Página:Capa d’O Estado de 22 de abril de 1929.jpg

Wikisource, a biblioteca livre

Entêrro de uma mumia

Na Faculdade de Direito de S. Paulo existe mumificado o corpo de uma preta, que agora vai ser dado á sepultura

Ha na Faculdade de Direito de S. Paulo, na sala de aulas de Medicina Legal, numa urna de vidro, o corpo mumificado de uma preta.

«Essa mumia, escreveu o «Diario Popular, foi para ali levada pelo fallecido Dr. Amancio de Carvalho, quando naquella Faculdade leccionava Medicina Publica».

Muitas cousas se diziam sôbre a sua origem.

Não fôram poucas as lendas que se teceram á volta della. Uns diziam que era o corpo de uma ex-escrava da familia Amancio de Carvalho; outros que era apenas uma pobre mulher que perambulava pelas ruas; e outros, mais ousados ou mais impressionados, chegavam a admittir a hypothese de ter sido aquelle corpo mumificado o de alguma princesa ou rainha africana, trazido daquelle continente como raridade.

A pouco e pouco, porêm, o mysterio foi-se desfazendo, até que elle agora desappareceu de todo, com um pedido dirigido pela viuva do Dr. Amancio de Carvalho ao director da Faculdade, no sentido de obter a necessaria licença para se fazer o entêrro da mumia e dar-lhe sepultura christã.

De facto, essa senhora, movida por sentimentos religiosos, e allegando tambem que a mumia não é propriedade da Faculdade de Direito mas sim do Dr. Amancio, que lá sómente a deixara para illustração das suas aulas, parece ter obtido do Dr. Pinto Ferraz a necessaria licença.

Com respeito a esse pedido tambem movimentou-se o Centro XI de Agosto, na sessão de sabbado último.

O bacharelando Scalamandré Junior, representando um grupo de estudantes, apresentou um projecto autorizando o presidente do Centro a custear o entêrro, no qual tomariam parte todos os estudantes.

Esse projecto foi approvado e está dependendo sómente de execução.

DADOS HISTORICOS SOBRE A MUMIA

Pelo anno de 1900 havia em S. Paulo uma preta de nome Benedicta de tal, muito conhecida nos meios estudantinos e militares e cujo offício era vender laranjas.

Essa mulher, que tinha o habito de beber, perambulava, quase sempre embriagada, pelas ruas do Centro e da Luz, permanecendo com especialidade no Largo do Palacio e no Largo S. Francisco, onde os estudantes a tratavam com grande amizade e carinho.

O Dr. Veiga Miranda, num seu livro, narra episodios interessantes sôbre passagens entre academicos de direito e a preta Benedicta.

Por esse tempo o Dr. Amancio de Carvalho, que lecionava Medicina Legal na Faculdade, occupava tambem o cargo de Médico Legista da Polícia.

Uma noite, parece que em 1902, foi dado aviso na Central de que no Largo da Sé estava o corpo de uma mulher de côr preta já morta.

Levado o corpo para o necroterio da Polícia, verificou-se tratar-se da preta Benedicta, a popular vendedora de laranjas e tomadora de bebedeiras.

Estava de serviço nesse dia o Dr. Amancio de Carvalho que, depois de verificar o obito, pediu ao chefe de Polícia, que era então o Dr. Pedro Antonio de Oliveira Ribeiro, permissão para mumificar aquelle corpo.

Obtida a licença, foi encetado o trabalho, no proprio necroterio da Polícia, segundo narram.

Depois de mumificado e envernizado, o corpo de Benedicta foi exposto numa tabacaria da rua 15 de Novembro, no trecho que fica entre a rua do Thesouro e rua Direita.

Uma enorme agglomeração diariamente se formava em frente á vitrina dessa charutaria, onde estava exposto o corpo da Benedicta.

Depois de alguns dias, saciada a curiosidade pública, o Dr. Amancio de Carvalho resolveu levar a mumia para a Faculdade onde ella servisse para illustração das suas aulas de medicina.

UM EPISODIO TRAGICO

Uma vez na Faculdade, o corpo da preta Benedicta foi por muito tempo objecto exclusivo da attenção dos estudantes. A mumia estava em moda na Faculdade. Não havia estudantada em que ella não tomasse parte.

Dentre os varios episodios que com ella se passaram, conta-se um, bastante tragico. Parece, mesmo, que isto vem relatado no livro do Dr. Miranda.

Havia em S. Paulo um jornalista que se matriculara na Faculdade. Durante o classico trote alguem se lembrou da mumia.

Acolhida a lembrança, logo uma idéa foi posta em execução.

Vendaram os olhos ao jornalista e obrigaram-no a beijar o rosto da preta Benedicta.

Sem poder imaginar o que estava beijando, o jornalista accedeu.

Uma estrondosa gargalhada saudou este beijo, sendo-lhe immediatamente arrancada a venda dos olhos para que fôsse gozado o seu desapontamento.

Mas não veio o desapontamento esperado pelos estudantes. O que veis, segundo relatam, foi um accesso de loucura de que se viu tomado o jornalista, ao ver que o que tinha beijado era a mumia da Benedicta.

E’ de se imaginar o abatimento de que foram possuidos os moços estudantes, diante de um fim, tão tragico quão imprevisto.

Outros e innumeros episodios sôbre a mumia são relatados pelo Dr. Veiga Miranda, no seu livro «A Serpente de Bronze», episodios esses verificados todos no começo deste seculo, pois que depois a mumia, com o tempo, caíu no esquecimento, só sendo lembrada nas horas de aula.

Agora, com o pedido da viuva do Dr. Amancio de Carvalho ella volta a occupar a attenção dos estudantes, que para breve lhe organizarão o entêrro, segundo ficou resolvido na última sessão do Centro XI de Agosto.

Não póde deixar de ser interessante uma cerimonia desta natureza, em que perto de 600 estudantes de direito vão acompanhar o entêrro de uma mumia.