi ajudar-me a levar esta caridade ao Calvario.
E na esperança de flirtar com a Alvim, Ega comprou logo uma senha. No perystilo do Gymnasio encontraram Taveira passeando e fumando solitariamente, á espera que findasse a primeira comedia, o Fructo prohibido. Então Craft propôz «botequim e genebra».
— E que ha do ministerio? perguntou elle, apenas abancaram a um canto.
O Taveira não sabia. Todos esses dois longos dias se intrigára desesperadamente. O Gouvarinho queria as Obras Publicas: o Videira tambem. E fallava-se d’uma scena terrivel por causa de syndicatos, em casa do presidente do conselho, o Sá Nunes, que terminára por dar um murro na mesa, gritar: «Irra! que isto não é o pinhal d’Azambuja!»
— Canalha! rosnou Ega com odio.
Depois fallaram do Ramalhete, da volta d’Affonso, da reapparição de Carlos. Craft louvou Deus por haver outra vez n’esse inverno uma casa com fogões, onde se passasse uma hora civilisada e intelligente.
Taveira acudiu com o olho brilhante:
— Diz que vamos ter um centrosinho muito mais interessante ainda, na rua de S. Francisco! Foi o marquez que me disse. Madame Mac-Gren vai receber.
Craft não sabia mesmo que ella já tivesse recolhido da Toca.
— Voltou hoje, disse o Ega. Você ainda não a conhece?... Encantadora.
— Creio que sim.
O Taveira vira-a de relance no Chiado. Parecera-lhe uma belleza. E um ar tão sympathico!
— Encantadora! repetiu Ega.
Mas o Fructo prohibido findára, os homens enchiam o peristylo, n’um rumor lento, accendendo os cigarros. E Ega, deixando o Craft e Taveira com a genebra, correu á plateia para descobrir o camarote da Alvim.
Mal erguera porém a cortina e assestára o monoculo — avistou defronte, na primeira ordem, a Cohen, toda de preto, com um grande leque de rendas brancas; por traz negrejavam as suissas fortes do marido; e em face d’ella, recostado no velludo da grade, de casaca, com a bochecha risonha, uma grossa perola no peitilho da camisa, o Damaso, o bebedo!
Ega cahiu mollemente, ao acaso, na borda d’uma cadeira: e perturbado, já esquecido da Alvim, alli ficou a olhar o panno coberto d’annuncios, correndo os dedos tremulos pelo bigode.
No emtanto a campainha retinia, a gente vagarosamente reentrava na plateia. Um cavalheiro gordo e carrancudo tropeçou no joelho do Ega: outro, de luvas claras, com uma polidez adocicada, pediu permissão a s. exc.ª Elle não escutava, não percebia: os seus olhos, um momento errantes, tinham-se emfim cravado no camarote da Cohen e não se desviaram de lá, n’uma emoção que o empallidecia.
Não a tornára a encontrar desde Cintra, onde só a via de longe, com vestidos claros sob o verde das arvores; e agora alli, toda de preto, em cabello, com um decote curto onde brilhava a perfeita brancura do seu collo, ella era outra vez a sua Rachel, dos tempos divinos da villa Balzac. Era assim que elle, todas as noites em S. Carlos, a contemplava do fundo da frisa de Carlos, com a cabeça encostada ao tabique, saturado de felicidade. Lá tinha a sua luneta d’ouro, presa por um fio d’ouro. Parecia mais pallida, mais delicada, com o longo quebranto dos olhos pisados, o seu ar de romance e de lirio meio murcho: e como então os seus cabellos magnificos e pesados cahiam habilmente n’uma massa meia solta sobre as costas, n’um desalinho de nudez. Pouco a pouco, entre o afinar de rebecas e o rumor das cadeiras Ega revia, n’uma onda de recordações que o suffocava, o grande leito da villa Balzac, certos beijos e certos risos, as perdizes comidas em camisa á borda do sofá, e a melancolia deliciosa das tardes, quando ella sahia furtivamente, coberta de véos, e elle ficava, cansado, no crepusculo poetico do quarto, cantarolando a Traviata...
— V. exc.ª dá licença, snr. Ega?
Era um sujeito escaveirado, de barba rala, que reclamava a sua cadeira. Ega ergueu-se, confusamente, sem reconhecer o snr. Sousa Netto. O panno subira. Á borda da rampa um lacaio, piscando o olho á Plateia, fazia confidencias sobre a patrôa, de espanejador debaixo do braço. E Cohen, agora de pé, enchia o meio do camarote, cofiando as suissas com um correr lento da mão bem tratada, onde reluzia um diamante.
Ega então, n’um soberbo alarde d’indifferença, cravou o monoculo no palco. O lacaio abalára espavorido, a um repique furioso de sineta; e uma megera azeda, de roupão verde e touca á banda, rompera de dentro, meneando desesperadamente o leque, ralhando com uma mocinha delambida que batia o tacão, se esganiçava: «Pois hei de amal-o sempre! hei de amal-o sempre!»
Irresistivelmente Ega revirou o canto do olho para o camarote: Rachel e o Damaso, com as cabeças chegadas como em Cintra, cochichavam n’um sorriso. E tudo logo dentro do Ega se resumiu n’um immenso odio ao Damaso! Collado á umbreira da porta, rilhava os dentes, n’um desejo de subir, escarrar-lhe na bochecha gorda.
E não desviava d’elle os olhos, que dardejavam. Na scena, um velho general, gottoso e resmungão, sacudia um jornal, gritava pela sua tapioca. A Plateia ria, o Cohen ria. E n’esse momento Damaso, que se debruçára no camarote com as mãos de fóra, calçadas de gris-perle, descobriu o Ega, sorriu, atirou-lhe como em Cintra um acenosinho petulante, muito d’alto, na ponta dos dedos. Isto feriu o Ega como um insulto. E ainda na vespera aquelle covarde se lhe agarrára ás mãos, tremendo todo, a gritar «que o salvasse!...»
Subitamente, com uma idéa, palpou por sobre o bolso a carteira onde na vespera guardára a carta do Damaso... «Eu t’arranjo!» murmurou elle. E abalou, desceu a rua da Trindade, cortou pelo Loreto como uma pedra que rola, enfiou, ao fundo da praça de Camões, n’um grande portão que uma lanterna alumiava. Era a redacção da Tarde.
Dentro do pateo d’esse jornal elegante fedia. Na escadaria de pedra, sem luz, cruzou um sujeito encatarrhoado que lhe disse que o Neves estava em cima ao cavaco. O Neves, deputado, politico, director da Tarde, fôra, havia annos, n’umas ferias, seu companheiro de casa no largo do Carmo; e desde esse verão alegre em que o Neves lhe ficára sempre devendo tres moedas, os dois tratavam-se por tu.
Foi encontral-o n’uma vasta sala alumiada por bicos de gaz sem globo, sentado na borda d’uma mesa atulhada de jornaes, com o chapéo para a nuca, discursando a alguns cavalheiros de provincia que o escutavam de pé, n’um respeito de crentes. N’um vão de janella, com dois homens d’idade, um rapaz esgalgado, de jaquetão de cheviote claro e uma cabelleira crespa que parecia erguida n’uma rajada de vento, bracejava como um moinho na crista d’um monte. E, abancado, outro sujeito já calvo rascunhava laboriosamente uma tira de papel.
Ao vêr o Ega (um intimo do Gouvarinho) alli na redacção, n’aquella noite de intriga e de crise, Neves cravou n’elle os olhos tão curiosos, tão inquietos, que o Ega apressou-se a dizer:
— Nada de politica, negocio particular... Não te interrompas. Depois fallaremos.
O outro findou a injuria que estava lançando ao José Bento, «essa grande besta que fôra metter tudo no bico da amiga do Sousa e Sá, o par do reino» — e na sua impaciencia saltou da mesa, travou do braço do Ega arrastando-o para um canto:
— Então que é?
— É isto, em quatro palavras. O Carlos da Maia foi offendido ahi por um sujeito muito conhecido. Nada d’interessante. Um paragrapho immundo na Corneta do Diabo, por uma questão de cavallos... O Maia pediu-lhe explicações. O outro deu-as, chatas, medonhas, n’uma carta que quero que vocês publiquem.
A curiosidade do Neves flammejou:
— Quem é?
— O Damaso.
O Neves recuou d’assombro:
— O Damaso!? Ora essa! Isso é extraordinario! Ainda esta tarde jantei com elle! Que diz a carta?
— Tudo. Pede perdão, declara que estava bebedo, que é de profissão um bebedo...
O Neves agitou as mãos com indignação:
— E tu querias que eu publicasse isso, homem? O Damaso, nosso amigo politico!... E que não fosse, não é questão de partido, é de decencia! Eu faço lá isso!... Se fosse uma acta de duello, uma coisa honrosa, explicações dignas... Mas uma carta em que um homem se declara bebedo! Tu estás a mangar!
Ega, já furioso, franzia a testa. Mas o Neves, com todo o sangue na face, teve ainda uma revolta áquella idéa do Damaso se declarar bebedo!
— Isso não póde ser! É absurdo! Ahi ha historia... Deixa vêr a carta.
E, mal relanceára os olhos ao papel, á larga assignatura floreada, rompeu n’um alarido:
— Isto não é o Damaso nem é letra do Damaso!... «Salcede»! Quem diabo é «Salcede»? Nunca foi o meu Damaso!
— É o meu Damaso, disse o Ega. O Damaso Salcede, um gordo...
O outro atirou os braços ao ar:
— O meu é o Guedes, homem, o Damaso Guedes! Não ha outro! Que diabo, quando se diz o Damaso é o Guedes!...
Respirou com grande allivio:
— Irra, que me assustaste! Olha agora n’este momento, com estas coisas de ministerio, uma carta d’essas escripta pelo Guedes... Se é o Salcede, bem, acabou-se! Espera lá... Não é um gordalhufo, um janota que tem uma propriedade em Cintra? Isso! Um maganão que nos entalou na eleição passada, fez gastar ao Silverio mais de trezentos mil reis... Perfeitamente, ás ordens... Ó Pereirinha, olhe aqui o snr. Ega. Tem ahi uma carta para sahir ámanhã, na primeira pagina, typo largo...
O snr. Pereirinha lembrou o artigo do snr. Vieira da Costa sobre a «Reforma das Pautas».
— Vai depois! gritou o Neves. As questões de honra antes de tudo!
E voltou ao seu grupo onde agora se fallava do conde de Gouvarinho, saltou para a borda da mesa, lançou logo o seu vozeirão de chefe, affirmando no Gouvarinho enormes dotes de parlamentar!
Ega accendeu o charuto, ficou um momento considerando aquelles sujeitos que pasmavam para o verbo do Neves. Eram decerto deputados que a crise arrastára a Lisboa, arrancára á quietação das villas e das quintas. O mais novo parecia um pote, vestido de casimira fina, com uma enorme face a estourar de sangue, jocundo, crasso, lembrando ares sadios e lombo de porco. Outro, esguio, com o paletot solto sobre as costas em arco, tinha um queixo duro e macisso de cavallo: e dois padres muito rapados, muito morenos, fumavam pontas de cigarro. Em todos havia esse ar, conjunctamente apagado e desconfiado, que marca os homens de provincia, perdidos entre as tipoias e as intrigas da Capital. Vinham alli ás noites, áquelle jornal do partido, saber as novas, beber do fino, uns com esperanças de empregos, outros por interesses de terriola, alguns por ociosidade. Para todos o Neves era um «robusto talento»; admiravam-lhe a verbosidade e a tactica; decerto gostavam de citar nas lojas das suas villas o amigo Neves, o jornalista, o da Tarde... Mas, através d’essa admiração e do prazer de roçar por elle, percebia-se-lhes um vago medo que aquelle «robusto talento» lhes pedisse, n’um vão de janella, duas ou tres moedas. O Neves no emtanto celebrava o Gouvarinho como orador. Não que tivesse os rasgos, a pureza, as bellas syntheses historicas do José Clemente! Nem a poesia do Rufino! Mas não havia outro para as piadas que ferem e que ficam cravadas, alli a arder, na pelle do touro! E era a grande coisa na Camara — ter a farpa, sabêl-a ferrar!
— Ó Gonçalo, tu lembras-te da piada do Gouvarinho, a do trapezio? gritou elle virando-se para a janella, para o rapaz de jaquetão claro.
O Gonçalo, cujos olhos pretos refulgiram de agudeza e malicia, estendeu o pescoço magro n’um collarinho muito decotado, lançou de lá:
— A do trapezio? Divina! Conta á rapaziada!
A rapaziada arregalou os olhos para o Neves, á espera da «do trapezio». Fôra na Camara dos Pares, na reforma da instrucção. Estava fallando o Torres Valente, esse maluco que defendia a gymnastica dos collegios e queria as meninas a fazerem a prancha. Gouvarinho ergue-se e atira-lhe esta:
«Snr. presidente, direi uma palavra só. Portugal sahirá para sempre da senda do progresso, em que tanto se tem illustrado, no dia em que nós fôrmos ao ensino, com mão impia, substituir a cruz pelo trapezio!»
— Muito bem! rosnou um dos padres profundamente satisfeito.
E no murmurio de admiração que se ergueu destacou um ganido — o do rapaz mais grosso que um pote, que mexia os hombros, chasqueava com uma risota na bochecha côr de tomate:
— Pois, senhores, o que esse conde de Gouvarinho me sae é um grandissimo carola!
E em redor correram sorrisos entre os cavalheiros de provincia, liberaes e finorios, que achavam aquelle fidalgo excessivamente apegado á cruz. Mas já o Neves, de pé, bravejava:
— Carola! Vem-nos agora o menino gordo com carola!... O Gouvarinho carola! Está claro que tem toda a orientação mental do seculo, é um racionalista, um positivista... Mas a questão aqui é a réplica, a tactica parlamentar! Desde que o typo da maioria vem de lá com a descoberta do trapezio, Gouvarinho amigo, ainda que fosse tão atheu como Renan, zás! atira-lhe logo para cima com a cruz!... Isto é que é a estrategia parlamentar! Pois não é assim, Ega?
Ega murmurou, através do fumo do charuto:
— Sim, com effeito a cruz para isso ainda serve...
Mas n’esse momento o sujeito calvo, que repellira a tira de papel e se espreguiçava, cahido para as costas da cadeira, exhausto, pediu ao snr. João da Ega — que fallasse á gente e guardasse o seu dinheiro...
Ega acercou-se logo d’aquelle sympathico homem, tão engraçado, tão querido de todos:
— Então, na grande faina, Melchior?
— Estou aqui a vêr se faço uma coisa sobre o livro do Craveiro, os Cantos da Serra, e não me sae nada em termos... Não sei o que hei de dizer!
Ega gracejou, de mãos nos bolsos, muito risonho, muito camarada com o Melchior:
— Nada! Vocês aqui são simples localistas, noticiaristas, annunciadores. D’um livro como o do Craveiro têm só respeitosamente a dizer onde se vende e quanto custa.
O outro considerou o Ega ironicamente, com os dedos cruzados por traz da nuca:
— Então onde queria você que se fallasse dos livros?... Nos reportorios?
Não, nas Revistas Criticas: ou então nos jornaes — que fossem jornaes, não papeluchos volantes, tendo em cima uma cataplasma de politica em estylo mazorro ou em estylo fadista, um romance mal traduzido do francez por baixo e o resto cheio com «annos», despachos, parte de policia e loteria da Misericordia. E como em Portugal não havia nem jornaes sérios nem Revistas Criticas — que se não fallasse em parte nenhuma.
— Com effeito, murmurou Melchior, ninguem falla de nada, ninguem parece pensar em nada...
E com toda a razão, affirmou Ega. Certamente muito d’esse silencio provinha do natural desejo que têm os que são mediocres de que se não alluda muito aos que são grandes. É a invejasinha reles e rastejante! Mas em geral o silencio dos jornaes para com os livros provém sobretudo d’elles terem abdicado todas as funcções elevadas d’estudo e de critica, de se terem tornado folhas rasteiras d’informação caseira, e de sentirem por isso a sua incompetencia...
— Está claro, não fallo por você, Melchior, que é dos nossos e de primeira ordem! Mas os seus collegas, menino, calam-se por se saberem incompetentes...
O Melchior ergueu os hombros com um ar cançado e descrente:
— Calam-se tambem porque o publico não se importa, ninguem se importa...
Ega protestou, já excitado. O Publico não se importava!? Essa era curiosa! O Publico então não se importa que lhe fallem de livros que elle compra aos tres mil, aos seis mil exemplares? E isto, dada a população de Portugal, caramba, é igual aos grandes successos de Paris e de Londres... Não, Melchiorzinho amigo, não! Esse silencio diz ainda mais claramente e retumbantemente que as palavras: «Nós somos incompetentes. Nós estamos bestialisados pela noticia do snr. conselheiro que chegou ou do snr. conselheiro que partiu, pelos High-lifes, pela amabilidade dos donos da casa, pelo artigo de fundo em descompostura e calão, por toda esta prosa chula em que nos atolamos... Nós não sabemos, não podemos já fallar d’uma obra d’arte ou d’uma obra de historia, d’este bello livro de versos ou d’este bello livro de viagens. Não temos nem phrases nem idéas. Não somos talvez cretinos — mas estamos cretinisados. A obra de litteratura passa muito alto — nós chafurdamos aqui muito em baixo...»
— E aqui tem você, Melchior, o que diz, através do silencio dos jornaes, o côro dos jornalistas!
Melchior sorria, enlevado, com a cabeça deitada para traz, como quem goza uma bella ária. Depois com uma palmada na mesa:
— Caramba, ó Ega, muito bem falla você!... Você nunca pensou em ser deputado? Eu ainda outro dia dizia ao Neves: «O Ega! O Ega é que era, para atirar alli na camara a piadinha á Rochefort. Ardia Troia!»
E immediatamente, emquanto Ega ria, contente, tornando a accender o charuto — Melchior arrebatou a penna:
— Você está em veia! Diga lá, dicte lá... Que hei de eu aqui pôr sobre o livro do Craveiro?
Ega quiz saber o que escrevera já o amigo Melchior. Apenas tres linhas: «Recebemos o novo livro do nosso glorioso poeta Simão Craveiro. O precioso volume, onde scintillam em caprichosos relevos todas as joias d’este prestigioso escriptor, é publicado pelos activos editores...» E aqui o Melchior emperrára. Melchior não gostava d’aquelle frouxo termo — activos. Ega então suggeriu — emprehendedores. Melchior emendou, leu:
— «...publicado pelos emprehendedores editores...» Ora sêbo, rima!
Arrojou a penna, descorçoado. Acabou-se! Não estava em verve. E além d’isso era tarde, tinha a rapariga á espera...
— Fica para ámanhã... O peor é que já ando n’isto ha cinco dias! Irra! Você tem razão, a gente bestialisa-se. E faz-me raiva! Não é lá pelo livro, não me importa o livro... É pelo Craveiro, que é bom rapaz, e demais a mais pertence cá ao partido!
Abriu um gavetão, sacou uma escova, rompeu a escovar-se com desespero. E Ega ia ajudal-o, limpar-lhe as costas cheias de cal — quando entre elles surgiu a face chupada e nervosa do Gonçalo, com a sua gaforinha perpetuamente erguida como por uma rajada de vento.
— Que está o Egasinho a fazer n’este covil da noticia?
— Aqui a escovar o Sampaio... Estive tambem a ouvir o Neves, a grande phrase do Gouvarinho...
O Gonçalo pulou, com uma faisca de malicia nos olhos negros de algarvio esperto.
— A da cruz? Espantosa! Mas ha melhor, ha melhor!
Travou do braço do Ega, puxou-o para um canto da janella:
— É necessario fallar baixo por causa da rapaziada de provincia... Ha outra deliciosa. Eu não me lembro bem, o Neves é que sabe! É uma coisa da Liberdade conduzindo á mão o corcel do Progresso... O quer que seja assim, uma imagem equestre! A Liberdade com calções de jockey, o Progresso com um grande freio... Espantoso! Que besta, aquelle Gouvarinho! E os outros, menino, os outros! Você não foi á camara quando se discutiu a questão de Tondella? Extraordinario! O que se disse! Foi de morrer! E eu morro! Esta politica, este S. Bento, esta eloquencia, estes bachareis matam-me. Querem dizer agora ahi que isto por fim não é peor que a Bulgaria. Historias! Nunca houve uma choldra assim no universo!
— Choldra em que você chafurda! observou o Ega rindo.
O outro recuou com um grande gesto:
— Distingamos! Chafurdo por necessidade, como politico: e tróço por gosto, como artista!
Mas Ega justamente achava uma desgraça incomparavel para o paiz — esse immoral desaccordo entre a intelligencia e o caracter. Assim, alli estava o amigo Gonçalo, como homem de intelligencia, considerando o Gouvarinho um imbecil...
— Uma cavalgadura, corrigiu o outro.
— Perfeitamente! E todavia, como politico, você quer essa cavalgadura para ministro, e vai apoial-a com votos e com discursos sempre que ella rinche ou escoucinhe.
Gonçalo correu lentamente a mão pela gaforinha, com a face franzida:
— É necessario, homem! Razões de disciplina e de solidariedade partidaria... Ha uns compromissos... O paço quer, gosta d’elle...
Espreitou em roda, murmurou, collado ao Ega:
— Ha ahi umas questões de syndicatos, de banqueiros, de concessões em Moçambique... Dinheiro, menino, o omnipotente dinheiro!
E como Ega se curvava, vencido, cheio só de respeito — o outro, faiscando todo de finura e cynismo, atirou-lhe uma palmada ao hombro:
— Meu caro, a politica hoje é uma coisa muito differente! Nós fizemos como vocês os litteratos. Antigamente a litteratura era a imaginação, a phantasia, o ideal... Hoje é a realidade, a experiencia, o facto positivo, o documento. Pois cá a politica em Portugal tambem se lançou na corrente realista. No tempo da Regeneração e dos Historicos a politica era o progresso, a viação, a liberdade, o palavrorio... Nós mudamos tudo isso. Hoje é o facto positivo, — o dinheiro, o dinheiro! o bago! a massa! A rica massinha da nossa alma, menino! O divino dinheiro!
E de repente emmudeceu, sentindo na sala um silencio — onde o seu grito de «dinheiro! dinheiro!» parecera ficar vibrando, no ar quente do gaz, com a prolongação de um toque de rebate acordando as cubiças, chamando ao longe e ao largo todos os habeis para o saque da Patria inerte!...
O Neves desapparecera. Os cavalheiros de provincia dispersavam, uns enfiando o paletot, outros sem pressa dando um olhar amortecido aos jornaes sobre a mesa. E o Gonçalo bruscamente disse adeus ao Ega, rodou nos tacões, desappareceu tambem, abraçando ao passar um dos padres a quem tratou de «malandro!»
Era meia noite, Ega sahiu. E na tipoia que o levava ao Ramalhete, já mais calmo, começou logo a reflectir que o resultado da publicação da carta seria despertar em toda Lisboa uma curiosidade voraz. A «questão de cavallos» com que o Neves se contentára promptamente, distrahido e absorvido n’essa noite pela crise, — ninguem mais a acreditaria... O Damaso decerto, interrogado, para se desculpar, contaria horrores de Maria e de Carlos: e uma intoleravel luz d’escandalo ia bater coisas que deviam permanecer na sombra. Eram talvez apoquentações, desesperos que elle assim estivera preparando a Carlos — por causa d’um odiosinho ao Damaso. Nada mais egoista e pequeno!... E subindo para o quarto Ega decidia correr depois d’almoço á redacção da Tarde, suster a publicação da carta.
Mas toda essa noite sonhou com Rachel e com Damaso. Via-os rolando por uma estrada sem fim, entre pomares e vinhedos, deitados n’uma carroça de bois, sobre um enxergão onde se desdobrava, lasciva e rica, a sua colcha de setim preto da villa Balzac: os dois beijavam-se, enroscados, sem pudor, sob a fresca sombra que cahia dos ramos, ao chiar lento das rodas. E por um requinte do sonho cruel, elle Ega, sem perder a consciencia e o orgulho d’homem, era um dos bois que puxava ao carro! Os moscardos picavam-no, a canga pesava-lhe; e, a cada beijo mais cantado que atraz soava no carro, elle erguia o focinho a escorrer de baba, sacudia os cornos, mugia lamentavelmente para os céos!
Acordou n’estes urros d’agonia: e a sua cólera contra o Damaso resurgiu, mais nutrida pelas incoherencias do sonho. Além d’isso chovia. E decidiu não voltar á Tarde, deixar imprimir a carta. Que importava, de resto, o que dissesse o Damaso? O artigo da Corneta estava extincto, o Palma bem pago. — E quem jámais acreditaria n’um homem que nos jornaes se declara calumniador e bebedo?
E Carlos assim pensou tambem — quando, depois d’almoço, Ega lhe contou a sua resolução da vespera ao vêr o Damaso no camarote, d’olho trocista posto n’elle, a segredar com os Cohens...
— Percebi claramente, sem erro possivel, que estava a fallar de ti, da snr.ª D. Maria, de nós todos, contando horrores... E então acabou-se, não hesitei mais. Era necessario deixar passar a justiça de Deus! Não tinhamos paz emquanto o não aniquilassemos!
Sim, concordou Carlos, talvez. Sómente receava que o avô, sabendo o escandalo, se desgostasse de vêr o seu nome misturado a toda aquella sordidez de Corneta e de bebedeira...
— Elle não lê a Tarde, acudiu Ega. O rumor, se lhe chegar, é já vago e desfigurado.
Com effeito Affonso soube apenas confusamente que o Damaso soltára no Gremio algumas palavras desagradaveis para Carlos, e declarára depois n’um jornal que, n’esse momento, estava bebedo. E a opinião do velho foi — que se o Damaso estava embriagado (e d’outro modo como teria injuriado Carlos, seu antigo amigo?) a sua declaração revelava extrema lealdade e um amor quasi heroico da verdade!
— Por esta não esperavamos nós! exclamou depois Ega no quarto de Carlos. O Damaso torna-se um justo!
De resto os amigos da casa, sem conhecer o artigo da Corneta, approvavam a aniquilação do Damaso. Só o Craft sustentou que Carlos lhe devia ter antes dado «bengaladas secretas»; e o Taveira achou cruel que se dissesse ao desgraçado, com um florete ao peito — «ou a dignidade ou a vida!»
Mas dias depois não se fallava mais n’esse escandalo. Outras coisas interessavam o Chiado e a Casa Havaneza. O ministerio fôra formado, finalmente! Gouvarinho entrava na Marinha — Neves no Tribunal de Contas. Já os jornaes do governo cahido começavam, segundo a pratica constitucional, a achar o paiz irremediavelmente perdido, e a alludir ao rei com azedume... E o derradeiro, esvaído echo da carta do Damaso foi, na vespera do sarau da Trindade, um paragrapho da propria Tarde onde ella fôra publicada, n’estas amaveis palavras:
— «O nosso amigo e distincto sportman Damaso Salcede parte brevemente para uma viagem de recreio a Italia. Desejamos ao elegante touriste todas as prosperidades na sua bella excursão ao paiz do canto e das artes.»